Mais do que humano?
por Alexandre César
(originalmente publicado em 2 de fevereiro de 2019)
M. Night Shyamalan e o universo compartilhado

Palheta de cores: Roxo (Vidro), Amarelo (a Horda) e Verde (o Vigilante)

“- A quem servimos de fato? Porque somos assim, deste jeito? Porque enfrentamos certas situações na vida? Em que acreditamos realmente? Qual é o nosso lugar no mundo?”

David Dunn (Bruce Willis) e as chearleaders. Herói e vigilante vulnerável à água...

Perguntas
comuns a todos nós e a que já nos fizemos em algum momento de nossas
vidas, coisa que o cineasta M. Night Shyamalan busca responder em seus
filmes e com os seus personagens, que sempre estão à procura de seu
lugar no mundo. Na sua trilogia que reinterpreta o conceito do super-
herói, e que se compõe de Corpo Fechado (2000), Fragmentado (2016), e agora, Vidro (2019),
o diretor e roteirista novamente tenta responder a estas questões,
encontrando neste processo, uma solução que sempre foi rechaçada com
risos e zombaria por ter sempre estado ao nosso alcance, e diante dos
nossos olhos: “- Sim, nós somos heróis e vilões! E porque não?”.
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Os efeitos visuais são sutis e pontuais, dentro do orçamento modesto |

Das 24 personalidades da Horda,( James McAvoy) só a Fera que é realmente perigosa

Aqui no Brasil, um dos motivos porque Corpo Fechado sempre
foi tão mal avaliado deve-se à infame tradução do título, que induziu
muita gente ao erro de esperar um filme de temática sobrenatural (“Corpo Fechado”
é um termo de religiões de matriz africana) e como na distribuidora
devem ter apenas lido a sinopse vinda de fora sem verem o filme (coisa
mais comum do que se pensa...) foi titulado assim porque era “o novo filme do diretor de Sexto Sentido” seguiram a linha de raciocínio de que um indivíduo invulnerável, Inquebrável (que seria tradução mais fiel para o original “Inbreakable”)
teria de ter um pacto com alguma divindade, o que frustrou parte do
público ao ver que era um filme de super-heróis disfarçado, fazendo com
que até hoje brotem pessoas dizendo que 'detestam' o filme. Coisas de internet e da falta do hábito de leitura...
Mas voltemos a Vidro. Passadas cerca de três semanas dos eventos de Fragmentado, o multi vilão Horda
(James McAvoy, extraordinário em sua habilidade de sair e entrar de
uma personalidade à outra) sequestra quatro garotas (líderes de torcida,
que fetiche!) que pretende servir como sacrifício para a Besta,
a mais forte e perigosa personalidade de Kevin Crumb, sua personalidade
raiz. Ao mesmo tempo, David Dunn (Bruce Willis, contido) agora
estabelecido como “O Vigilante”
, e agora dono de uma loja de artigos de segurança, agindo como
herói/vigilante há 18 anos, com o seu filho Joseph (o mesmo Spencer
Treat Clark, agora crescido) como o sidekick que lhe dá suporte,continua a sua rotina de salvamentos e segue o rastro do sequestrador das meninas.
Ao
libertá-las, entra em combate com a Besta, de forma contundente mas,
durante a luta, autoridades policiais capturam os dois, sendo mandados
para Raven Hill, um sanatório em que Elijah Price (Samuel L. Jackson,
na medida certa entre o catatônico e o ardiloso) já está internado há
anos. Cabe à psiquiatra Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson) que trata
pacientes com um delírio de grandeza bem específico: aqueles que
acreditam serem super-heróis, criações saídas de HQs, pessoas com
habilidades sobre-humanas. Seu trabalho é convencê-los de que tudo tem
uma explicação científica e médica e fazê-los questionar seus papéis na
história e no mundo.
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Os
protagonistas, ao questionarem os seu poderes e suas motivações, suas
cores se esmaecem, ficando mais "comuns", como as pessoas normais |
Aqui é que entra a grande ideia por trás do filme: e se tudo o que vimos em Corpo Fechado e Fragmentado não
passou de uma grande ilusão dos protagonistas? Sempre que eles
acreditam em seus poderes, as cores ficam mais fortes, mas conforme são
convencidos pela psiquiatra Drª Staple de que não são especiais,
descredenciando os espetaculares poderes e peculiaridades desses três
indivíduos, através da lógica, do método cientifico, as cores perdem
força e eles começam a se misturar com o ambiente, uma das várias
composições impactantes que Shyamalan e o fotógrafo Michael Gioulakis
(de Fragmentado), criaram para o filme. Infelizmente, o roteiro explora menos do que deveria esse dilema, diluindo o conflito.
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Talento: McAvoy troca de personalidade como quando viramos o seletor das estações de um rádio, de forma brilhante |
Mas
eventualmente nesse jogo de dúvida e descrença, quando a fé em si mesmo
os coloca à prova, todos revelam seus verdadeiros potenciais. O clímax,
de uns 45 minutos de reviravoltas no melhor estilo shyamalaniano geram instantes de inegável impacto dramático. celebrando uma força da fé nas lendas que contamos para delas e nelas vivermos. “Não podem existir deuses entre nós”,
argumenta a Dra. Staple. Pois só existimos por causa das nossas
ilusões, sejam elas a da normalidade, que dá estabilidade à economia,
sejam a da que todos devem ser “cidadãos normais e ordeiros”,
pagadores de contas e eleitores de Trump ou qualquer genérico dele...
ficando aí a questão de não é mais entre heróis e vilões, pois eles
existem e sabem quem são, mas sim, entre quem tem e quem não tem, o
poder. São “os homens contra os deuses”, incorporando Paulson muito bem essa posição de porta-voz do status quo, criando um personagem-amalgama de outros muito parecidos que ela já encarnou na série American Horror Story. Palmas para ela.
Vidro,
enfatiza de forma econômica, a estrutura da jornada acima da
pirotecnia, apostando numa simplicidade arrebatadora aliada ao combo 'homenagem-reverência-distorção' do universo dos quadrinhos, do mundo nerd, geek na
essência de suas obras tanto quanto de seus consumidores. O filme sofre
com a expectativa criada por conta do sucesso dos antecessores, mas
ainda vale o ingresso e embora se esforce demais em criar pontes com os
arquétipos de quadrinhos que deseja desconstruir e remodelar (que se
revela nas falas de Price) mas não deixa dúvida de estarmos diante de
uma genuína fantasia entranhada no mundano (e com uma capacidade de
mitologização só encontrada no próprio cinema do autor) DC e Marvel bem
que tentam, mas não chegam nem perto. O trabalho de Shyamalan continua
de se admirar, permanecendo um diretor de alto apuro técnico e visual.
E
neste inteligente caleidoscópio com milhões de tons de cinza, se destaca
a participação de Casey (a ótima Anya Taylor-Joy, co-protagonista de Fragmentado), Joseph (legal assistir ao jovem Clark reprisar seu papel tantos anos depois de Corpo Fechado) e da mãe de Elijah (a veterana Charlayne Woodard), os “sidekicks”. São eles a conexão com o nosso mundo comum e ordinário, mostrando que a real extensão da formação do herói não está nos poderes, mas no que ele faz com esses poderes.
Apesar do pequeno destaque deles, isto não significa que tenham menos
importância, demonstrando que a gênese, a crença, a esperança, o
esforço, a jornada que os formou, e como tudo que mantém cada um desses
seres extraordinários está aliado a uma pessoa comum: um igual, um
filho, uma mãe. Três pilares dessa trindade.
No cômputo final Shyamalan poderia ter trabalhado melhor a ideia central e feito um longa tão incrível quanto Corpo Fechado e Fragmentado, mas preferiu fazer um bom filme seguro, com boas cenas de ação que ficou “apenas” bom. Mas não podemos desconsiderá-lo como filme. Está beeem longe de ser um filme ruim, pois se a conclusão deixará muita gente p*… da vida, bem depois refletirá um bocado em cima dela. A produção é divertida e conta com bons momentos de ação, mas o diretor deixou escapar a oportunidade de criar algo realmente especial. O maior benefício, é a discussão do medo frente poderes que não entendemos, ou não possuímos, tecla que os X-Men batem há décadas, misturada à questão do preconceito, que nunca passa em branco.
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Âncoras no mundo real: Os "sidekicks" o filho Joseph Dunn (Spencer Treat Clark), Casey e a mãe de Price (Charlayne Woodard).
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Do seu jeito, Shyamalan continua o raciocínio levantado por Alam
Moore em Watchmen, de que se os super-heróis existissem no mundo real, seriam uma fonte de questionamentos, ressentimento e medo para os “trevos de três folhas” (o resto da humanidade) que se sentiriam ameaçados por algo superior, ameaçando o status quo, pois não se iludam:
“O dia em que aparecer um homem que voa naturalmente, a reação da
humanidade será de maravilhamento e de admiração, seguido de assombro,
medo, inveja, revolta (porque não eu???) e ressentimento , levando a
tentar abatê-lo pois a sua mera existência seria uma afronta aos
'cidadãos de bem' pessoas normais, pagadoras de impostos que
sentiriam-se humilhadas por não terem essa habilidade, e que levaria ao
colapso do pacto social, pois o único super-poder aceito pelo mainstream é o da riqueza...”
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"- Dra. Staple, a Sa.quer dizer que sou louco por querer dominar o mundo ou por me achar intelectualmente superior à toda a raça humana?" |
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