quinta-feira, 5 de maio de 2022

Quando o herói é secundário... - Crítica - Séries: Cavaleiro da Lua - 1ª Temporada

 


A super múmia

por Alexandre César

Série traz Oscar Isaac em outro patamar interpretativo
 
Obs: Spoilers

 

Origens: em "Werewolf by Night" #32 era apenas um oponente genérico para o protagonista da revista


Criado por Doug Moench e Don Perlin, na revista Werewolf by Night #32 (agosto de 1975), como um oponente genérico para o lobisomem Jack Russel (a estrela da revista), o Cavaleiro da Lua trilhou um caminho interessante até tornar-se um personagem de respeito*1. Galgado à condição de protagonista de sua própria revista, descobrimos que seu nome verdadeiro é Marc Spector, um mercenário que, ferido no deserto às portas da morte, fez um pacto com o deus egípcio Konshu*2, concordando em tornar-se seu vingador no plano terreno. Ao longo de suas histórias, ele cria falsas identidades para melhor investigar os casos que lhe interessavam: o playboy milionário Steven Grant e o taxista Jake Lockley,que usava de acordo com a necessidade. Posteriormente outros autores subverteram o perfil do herói Defensor*3, redefinindo-o como um indivíduo portador de transtorno de personalidade múltipla, sendo que seus disfarces na realidade eram suas diversas personalidades, que assumem o protagonismo na medida em que a situação externa exige um perfil específico para solucioná-la. 

 

As várias faces do herói, no traço de Bill Sienkiewicz, quando elas eram apenas disfarces
 


Criada por Jeremy Slater (The Umbrella Academy) o Cavaleiro da Lua é a nova aposta da Marvel Studios que leva as aventuras do controverso personagem 
veiculando-as no streaming pela Disney+. Com uma proposta de ser mais desconectada da continuidade do Universo Cinematográfico Marvel (UCM), o projeto procura alcançar um público mais amplo, que já começa a se ressentir de precisar assistir a todos os filmes e séries do estúdio para poder entender toda a complexa trama da cada fase e acompanhar seu andamento. 

 

O tímido e atrapalhado Steven Grant (Oscar Isaac) e Donna (Lucy Thackeray), sua chefe despótica


Steven Grant tem distúrbios de sono e lapsos de consciência, amarrando-se a cama

 

Conhecemos Steven Grant (Oscar Isaac, de Duna), um tímido e desastrado vendedor da loja de conveniências do Museu Londres*4, que tem distúrbios de sono. Ele dorme amarrado a uma corda em sua perna para não sair da cama de forma inconsciente. Mesmo assim tem episódios em que “se desliga” e vê-se em lugares distantes sem saber como foi para lá. Sua vida pessoal é solitária e patética, apenas mantendo contato com sua mãe pelo celular, mas nunca ouvimos a dela voz de fato. 

 

Steven Grant tem lapsos que o colocam em momentos de extrema violência

 

Mais adiante, o seu caminho cruza com o do líder de um culto religioso, Arthur Harrow (Ethan Hawke, de O Homem do Norte em ótima performance), que lhe cobra uma peça que estaria em seu poder para que possa despertar a deusa egípcia Ammit e liberar seu poder sobre a Terra. Seus episódios de perda de consciência e despertar após cenas de violência vão intensificando-se, além de ouvir vozes em sua cabeça. Ele conhece Layla El-Faouly (May Calamawny, de Juntos Mas Separados), que lhe chama de “Marc Spector” e diz ser sua esposa. 

 

Arthur Harrow (Ethan Hawke), o guru de auto-ajuda / chefe de culto que pretende liberar a deusa egípcia Ammit e julgar a humanidade



Logo ele está sendo atormentado pela presença de Khonshu (voz de F. Murray Abraham, de
A Dama e o Vagabundo) e, dialogando com o reflexo de sua imagem, que se identifica como Marc Spector. Ele pede a Steven que o deixe tornar-se a personalidade dominante, quando surgem seres sobrenaturais que ameaçam o medroso Steven Grant.Quando este cede, dá lugar à figura poderosa do Cavaleiro da Lua, ou, quando Steven começa a ganhar certo grau de controle, na de Mr. Night, uma versão mais civilizada do guerreiro. 

 

Layla El-Faouly (May Calamawny) se apresenta a Steven como a esposa de "Marc Spector", que seria ele mesmo

Harrow tenta aliciar Steven, que recusa, tornando-se um alvo


A relação de convivência e aceitação entre Steven Grant e Marc Spector é o que a série tem de melhor, mostrando o quão talentoso é Oscar Isaac. O herói propriamente dito, à despeito de suas boas cenas de ação, é menos interessante. O auge da interação entre as duas personalidades ocorre nos episódios em que Marc Spector se vê internado num sanatório para doentes mentais*5, com Harrow sendo seu psicólogo e Steven Grant um personagem de um seriado de aventuras da sua infância. Tem destaque a reminiscência de um episódio da infância de Spector que marcou para sempre sua vida, abalando a sua relação com seus pais Wendy (Fernanda Andrade, de Next) e Elias Spector (Rey Lucas, de Lista Negra) e criando Steven Grant. Logo as duas personalidades percebem que são como irmãos*6, com um necessitando das habilidades do outro para vencer o desafio mortal que enfrentam. 

 

Surge a figura do Cavaleiro da Lua, um guerreiro poderoso, alter-ego de Marc Spector


Entre os outros personagens, temos os capangas de Harrow, Billy (David Ganly, de Casualty) e Bobbi (Ann Akinjirin, de Beforeigners), que se passam por policiais; Donna (Lucy Thackeray, de Hatton Garde), a gerente da loja do Museu e chefe de Steven; Dylan (Saffron Hocking, de Top Boy), uma garota com quem Steven tenta ter um encontro (mas não rola por conta de seu transtorno dissociativo); e temos a rápida participação de Anton Mogart*7 (o recentemente falecido Gaspard Ulliel, de Eva), um colecionador de obras de arte (provavelmente de origem duvidosa...) e antigo conhecido de Layla (provavelmente um ex) numa cena que perpassa um clima de “saia-justa” sutil. 

 

A medida que Grant vai ganhando controle, surge o Senhor da Noite, uma versão moderada do herói


A música de Hesham Nazih (Number Two) funciona corretamente, sublinhando a ação, tendo a inserção de hits clássicos na trilha, como: “The End”. por Earl Grant; “A Man Without Love”, por Engelbert Humperdinck; “Mas Alla Del Sol”, por Manuel Bonilla; e “My Way of Life”; por Frank Sinatra. As canções indicam sutilezas dos estados emocionais dos personagens, ou ironiza seus momentos de vida. 

 

Harrow e seus asseclas seguem com seu plano, indo para o Egito...

...Enquanto no plano mental, Steven Grant e Marc Spector resolvem seu conflito


A fotografia de Gregory Middleton (Watchmen) e Andrew Droz Palermo (O Cavaleiro Verde) valoriza os cenários filmado nos estúdios Pinewood (Inglaterra), resgatando o look dos filmes de Indiana Jones e aproveita bem a mudança de ares das locações na Eslovênia, em Budapeste (Hungria), Jordânia (que se passa pelo Egito) e na Georgia (EUA), dialogando bem com a edição de Ahmed Hafez (Paranormal), Joan Sobel (Somente o Mar Sabe) e Cedric Nairn-Smith (The Boys). O conjunto mantém um bom pique narrativo, sabendo quando passar urgência e dinamismo nas cenas de ação e quando desacelerar para adotar um tom mais introspectivo, sem cair na sonolência. 

 

Harrow traz à vida a deusa-crocodilo Ammit, que pretende julgar a humanidade

 

Visualmente esperto, o desenho de produção de Stefania Cella (Morbius), junto com a direção de arte de Peter Findley (The Mallorca Files), Domenico Sica (Mulher-Maravilha), Sándor Jani (Sombra e Ossos), Karim Kheir (Ahlan Simsim) e Samer Raie, cria ambientes interessantes, como o pequeno apartamento bagunçado de Steven Grant, com um círculo de areia em torno da cama, como se fosse um oásis (ou uma ilha); o apartamento da tia falsária de documentos de Layla, ou o hospício do delírio de Spector/Grant, imaculadamente branco, apinhado de easter-eggs que a decoração de sets de Korinna Csoka (Halo), Véronique Melery (007: Sem Tempo para Morrer), Károly Kovács (Spectral), Adam Polgar (O Alienista) e Nagy Lászlo Dénes Marv (Spectral) colocam em cada espaço estratégico do cenário, bem como o bairro popular da Jordânia onde há o combate final de Spector/Grant e Harrow. 


Layla se torna temporariamente o avatar da deusa Tuéris, tendo grande presença


Os figurinos de Meghan Kasperlik (Watchmen) acertam na recriação do visual do herói, abrindo mão da malha e optando por um traje coberto de faixas, tal qual uma múmia, além de recriar o visual de Mr. Night, com um impecável terno e paletó branco (parecendo até um bicheiro, ou o nosso Zé Pelintra).

 

Khonshu e Ammit travam combate, num ótimo uso de CGI
Em certa altura, as semelhanças com Godzilla e seus similares são evidentes



Trabalhando dentro das restrições de um orçamento de série, os efeitos visuais de Cinesite, Image Engine Design, Framestore, Base FX, Mammal Studios, Method Studio, Perception, Weta FX, Soho VFX, supervisionados por Sean Andrew Faden (A Dama e o Vagabundo), não fazem feio, trabalhando de forma modesta nos primeiros episódios, para na segunda metade (onde se investiu mais) entregar boas cenas de visual inspirado e personagens digitais de ótima qualidade, como a simpática deusa-hipopótamo Tuéris (lembrando uma versão adulta da Tasha, de The Backyardigans), a deusa-crocodilo Ammit e, é claro, Khonshu.  Os dois últimos tem uma luta espiritual em tamanho gigante perto da Grande Pirâmide de Gizé que remete (em menor escala) aos embates de Godzilla com seus desafetos.

 

A direção de arte criou ambientes reais e cotidianos que se inserem como pano de fundo da ação, refletindo contexto social e cultural de diversos povos


Ao final, Cavaleiro da Lua, apesar de uns poucos deslizes, diverte e conclui seu arco de estabelecimento do herói, que poderá seguir como protagonista de sua própria série ou tendo participação especial de outros projetos do UCM, dada a sua boa presença em cena, graças a seu excepcional intérprete, cuja identidade secreta inclusive eclipsa a do herói... 

 

"Eu continuo dando as cartas neste jogo..."


 
 

Notas:

 


*1: No Brasil, as HQs do Cavaleiro da Lua foram publicadas primeiramente pela Rio Gráfica Editora no início dos anos 1980 (revista Almanaque Premiere Marvel), com o nome de Lunar, o Cavaleiro de Prata. Ao passar para a Editora Abril, esta resolveu mudar o nome para Cavaleiro da Lua. A Editora Panini vem publicando as fases posteriores do personagem no Brasil desde o lançamento da revista Marvel Action em janeiro de 2007. Suas primeiras HQs foram republicadas pela Panini em álbuns na Coleção Histórica Paladinos Marvel. 

 

*2: Na mitologia egípcia, Khonsu (nos quadrinhos escrito "Khonshu") é o Deus da Lua. Seu nome significa "viajante", referindo-se à lua viajando pelo céu. Khonsu é um deus que protege os viajantes noturnos. Essa característica é destaque na elogiada a fase do personagem escrita por Warren Ellis, onde surgiu seu visual e codinome de Mr. Night. 

 


*3: Nos quadrinhos, o Cavaleiro da Lua participou do grupo Defensores, que originalmente era composto por Doutor Estranho, Namor, Hulk, Surfista Prateado, Valquíria, tendo ao longo de sua trajetória vários outros integrantes. Por suas habilidades detetivescas, o herói é considerado o “Batman da Marvel”. A equipe do seriado "Defensores" da Marvel - veiculado inicialmente na Netflix e, em breve, disponível no Disney + - só tem o nome em xcomum com esta equipe.


*4: Desde que a Marvel Studios decidiu localizar Cavaleiro da Lua em Londres (para diferenciá-lo de muitos outros títulos ambientados em Nova York), Oscar Isaac decidiu dar a Steven Grant um sotaque britânico da classe trabalhadora (inspirado pelos sotaques da comunidade judaica que vive em Enfield, Londres, bem como por comediantes ingleses como Karl Pilkington e Peter Sellers), mesmo que isso não tenha sido indicado no roteiro. Isaac explicou que ele escolheu um sotaque inglês de Londres, intencionalmente bizarro e pouco convincente (criticado pelo público assim que o primeiro trailer foi lançado), para realçar a personalidade artificial de Steven.

 

*5: Este arco da temporada é fortemente baseado no n° 3 do arco das HQs Lunático (2016), escrita por Jeff Lemire, desenhada por Greg Smallwood e colorizada por Jordie Bellaire. Episódios em que o herói se vê numa instituição mental e seus antagonistas e aliados são médicos e funcionários do local, é um tema recorrente em muitas histórias, séries e filmes, quando o vilão espertamente procura vencer o herói fazendo-o duvidar de sua sanidade e assim, vencer sem ter de lutar frontalmente com ele. Este tropo já foi visto em Buffy – A Caça-Vampiros, Arquivo X, O Vingador do Futuro (1990) e Vidro (2018), entre outros, remontando todo ao final do clássico do Expressionismo Alemão, O Gabinete do Dr. Caligari (1921) de Robert Wiene. 



*6: Para as cenas em que Steven e Marc interagem um com o outro, em vez de Oscar Isaac tentar atuar contra um substituto de tela verde ou um extra, a Marvel contratou o irmão de Isaac, o jornalista-ator Michael Benjamin "Bro Dameron" Hernandez, para servir como seu duplo, para ajudar Isaac a agir de forma oposta a si mesmo. Isaac disse durante uma coletiva de imprensa que seu irmão “é a coisa mais próxima dele que existe na Terra”, e assim, ele foi capaz de saber diferenciar perfeitamente entre os personagens, se alimentando da energia de Hernandez, como se ele estivesse realmente agindo contra si mesmo.



*7: Nos quadrinhos, Anton Mogart é o Homem da Meia-Noite, ladrão de obras de arte e inimigo recorrente do Cavaleiro da Lua. Devido à morte inesperada do seu intérprete, devemos esperar ou uma reescalação de outro ator para o papel ou que o personagem não volte a aparecer. 


Os cavaleiros de Khonshu

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