quarta-feira, 19 de maio de 2021

Os Super-Humanos de Shyamalan - Crítica - Filmes: Vidro (2019)

 

Mais do que humano?

 
por Alexandre César

(originalmente publicado em 2 de fevereiro de 2019)

 


M. Night Shyamalan e o universo compartilhado

 

Palheta de cores: Roxo (Vidro), Amarelo (a Horda) e Verde (o Vigilante)

 

“- A quem servimos de fato? Porque somos assim, deste jeito? Porque enfrentamos certas situações na vida? Em que acreditamos realmente? Qual é o nosso lugar no mundo?”

 

David Dunn (Bruce Willis) e as chearleaders.  Herói e vigilante vulnerável à água...

Perguntas comuns a todos nós e a que já nos fizemos em algum momento de nossas vidas, coisa que o cineasta M. Night Shyamalan busca responder em seus filmes e com os seus personagens, que sempre estão à procura de seu lugar no mundo. Na sua trilogia que reinterpreta o conceito do super- herói, e que se compõe de Corpo Fechado (2000), Fragmentado (2016), e agora, Vidro (2019), o diretor e roteirista novamente tenta responder a estas questões, encontrando neste processo, uma solução que sempre foi rechaçada com risos e zombaria por ter sempre estado ao nosso alcance, e diante dos nossos olhos: “- Sim, nós somos heróis e vilões! E porque não?”.  

Os efeitos visuais são sutis e pontuais, dentro do orçamento modesto

Das 24 personalidades da Horda,( James McAvoy) só a Fera que é realmente perigosa

Aqui no Brasil, um dos motivos porque Corpo Fechado sempre foi tão mal avaliado deve-se à infame tradução do título, que induziu muita gente ao erro de esperar um filme de temática sobrenatural (“Corpo Fechado é um termo de religiões de matriz africana) e como na distribuidora devem ter apenas lido a sinopse vinda de fora sem verem o filme (coisa mais comum do que se pensa...) foi titulado assim porque era “o novo filme do diretor de Sexto Sentido” seguiram a linha de raciocínio de que um indivíduo invulnerável, Inquebrável (que seria tradução mais fiel para o original “Inbreakable”) teria de ter um pacto com alguma divindade, o que frustrou parte do público ao ver que era um filme de super-heróis disfarçado, fazendo com que até hoje brotem pessoas dizendo que 'detestam' o filme. Coisas de internet e da falta do hábito de leitura...
 
 
Elijah Price (Samuel L. Jackson) o catatônico gênio do mal...  será mesmo???


 Mas voltemos a Vidro. Passadas cerca de três semanas dos eventos de Fragmentado, o multi vilão Horda (James McAvoy, extraordinário em sua habilidade de sair e entrar de uma personalidade à outra) sequestra quatro garotas (líderes de torcida, que fetiche!) que pretende servir como sacrifício para a Besta, a mais forte e perigosa personalidade de Kevin Crumb, sua personalidade raiz. Ao mesmo tempo, David Dunn (Bruce Willis, contido) agora estabelecido como “O Vigilante” , e agora dono de uma loja de artigos de segurança, agindo como herói/vigilante há 18 anos, com o seu filho Joseph (o mesmo Spencer Treat Clark, agora crescido) como o sidekick que lhe dá suporte,continua a sua rotina de salvamentos e segue o rastro do sequestrador das meninas.  
 

A psiquiatra Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson), encarna "A voz da Razão"...


Ao libertá-las, entra em combate com a Besta, de forma contundente mas, durante a luta, autoridades policiais capturam os dois, sendo mandados para Raven Hill, um sanatório em que Elijah Price (Samuel L. Jackson, na medida certa entre o catatônico e o ardiloso) já está internado há anos. Cabe à psiquiatra Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson) que trata pacientes com um delírio de grandeza bem específico: aqueles que acreditam serem super-heróis, criações saídas de HQs, pessoas com habilidades sobre-humanas. Seu trabalho é convencê-los de que tudo tem uma explicação científica e médica e fazê-los questionar seus papéis na história e no mundo.
 

Os protagonistas, ao questionarem os seu poderes e suas motivações, suas cores se esmaecem, ficando mais "comuns", como as pessoas normais
 
 
Aqui é que entra a grande ideia por trás do filme: e se tudo o que vimos em Corpo Fechado e Fragmentado não passou de uma grande ilusão dos protagonistas? Sempre que eles acreditam em seus poderes, as cores ficam mais fortes, mas conforme são convencidos pela psiquiatra Drª Staple de que não são especiais, descredenciando os espetaculares poderes e peculiaridades desses três indivíduos, através da lógica, do método cientifico, as cores perdem força e eles começam a se misturar com o ambiente, uma das várias composições impactantes que Shyamalan e o fotógrafo Michael Gioulakis (de Fragmentado), criaram para o filme. Infelizmente, o roteiro explora menos do que deveria esse dilema, diluindo o conflito.
 
 
Talento: McAvoy troca de personalidade como quando viramos o seletor das estações de um rádio, de forma brilhante

 
 Mas eventualmente nesse jogo de dúvida e descrença, quando a fé em si mesmo os coloca à prova, todos revelam seus verdadeiros potenciais. O clímax, de uns 45 minutos de reviravoltas no melhor estilo shyamalaniano geram instantes de inegável impacto dramático. celebrando uma força da fé nas lendas que contamos para delas e nelas vivermos. “Não podem existir deuses entre nós”, argumenta a Dra. Staple. Pois só existimos por causa das nossas ilusões, sejam elas a da normalidade, que dá estabilidade à economia, sejam a da que todos devem ser “cidadãos normais e ordeiros”, pagadores de contas e eleitores de Trump ou qualquer genérico dele... ficando aí a questão de não é mais entre heróis e vilões, pois eles existem e sabem quem são, mas sim, entre quem tem e quem não tem, o poder. São “os homens contra os deuses”, incorporando Paulson muito bem essa posição de porta-voz do status quo, criando um personagem-amalgama de outros muito parecidos que ela já encarnou na série American Horror Story. Palmas para ela.
 
 
Ao final todos revelam as suas faces...

 
Vidro, enfatiza de forma econômica, a estrutura da jornada acima da pirotecnia, apostando numa simplicidade arrebatadora aliada ao combo 'homenagem-reverência-distorção' do universo dos quadrinhos, do mundo nerd, geek na essência de suas obras tanto quanto de seus consumidores. O filme sofre com a expectativa criada por conta do sucesso dos antecessores, mas ainda vale o ingresso e embora se esforce demais em criar pontes com os arquétipos de quadrinhos que deseja desconstruir e remodelar (que se revela nas falas de Price) mas não deixa dúvida de estarmos diante de uma genuína fantasia entranhada no mundano (e com uma capacidade de mitologização só encontrada no próprio cinema do autor) DC e Marvel bem que tentam, mas não chegam nem perto. O trabalho de Shyamalan continua de se admirar, permanecendo um diretor de alto apuro técnico e visual.
 
 
"-Não é nada pessoal, é só um esmigalhar de ossos e órgãos internos.."

 
E neste inteligente caleidoscópio com milhões de tons de cinza, se destaca a participação de Casey (a ótima Anya Taylor-Joy, co-protagonista de Fragmentado), Joseph (legal assistir ao jovem Clark reprisar seu papel tantos anos depois de Corpo Fechado) e da mãe de Elijah (a veterana Charlayne Woodard), os “sidekicks”. São eles a conexão com o nosso mundo comum e ordinário, mostrando que a real extensão da formação do herói não está nos poderes, mas no que ele faz com esses poderes. Apesar do pequeno destaque deles, isto não significa que tenham menos importância, demonstrando que a gênese, a crença, a esperança, o esforço, a jornada que os formou, e como tudo que mantém cada um desses seres extraordinários está aliado a uma pessoa comum: um igual, um filho, uma mãe. Três pilares dessa trindade.
 
 
"A Bela e a Fera": Kevin Crumb e Casey (Anya Taylor-Joy). Iguais no sofrimento vindo de abusos.

 

No cômputo final Shyamalan poderia ter trabalhado melhor a ideia central e feito um longa tão incrível quanto Corpo Fechado e Fragmentado, mas preferiu fazer um bom filme seguro, com boas cenas de ação que ficou “apenas” bom. Mas não podemos desconsiderá-lo como filme. Está beeem longe de ser um filme ruim, pois se a conclusão deixará muita gente p*… da vida, bem depois refletirá um bocado em cima dela. A produção é divertida e conta com bons momentos de ação, mas o diretor deixou escapar a oportunidade de criar algo realmente especial. O maior benefício, é a discussão do medo frente poderes que não entendemos, ou não possuímos, tecla que os X-Men batem há décadas, misturada à questão do preconceito, que nunca passa em branco.
 
 
Âncoras no mundo real: Os "sidekicks" o filho Joseph Dunn (Spencer Treat Clark), Casey e a mãe de Price (Charlayne Woodard). 
 

 
Do seu jeito, Shyamalan continua o raciocínio levantado por Alam Moore em Watchmen, de que se os super-heróis existissem no mundo real, seriam uma fonte de questionamentos, ressentimento e medo para os “trevos de três folhas” (o resto da humanidade) que se sentiriam ameaçados por algo superior, ameaçando o status quo, pois não se iludam: “O dia em que aparecer um homem que voa naturalmente, a reação da humanidade será de maravilhamento e de admiração, seguido de assombro, medo, inveja, revolta (porque não eu???) e ressentimento , levando a tentar abatê-lo pois a sua mera existência seria uma afronta aos 'cidadãos de bem' pessoas normais, pagadoras de impostos que sentiriam-se humilhadas por não terem essa habilidade, e que levaria ao colapso do pacto social, pois o único super-poder aceito pelo mainstream é o da riqueza...”
 
 
"- Dra. Staple, a Sa.quer dizer que sou louco por querer dominar o mundo ou por me achar intelectualmente superior à toda a raça humana?"

 
 

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