quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Mais poderosa do que a grandeza humana... é a sua estupidez - Crítica - Filmes: Não Olhe para Cima (2021)

 

O preço amargo de colher o que se planta...

 

por Alexandre César


Comédia apocalíptica da Netflix nos faz pensar


 

Obs: Alguns Spoilers.

#Oscar 2022

 
O Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio de Era Uma Vez... Em Hollywood ótimo ao criar um personagem cheio de fobias) e a doutoranda Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence de X-Men: Fênix Negra na medida certa), dois cientistas da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, fazem uma descoberta chocante: Um meteoro (de tamanho equivalente ao do monte Everest) vindo de um trecho pouco mapeado do espaço e em rota de colisão com a Terra. O tamanho do objeto celeste é suficiente para causar um impacto similar ao que eliminou os dinossauros, o que leva os astrônomos a procurarem pelas autoridades americanas. O Dr. Teddy Oglethorpe (Rob Morgan de Demolidor numa interpretação contida mas que diz tudo com seus silêncios) responsável pelo Departamento de Defesa Planetária, e consegue uma audiência presidencial, para se poder estabelecer planos de contingência, pois o prazo do impacto (seis meses) é extremamente curto. Ambos esperam que a liderança possa encontrar uma forma de enfrentar essa ameaça que pode destruir a humanidade, e agora, talvez o próprio planeta...
 

Voz da razão: O Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e a doutoranda Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) fazem uma incrível e terrível descoberta...
... que chega ao conhecimento do Dr. Teddy Oglethorpe (Rob Morgan) que entende a gravidade do tema

 
 
Narrado assim, Não Olhe Para Cima (2021) Dirigido por Adam McKay (Vice) soa como mais um daqueles blockbusters dirigidos por Michael Bay ou Rolland Emmerich (que em breve emplacará mais um filme nas telas) em que os EUA, Terra dos Bravos, será capaz de: “- Superar o desafio, provando a sua posição de liderança no Mundo Livre...“ 
 
 
Ducha de água fria: A Presidente Orlean (Meryl Streep) e seu filho Jason Orlean (Jonah Hill) chefe de gabinete, não dão a mínima para o assunto

 
Só que aqui, o roteiro de Adam McKay e David Sirota (Os Goldbergs) cria um filme de desastre misturado com sátira política, mostrando uma outra realidade, calcada no negacionismo e na desinformação, fruto de um estado disfuncional da política e da mídia, além da alienação social e a cultura online superficial e facilmente distraída, onde os anos de estudo, adquirindo títulos acadêmicos e domínio de assunto não superam a hegemonia de opiniões expressas em 270 caracteres, difundidos em grupos de What´s App, Telegram, e outras redes sociais, pretendendo ser um mix de Dr. Fantástico (1964) de Stanley Kubrick em um contexto contemporâneo, com Idiocracia (2006) de Mike Judge, na chacota da estupidez humana, objetivando chamar a atenção do público da maneira mais ampla e superficial possível, pois não duvide: Esta é a linha mercadológica da atual forma de consumo, onde não existe espaço para diálogo, pensamento crítico, comunicação inteligente, e discussões aprofundadas, se resumindo tudo a propaganda. Podemos ver isso no nosso próprio comportamento online, pois se um post tem mais de um parágrafo, ele é “longo”. Se um vídeo do Instagram não prende sua atenção em 5 segundos, ele é passável. Se não gostamos de alguém, ele vira meme e/ou é cancelado. Se uma pessoa não te interessa, passe para o lado. 
 
 
Diante da resposta governamental, a solução é procurar a TV, mas os âncoras Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry) tratam um assunto vital de maneira fútil...

... tendo mais atenção com o romance dos cantores DJ Chello (Kid Cudi) e Riley Bina (Ariana Grande) que "bombam" nas redes sociais

 
Mas voltemos à trama. A resposta dos políticos é bem diferente do esperado, pois a Presidente Orlean (Meryl Streep de A Dama de Ferro eficiente, num tom farsesco) está mais focada num escândalo sexual envolvendo um de seus correligionários (e para ela, seis meses é algo muuuito distante) seu filho Jason Orlean (Jonah Hill de Festa da Salsicha perfeito como um babaca) chefe de gabinete, age mais como criança mimada e arrogante, do que autoridade responsável (similar à um “certo” governo latino-americano) e no final a decisão tomada é o velho “vamos deixar como está, para ver como é que fica” frustrando os cientista, que recorrem à imprensa, mas os âncoras de TV, Brie Evantee (Cate Blanchett de Thor: Ragnarok como a personificação da beleza fútil) e Jack Bremmer (Tyler Perry de Um Funeral em Família perfeito como o típico repórter que fala sobre tudo, mas que não conhece nada) insistem em tratar a questão com leveza, ignorando a gravidade da situação (afinal não devemos ser rudes e assustar as pessoas), lembrando muito os programas da Fox News (e até das nossas emissoras) critica a dissimulação dos jornais e meios de comunicação clássicos, atestando o pouco valor que a nossa sociedade atribui à ciência, embora seja a mais dependente dela para a geração de energia, alimentos, remédios e toda uma gama de elementos vitais. Imaginemos o que aconteceria se como ao final do remake de O Dia Em Que A Terra Parou (2008) a eletricidade fosse removida em definitivo, quantos no primeiro ano morreriam por não poderem mais contar com as máquinas para aquecimento, irrigação, fabricação de alimentos e remédios. Etc... neste retorno à vida medieval, fantasia de muitos nerds e In Cels*1 cujo tônus muscular não suportaria segurar uma vassoura para limpar sua casa.
 
Kate Dibiasky é descartada por sua atitude intempestiva, enquanto Randall Mindy é alçado à posição de "o cara da ciência" e vai tentando alertar as pessoas quanto as fatos...
 
... enquanto o governo finalmente se mexe e monta uma missão comandada por Benedict Drask (Ron Perlman) militar durão

 
Por sua ação inicial, junto com Dibiasky e o Dr. Teddy Oglethorpe, Mindy até consegue chamar alguma atenção, embora pífia comparada à gerada pela ruptura do namoro dos cantores Riley Bina (Ariana Grande de Sam & Cat) e DJ Chello (Kid Cudi de Need for Sped: O Filme) celebridades vazias que dominam as redes sociais. Mas, como desgraça pouca é bobagem, logo, Kate Dibiasky é deixada de lado por seu espírito intempestivo e, tentando fazer a diferença e abrir os olhos do público leigo, Randall Mindy acaba sendo cooptado pelo sistema, sendo seduzido pelo glamour de ser uma celebridade, pois ele vai aprendendo a sair de seu nicho acadêmico e se comunicar com o homem comum. 
 
 
A missão começa em alto estilo, mostrando serviço...

...mostrando um bom trabalho da equipe de efeitos visuais

 
Pouco depois, o governo americano resolve montar uma missão de desvio do meteoro, numa manobra política populista, pleno do espetaculoso patriotismo norte-americano, comandada por Benedict Drask (Ron Perlman de Monster Hunter) militar casca-grossa machista e preconceituoso, no melhor estilo Armageddon e Independence Day, e até parece que finalmente as coisas tomaram um rumo, mas eis que Peter Isherwell (Mark Rylance de Jogador N°1 perfeito na composição de um tipo cujo comportamento sereno, esconde o medo de gente) dono da BASH, multinacional na área tecnológica (um amálgama irritantemente cômico de Steve Jobs, Elon Musk e Mark Zuckerberg) e maior financiador de campanha da presidente, sugere um método sem evidências científicas para fragmentar o corpo celeste e obter lucro em cima dos seus vastos recursos minerais. Logo a BASH faz uma mega campanha, convencendo à população em geral que a exploração do meteoro irá gerar empregos neste espírito às avesas da fábula “O Céu Está Caindo”*2, beneficiando os EUA, já que eles anunciam que a Rússia, China e Índia (curiosamente membros dos BRICS) NÃO PARTICIPARÃO DO EMPREENDIMENTO e, pouco depois misteriosamente, uma missão conjunta dessas nações para desviar o meteoro explode ainda em terra inviabilizando alternativas...
 
 
Quando tudo parece estar encaminhado Peter Isherwell (Mark Rylance) bilionário e principal financiador de campanha da presidente, manda cancelar a missão...

...pois ele tem um plano para explorar os recursos minerais do asteróide e nisso "gerar empregos e estimular a economia..."

 
Assim, os desacreditados Randall Mindy, Kate Dibiasky e Teddy Oglethorpe se retiram para suas vidas, Randall, reatando com sua esposa June Mindy (Melanie Lynskey de Dois Homens e Meio) e Kate engatando um romance com Yule (Thimothée Chalamet de Duna) rapaz descolado, e tão pária social quanto ela, já que seu ex, Phillip (Himesh Patel de Yesterday) resolveu denegri-la e faturar em cima disso. Assim todos vêem o mundo caminhar para um destino fatídico enquanto o governo e indivíduos como Dan Pawketty (Michael Chiklis de The Shield) ancora de direita, negam de forma veemente o inevitável, tentando prolongar ao máximo o momento presente e faturar um pouco mais como se não houvesse amanhã...
 
 
Se inicia uma campanha onde figuras como o âncora Dan Pawketty (Michael Chiklis) e o congressista Tenant (Robert Joy) desqualificam as vozes discordantes

Mindy vai se angustiando por ver o prazo se esgotando e ninguém cair em si
 
 
Auxiliando a boa performance de seu elenco, os figurinos de Susan Matheson (Tempestade: Planeta em Fúria) marcam bem as distinções entre Randall (um acadêmico de meia idade), com suas roupas sem estilo, Kate e Yule (ambos párias sociais de seus jeitos diversos) com seus trajes mais casuais embora de combinações duvidosas, que contrastam com os tailleurs da presidente, e os ternos bem cortados e os modelitos dos âncoras de TV ou das celebridades que equilibram a elegância de sua produção com o seu vazio interior.
 
 
sabemos que uma missão russa de desvio do asteróide explode "misteriosamente" ainda no solo

Como tentativa de conscientização há um show dos cantores DJ Chello e Riley Bina no melhor estilo USA for Africa, com músicas tipo "We Are the World" com muitos acessos nas redes sociais


A bela fotografia de Linus Sandgren (007: Sem Tempo Para Morrer) de aspecto documental, acompanha a direção frenética de McKay, auxiliado pela edição (de aspecto apressado) de Hank Corwin (Vice) cheia de cortes rápidos, transições narrativas que trabalham como tiques nervosos, imagens de arquivos da natureza (num subtexto claro sobre mudanças climáticas e ambientalismo) está a todo vapor para comprovar o caos. Inserindo comentários de redes sociais para dimensionar o efeito manada da internet, sublinhada pela música de Nicholas Britell (Sucession) que acompanha o ritmo narrativo dando um tom documental nesta constatação do imenso manancial de conteúdo vazio que são as redes.
 
 
desiludida,Kate larga tudo, virando caixa de mercado, e inicia um romance com Yule (Thimothée Chalamet ao centro) um outsider como ela

Randall, reata com sua esposa June Mindy (Melanie Lynskey) e com seus filhos


O desenho de produção de Clayton Hartley (A Grande Aposta) cria junto com a direção de arte de Jared Patrick Gerbig (A Guerra do Amanhã), Elliott Glick (A Dama e o Vagabundo), Brad Ricker (Duna) e Patrick Scalise (The Morning After) ambientes familiares à audiência como o Salão Oval da Presidência (que como diz um personagem, “-É menor do que parece na TV!”) ou os estúdios dos telejornais, que emulam o aspecto clean (e ao mesmo tempo brega) da Fox News, que contrasta com o aspecto acolhedor da casa de Randall e June Mindy, que a decoração de sets de Kyra Friedman Curcio (Ted 2) e Tara Pavoni (O Som do Silêncio) enfatiza o perfil de “porto seguro”, bem diferente dos cenários high-tech da BASH, dignas de um filme de James Bond.
 
Ao final, a verdade vai cada vez mais ficando visível nos céus, apesar do negacionismo...

...restando à elite, fugir par outro mundo (eles sempre têm um plano de fuga...)

 
Os efeitos de Framestore, Scanline VFX, Instinctual VFX, Captured Dimensions, Picturemill, Lola Visual Effects, Otomo FX, Day For Nite e supervisionados por Raymond Gieringer (Gênios do Crime), Matthew Bullock (Eternos), e Dann Tarmy (X-Men: Fênix Negra) emulam o tom de filmes como Armageddom e Impacto Profundo (1998) plenos de som e fúria yankee e surpreendem em coisas triviais, como corrigir o sorriso de sua protagonista*3.
 
 
Kate, Randall, e Yule resolvem se reunir uma última vez...
 
... e convidam o Dr. Teddy Oglethorpe para um jantar de confraternização na casa de Randall
 
 
 
Com seu desfecho ultra-cínico (não deixem de ver os dois pós-créditos), e totalmente trágico, Adam McKay faz de Não Olhe Para Cima uma sátira que é mais catastrófica que a grande maioria de filmes de desastre, personificando a crítica de Slavoj Zizek*4 da capacidade que o capitalismo tem de vender descontentamentos de volta ao consumidor como mercadorias. Aliás a própria atitude resignada de seus protagonistas ao final reflete uma constatação: Hollywood até aceita o fim do mundo, mas não aceita o fim do capitalismo... 
 
 
"- PORQUE É TÃO DIFÍCIL NOS COMUNICARMOS!?!"


 
Notas:
 

 
*1: Diminutivo da expresão “Involuntary Celibates” (“Celibatários Involuntários” ) grupos de homens entre os 20 e 40 anos que por serem incapazes de se relacionar sexual e amorosamente culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso, difundindo na internet a misoginia e até provocando atentados armados.
 
 
 
*2: Um conto onde um pintinho é atingido por uma noz que cai de uma árvore e passa a alardear que “o céu está caindo!!!”, e tenta convencer todos à sua volta disso. Serviu de base para os desenhos da Disney Chicken Little (1943) de forte conotação política ao mostrar didaticamente como o fascismo opera, espalhando boatos, minando lideranças e alçando fantoches ao poder. Posteriormente o estúdio fêz uma versão mais branda (e com final feliz) em O Galinho Chicken Little (2005).
 
*3: Jennifer Lawrence havia sofrido um acidente, quebrando alguns dentes. Por questões da demora em se tratamento por conta do isolamento social durante a pandemia, ela filmou com seus dentes quebrados, que foram corrigidos digitalmente na pós-produção.
 
 

 

*4: Slavoj Zizek é um filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana e diretor internacional da Universidade de Birkbeck, Londres. Sua linha de pensamento é a de que as pessoas estão “dopadas, adormecidas”, cabendo a nós “despertá-las” na medida em que a liberdade de expressão é o direito de dizer à elas o que não querem ouvir, para fazê-las refletirem e pela conscientização,tomarem uma posição.

 


 

 

*♪♫ -This is the end... ♪♫ Beautiful friend... ♪♫ This is the end... ♪♫ My only friend, the end...♪♫"


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