A busca pela unidade narrativa
por Alexandre César
Antologia da Netflix muda o ritmo

Pela casa

Após uma ótima e variada primeira temporada, eis que surge novamente Love, Death & Robots (2021), série de antologia de curtas metragens nos variados estilos de animação e abordagem de temas de fantasia, horror e ficção-científica (às vezes lembrando um pouco Black Mirror) e embora continue colorida e tecnicamente impecável, sente-se uma diminuição tanto em sua abrangência de estilos visuais e narrativos pois se na temporada anterior tínhamos 18 curtas, nesta temos apenas 8, sendo que uma metade apostando no visual fotorealista, com graus variados de sua inserção no vale da estranheza*1, e a outra apostando na estilização, indo da moderada ao mais cartunesco possível. Talvez, por esta drástica redução do número de curtas, diluiu-se o “quê” de semelhanças que nos remetia (por analogia) às clássicas revistas em quadrinhos Metal Hurlant ( ou à sua versão americana, a Heavy Metal), ou às revistas da Warren Publishing Company, que moldaram toda uma geração de artistas e profissionais das artes e do áudio-visual. Apostou-se no que tinha retorno certo. Mas...
Criada por David Fincher (Seven, Clube da Luta) e Tim Miller (Deadpool, O Exterminator do Futuro: Destino Sombrio), nesta 2ª Temporada continua percorrendo vários conceitos, já abordados anteriormente em inúmeros filmes, séries, contos, etc... ganhando concisão e eficiência por justamente estarem numa narrativa de curta-metragem, não havendo espaço para encheção de linguiça e firulas narrativas desnecessárias.
Os curtas, foram criados por diferentes estúdios de animação e CGI, incluindo animadores da Hungria, França, Canadá e Coréia do Sul, entre outros. O diferencial desta temporada (talvez por questões de custo) foi dar focos em temas que permeassem as narrativas, para dar um maior senso de unidade às tramas (algumas não aconselháveis para menores de 18 anos) que se compõem de:
Atendimento automático ao cliente: Dirigido pela Meat Dept (Kevin Dan Ver Meiren, David Nicolas, Laurent Nicolas) escrito por Meat Dept e John Scalzi, baseado numa história de Scalzi da Atoll Studio, onde num estilo cartunesco, vemos uma "cidade geriátrica" (como os bairros da Flórida que têm grande contingente de habitantes da terceira idade) onde todos os serviços repetitivos são automatizados, e uma senhora tem problemas com seu aspirabô. Hilário mix de O Exterminador do Futuro com crítica social sobre o lugar dos idosos no caminhar da sociedade.
Gelo: Dirigido por Robert Valley, escrito por Philip Gellatt, baseado numa história de Rich Larson da Passion Animation Studios mostra um mundo gelado onde dois irmãos adolescentes, sendo um deles aprimorado (e fisicamente superior) seguem um turma para uma típica atividade e adolescentes (naquele contexto...). Interessante animação 2D realizada por um animador dos clipes do grupo Gorillaz (cuja estilização remete ao traço destes), lidando com conceitos como a aceitação, a capacidade de superação humana e o preconceito.
Esquadrão de extermínio: Dirigido por Jennifer Yuh Nelson, escrito por Philip Gelatt, baseado numa história de Paolo Bacigalupi do Blur Studio, se passa num futuro onde a humanidade atingiu a imortalidade... pagando um preço muito caro. Um policial questiona seu trabalho e a superficialidade dessa vida eterna. No melhor estilo Blade Runner, este curta aproveita cada segundo de sua duração, onde o contraste entre o glamour sofisticado da cidade acima das nuvens e a realidade famélica do setor térreo reflete uma pirâmide social cruel, onde não há crianças.
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Snow no inverno |
Snow no inverno: Dirigido por Leon Berelle, Dominique Boldin, Remi Kozyra e Maxime Luere; escrito por Philip Gelatt, baseado numa história de Neal Asher, da Unit Image sendo o mais hiper-realista, onde num planeta desértico, cuja ambientação remete à Mad Max, um homem é caçado por mercenários, por causa de sua condição especial. Aqui chegamos plenamente ao vale da estranheza, e por vezes o ultrapassamos, levando em vários momentos a nos perguntar se os personagens são atores, CGI, Captura de Performance, ou tudo junto, num bom mix de ação, sexo estiloso e uma suave reflexão sobre se identificar e aceitar o outro.
A grama alta: Dirigido por Simon Otto, escrito por Phillip Gelatt, baseado numa história de Joe Lansdale da Axis Animation é um estilizado conto de terror alegórico onde um trem pára num trecho ermo para recuperar o vapor e um passageiro sai para fumar um cigarro, tendo chamada a sua atenção por algo no matagal. É o curta em que mais sentimos uma influência literária, num mix que vai de Agatha Christie a H.P. Lovecraft (que guarda uma certa semelhança com o personagem do passageiro) e possibilita várias leituras em sua aparente simplicidade narrativa.
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Pela casa |
Pela casa: Dirigido por Eliot Dear, escrito por Phillip Gelatt, baseado numa história de Joachim Heijndermans da Blink Industries, se passa na noite de Natal, onde crianças vão surpreender Papai Noel e, são elas que se surpreendem. Ótima fábula de horror e humor, com visual que remete às animações stop-motion de Ray Harryhausen dos Puppetoons de George Pal, ou os especiais de Arthur Rankin Jr. e Jules Bass como A Festa do Monstro Maluco.
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Pela casa |
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Gaiola de sobrevivência |
Gaiola de sobrevivência: Dirigido por Alex Beaty escrito por Phillip Gelatt, baseado numa história de Harlan Ellison da Blur Studio é o mais episódico da antologia, onde um piloto de caça espacial (voz de Michael B. Jordan, numa versão fotorealista) naufragado após um combate, caindo num mundo remoto e ao chegar num abrigo, espera resgate, mas tem de lidar com um robô de manutenção defeituoso, e letal... Bom e claustrofóbico episódio de suspense que, que pelo pouco vislumbrado pelos flashbacks do vôo de combate do piloto, parece um pedaço recortado de um filme maior.
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O gigante afogado |
O gigante afogado: Escrito e dirigido por Tim Miller, baseado numa história de J.G. Ballard, da Blur Studio, onde um especialista investiga o corpo de um gigante morto encontrado nu (como se fôsse uma mega-escultura de Ron Mueck) numa praia e acompanhamos a sua paulatina decomposição e depredação pelos habitantes locais. O mais introspectivo dos oito curtas, numa magnífica divagação cujo tom, que alterna o melancólico com a elegia, versa sobre a inevitabilidade da morte e a impermanência da vida, quando tudo é devorado pelo tempo (inclusive nós), restando apenas as lembranças.
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O gigante afogado |
Ao final de sua segunda temporada Love, Death & Robots continua com ótima qualidade, mas, sente-se que alguma coisa se perdeu, pois ao deixar a antologia numericamente mais enxuta, optando pelos estilos que devem ter tido maior resposta do público assinante, houve uma perda de muito daquela variedade que fazia a antologia primar pelo ecletismo que a fazia parecer uma Anima-Mundi do streaming, (refletindo outros pontos de vista), diluindo o impacto do conjunto. Mas ainda sim, o saldo é positivo, por refletir pensamento de dar uma personalidade à cada temporada.
E que venha então a 3ª Temporada, e esperemos que volte um pouco mais daquela caótica e viva pluralidade ou, algo completamente diferente.
Notas:
*1: O Vale da Estranheza (em inglês: Uncanny Valley) é uma hipótese no campo da estética, robótica e computação gráfica que diz que quando réplicas humanas se comportam de forma muito parecida — mas não idêntica — a seres humanos reais, provocam repulsa entre observadores humanos. O "vale" em questão é oriundo de um gráfico da reação positiva de um ser humano em função da verossimilhança de um robô. A expressão foi criada pelo professor Japonês de robótica, Masahiro Mori (1970). 不気味の谷現象 Bukimi no Tani Genshō (em japonês). [S.l.: s.n.] Fonte: Wikipedia
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