sábado, 27 de fevereiro de 2021

O preço da traição - Judas e o Messias Negro (2021)

 Resgatando a história

por Alexandre César

Poderoso relato semi-documental  de um momento histórico

Fred Hampton (Daniel Kaluuya) e o original: Atuação eletrizante que leva o filme à um outro patamar, engajando o espectador
  

Virada dos anos 1960 para os 1970. O ladrão de carros William O’Neal (LaKeith Stanfield de Atlanta) é preso ao roubar um veículo se passando por um agente do FBI. Sentindo o seu po-tencial, o agente especial Roy Mitchell (Jesse Plemons de A Noite do Jogo) lhe dá a escolha de ir para a cadeia ou, se infiltrar no Partido dos Panteras Negras de Illinois como informante pago do FBI, tendo a missão de manter o controle sobre seu líder carismático, o presidente Fred Hampton (o indicado ao Oscar Daniel Kaluuya de Corra!, As Viúvas e Pantera Negra). Sendo um malandro de sucesso, O’Neal vai galgando posição na organização (que é, segundo Roy: “- Tão daninha quanto a Ku Klux Klan, semeando o ódio e a violência!”) manipulando seus companheiros, mas gradualmente se dividindo, O’Neal vai travando uma batalha em sua alma, pois Hampton se revela além de um líder carismático, um articulista político lúcido e prático cujas proezas políticas e discursos inflamados irritam o diretor do FBI J. Edgar Hoover (Martin Sheen de The West Wing) que o considera uma ameaça ao “modo de vida americano”. Enquanto vai organizando e unificando o seu movimento com alianças de grupos marginalizados, Hampton se apaixona pela colega revolucionária Deborah Johnson (Dominique Fishback de O Ódio que Você Semeia e The Deuce). À medida que o cerco à Hampton vai se fechando, O’Neal vai se questionando se irá alinhar-se com as “forças do bem”, subjugando Hampton e Os Panteras por qualquer meio, como exige Hoover ou, se irá ousar tornar-se alguém melhor do que sempre foi, e rejeitar o seu papel de traidor...

O infiltrado William O’Neal (LaKeith Stanfield) e o original: Comosição precisa de um indivíduo dividido entre o que lhe é cômodo e o que é certo
 

Dirigido por Shaka King, marcando em grande estilo sua estreia na direção de um longa-metragem, sendo inspirado em acontecimentos reais, Judas e o Messias Negro (2021) lança luz sobre um episódio quase esquecido da história da luta pelo direitos civis dos negros americanos, nesta época em que temas como representatividade, racismo e desigualdades sociais foram amplificados pelo movimento Black Lives Matter. King, que também produz o filme com Ryan Coogler (Pantera Negra, Creed – Nascido Para Lutar, Fruitvale Station: A Última Parada), Charles D. King (Luta por Justiça, Um Limite Entre Nós) escreveu roteiro com Will Berson (Mighty B!) e os iniciantes Kenny & Keith Lucas que co-escreveram a história com Berson & King apostando nos espelhamentos dos conceitos míticos: O Hampton de Kaluuya tem a força de um messias, e apesar de não converter ninguém, filme traz sermões que dão vontade de levantar do assento de punho cerrado para o alto, enquanto o Bill de Stanfield tem no corpo encurvado o peso do traidor, sempre tenso e acuado por dentro por saber que mesmo que não acabe cumprindo o seu papel de traidor do movimento, estará correndo risco de vida por justamente ter entrado com esta função: Se ficar... se correr...

Deborah Johnson (Dominique Fishback) e a original. A companheira de Hampton compartilha de seus sonhos e sofre os temores da maternidade

E, tal qual um messias, o visionário Hampton, além de ter um exército de fiéis devotos capazes de se sacrificarem pelo movimento, tinha a intenção fazer crescer e multiplicar esse exército, pouco importando que os fiéis fossem negros, latinos ou brancos pobres (o “white trash”) de passado confederado: Hampton, demonstrando visão, propunha uma coalizão multirracial com outras entidades militantes para combater não só o racismo, mas também o capitalismo, e reconhecendo o poder da unidade multicultural por uma causa comum, criou a Coalizão Arco-Íris – unindo forças com outros povos oprimidos da cidade para lutar por igualdade e empoderamento político. Afinal, no fundo, eram todos uns “f#did0$” pelo sistema... Nas cidades do interior dos Estados Unidos, eles ofereciam café da manhã gratuito para crianças, serviços jurídicos, clínicas médicas e pesquisas sobre anemia falciforme e educação política. Daí, o temor e o ódio de Hoover e do governo, que viu os Panteras Negras como uma ameaça militante ao status quo, vendendo essa mentira a um público assustado, num momento de crescente agitação civil. E você achava que Fake News era uma coisa moderna...

O diretor do FBI J. Edgar Hoover (Martin Sheen) e o original:Caracterização exagerada mas eficaz, pois sem um vilão o filme perderia força, e Hoover tem um histórico vilanesco...
  

“- Muitos negros podem ter ouvido o nome Fred Hampton, mas não sabem muito sobre ele. Eu mesmo, que tenho pais adeptos da filosofia nacionalista negra, cresci ouvindo o seu nome. Sa-bia que Hampton foi um Pantera Negra e que foi baleado dormindo ao lado de sua esposa grávida. Mas eu não sabia muito mais sobre a sua vida, o que espero ter corrigido com o filme”, completou Shaka King numa videochamada: “- Nosso filme é uma espécie de Os Infiltrados *1 inserido no mundo do Cointelpro*2, usando tal qual no filme citado, a estrutura, que se distancia da forma narrativa de cinebiografias tradicionais, aqui usando o confronto entre dois homens de lados opostos. Mas, diferentemente do que se vê no filme de Scorsese (em que os dois personagens centrais são disfarçados) aqui, Hampton é exatamente quem diz ser. “- Há muita informação de domínio público sobre Hampton. Mas, ao longo do processo, descobrimos que muito do que foi divulgado não era verdadeiro. Muitos artigos de jornais foram escritos a partir das histórias plantadas pelo FBI*3.”, contou o produtor Charles D. King. 

 

30 moedas: O’Neal e seu mentor, o agente especial Roy Mitchell (Jesse Plemons) que lhe garante uma vida normal e digna após desmantelarem o movimento
 

A edição de Kristan Sprague (Mãos Sujas) flerta na narrativa de tom ora intimista, ora semidocumental (inclusive inserindo cenas do documentário de ágnes Varda sobre os Panteras Negras) sublinhada pela notável música de Craig Harris e Mark Isham (Bill & Ted: Encare a Música) faz um bom uso de sua experiência tirada do jazz, e de sons característicos de músicas de países africanos, com atabaques e tambores imitando a respiração dos personagens e as batidas do coração num resultado que mantém o espectador em suspenso, carregando notas dissonantes nos momentos de tensão se fazendo quase como um dos personagens da história, insinuadas nas ótimas canções da época. 

 

Na sede do Partido dos Panteras Negras a instrução política intensa engaja seus integrantes

Visualmente, a fotografia de Sean Bobbitt (12 Anos de Escravidão, As Viúvas) junto com o desenho de produção de Sam Lisenco (Jóias Brutas), a direção de arte de Jeremy Woolsey (Destacamento Blood) e a decoração de sets de Rebecca Brown (Desaparecidos) enfatiza, como em muitos dos filmes dos anos 1960/ 1970, as cores emudecidas dos ambientes que contrastam com os figurinos de Charlese Antoinette Jones (Criando Dion) cujas roupas coloridas das gangues, passam um senso de uniformes, que rivalizam com os ternos pretos e camisas brancas dos agentes do FBI e os uniformes azuis dos policiais. 

 

Amigos para o que der e vier... Hampton (ao centro) e seu círculo interno: Bobby Rush (Darrell Britt-Gibson ), o co-fundador do Partido dos Panteras Negras, Jake Winters (Algee Smith) e Judy Harmon (Dominique Thorne).

 

 Judas e o Messias Negro se inicia e termina com imagens da entrevista que William O`Neil para um documentário televisivo*4, divulgado no dia 17 de fevereiro de 1990 no dia do aniversário de Martin Luther King. Agora, o filme reflete um período em que se pode perceber que a percepção da opinião pública à cerca dos Panteras não correspondia à realidade, sendo Daniel Kaluuya indicado ao Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante pelo retrato eletrizante do ativista, morto aos 21 anos, em 4 de dezembro de 1969, mas cujo o impacto continuou a reverberar e, passados 50, suas palavras ainda ecoam nos corações e nas mentes daqueles que se permitiram tocar pela força de suas propostas.

 

José Cha Cha Jiménez (Nicholas Velez) e o original, fundador dos Youngs Lords porto-riquenhos, uma das várias facções da Coalizão Arco-Íris que se aliaram aos Panteras negras, num movimento que transcendia cor,raça e nacionalidade.

 

Notas:

*1: é o thriller assinado por Martin Scorsese, em 2006. Nele Leonardo DiCaprio vive um policial que recebe a missão de se infiltrar na máfia, enquanto o criminoso interpretado por Matt Damon entra na polícia de Boston para servir de informante para o chefe do crime organizado.

*2: (o programa secreto de contra-inteligência do FBI criado para desacreditar e neutralizar as atividades de grupos nacionalistas negros, realizado de 1956 a 1971).

 *3: Os arquivos consultados para a elaboração do roteiro foram resgatados pelo historiador e escritor Aaron Leonard graças à Freedom of Information Act, lei que força o governo dos EUA a fornecer informações sobre a administração pública, e pelo seu conteúdo fica tácito que mesmo não sendo responsável diretamente pela execução de Hampton, morto na própria cama pela polícia de Chicago, o FBI teria desempenhado um papel central no plano para eliminar o ativista, sendo um dos documentos traria uma espécie de parabenização feita ao agente do FBI Roy Mitchell, que era o encarregado da infiltração de O’Neal no Panteras Negras, e o mesmo registro também comemoraria o sucesso da incursão policial na casa de Hampton, confirmando que uma planta do apartamento (com a posição exata da cama do ativista) havia sido fornecida por O’Neal ao FBI, terminando o filme justamente com a invasão da polícia e com a morte de Hampton. Ainda que os policiais envolvidos na operação tivessem inicialmente alegado que quem abriu fogo primeiro foram os Panteras Negras, especialistas em balística chegaram posteriormente à outra conclusão. Apenas um dos quase cem tiros disparados naquela madrugada teria vindo dos Panteras.

*4: O`Neal se suicidou em 15 de fevereiro de 1990, dois dias antes da divulgação da entrevista.

 

Um grande filme que, embora não vá "converter" ninguém, prova que militância não se faz no sofá, em grupos de Whatsapp...


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