E o oeste nunca mais foi o mesmo
por Alexandre César
Jane Campion discute os ícones da masculinidade
Obs: Alguns spoilers
#Oscar 2022

Montana 1925, uma terra agreste, onde o avanço do progresso gradativamente se faz sentir
“Quando meu pai faleceu, eu só queria a felicidade de minha mãe. Que tipo de homem eu seria se não ajudasse a minha mãe? Se não a salvasse?”
Com essa reminiscência do jovem Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee de X-Men: Fênix Negra, em grande performance) se inicia Ataque dos Cães (2021) pungente drama produzido pela Netflix, escrito e dirigido por Jane Campion (O Piano) baseado no livro The Power of Dog de Thomas Savage, que discute em meio a vastas paisagens, plenamente captadas em sua solitária beleza pela fotógrafa Ari Wegner (Lady Macbeth) temas como auto repressão, masculinidade tóxica, aceitação e, acima de tudo, a solidão...
Os irmãos George Burbank (Jesse Plemons) e Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) cuidam do rancho e dos negócios, desde que os pais se retiraram para a cidade |
Montana 1925, os irmãos Phil (o sempre ótimo Benedict Cumberbatch de Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa) e George Burbank (Jesse Plemons de Judas e o Messias Negro destilando calma e resignação) administram a fazenda de gado da família há bastante tempo, desde que seus pais idosos se retiraram para viver confortavelmente na cidade. Os dois irmãos basicamente vivem a rotina de administrar a fazenda, convivendo quase que só com seus empregados, os vaqueiros, a Sra. Lewis, a cozinheira/ “governanta” (Geneviève Lemon de Eden) e Lola, a jovem empregada (Thomasin McKenzie de Jojo Rabbit) que ainda está aprendendo o ofício.
Mito: O finado Bronco Henry, ensinou Phil Burbank "a ser um homem", e ele escova e guarda a sua sela num local reservado, com uma placa metálica, quase como se fosse um altar. |
George cuida da parte administrativa, e burocrática, enquanto Phil, embora seja um indivíduo culto, de nível universitário, cuida da parte prática, convivendo com os vaqueiros ( de cuja liderança é inquestionável) e cuidando dos rebanhos, realizando toda a sorte de trabalho manual com destreza invejável. Um perfeito cowboy de maneiras rústicas e atitude firme...
Aqui, que se evidencia a maior diferença pois George é um indivíduo reservado e gentil, enquanto Phil é autoritário e dominador, sendo sempre desagradável, e tiranizando a todos à sua volta, fazendo questão de ter pouco cuidado com a sua higiene pessoal (embora água para o banho não falte) e não cansa de chamar George de “gordo”, estendendo a sua hostilidade a Rose Gordon (Kirsten Dunst de Melancolia em sensível atuação) a viúva, dona de uma estalagem onde os vaqueiros almoçam quando conduzem o gado para pastar. Phil particularmente implica com o jovem Peter (Smit-McPhee), filho de Rose, por causa de seus modos delicados, afirmando que ela “vai tornar o garoto um maricas!”
A frágil Rose,é mãe de Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee) rapaz sensível, inteligente e mais capaz do que todos imaginam |
Após algum tempo no internato, onde pretende estudar medicina,, Peter Gordon vai passar as férias com a mãe no rancho dos Burbanks |
George e Rose acabam por se casar, o que leva Phil a uma constante rotina de hostilidade contra a viúva (que vai gradualmente levando-a à depressão e ao alcoolismo) e inicialmente a seu filho, até que ele resolve orientar o garoto a como ser um cowboy e a lidar com o mundo, tal qual no passado, ele foi ensinado pelo falecido Bronco Henry, uma figura quase mítica, de quem Phil guarda a sela (escovando-a todos os dias) e guardando-a num local reservado com uma placa metálica, quase como se fosse um altar. Deste embate de forças temos um drama pungente cujo clima de tensão é palpável, graças aos acordes da música de Jonny Greenwood (Trama Fantasma) e a edição de Peter Sciberras (O Rei) que mantém um clima de tensão, sempre nos deixa esperando por alguma vilania que paira no ar, e que vai nos angustiando por parecer nunca chegar...
Muito já se falou sobre Ataque dos Cães, e sobre suas conotações bíblicas*1, sua simbologia*2, estudo de personalidade*3, e etc... por pessoas melhor embasadas do que eu, portanto tentarei não acrescentar mais elementos, pois estes já foram explanados.
George convida seus pais, para apresentar Rose à família... |
... além do Governador (Keith Carradine) e sua esposa (Alison Bruce) |
Campion enfatiza aqui, tal qual em O Piano (1993 - filme a tornou na primeira diretora vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes) nas relações trianguladas num filme de fronteira, aproveitando as paisagens inóspitas como reflexo das situações limite encenadas na história, e no caso de Ataque dos Cães, aborda-se isso de maneira mais incisiva, partindo do mesmo princípio de sentimentalismo represado, alimentado tanto por questões de cenário (em O Piano, a inexplorada Nova Zelândia, e aqui a expansão para o Oeste norte-americano) quanto das próprias relações que se criam entre os personagens. Fica claro também a transição de um estilo de vida para outro, pois enquanto o gentil George traz no comportamento educado o perfil mais próximo dos modos das grandes cidades, o dominador Phil é fiel à vida de cowboy, contente em passar os dias cuidando do gado, confraternizando com os trabalhadores e se atentando aos detalhes do ganhar-a-vida, a despeito de sua educação universitária.
Phil decide orientar Peter a "como ser um homem". A fotografia e o s figurinos enfatizam as peças de couro e o uso das mãos, em sequências plenas de simbolismo |
O grande trunfo da narrativa de Campion, é traduzir o tempo passado na história, não demarcando o andar dos dias (apesar de uma cena mostrando a passagem de Peter por um internato), jogando tudo em cima das relações entre os personagens, pois é a partir daí que o espectador é submetido às tensões de Rose e Phil, que a vê como uma invasora de seu espaço, e mais um sinal da civilização o qual se aproxima a cada dia passado. Sentimos a opressão de sua presença nos olhares, assovios, tiradas sarcásticas e toda sorte de iniciativa dele para fazer da vida dela um inferno, como na cena em que George quer apresentar Rose a família, convidando seu Pai (Peter Caroll de Podres de Ricos) e Mãe (Frances Conroy de Coringa), além do Governador (Keith Carradine de Deadwood) e sua esposa (Alison Bruce de One Lane Bridge) para que Rose exiba suas habilidades no piano, o que Phil acaba por sabotar. A partir daí, Peter toma um rumo de ação...
O desenho de produção de Grant Major (Megatubarão) cria junto com a direção de arte de Mark Robins (Até o Último Homem), Matt Austin (Máquinas Mortais), Nick Connor (Ash vs. The Evil Dead), George Hamilton (Mulan) e a decoração de sets de Amber Richards (Megatubarão), Gareth Edwards (Sweet Tooth) e Tony Rush, ambientes que refletem o estado de espírito de seus personagens, como a enorme casa dos irmãos Burbank, que embora sobriamente luxuosa, é escura no geral, como a grande sala (decorada com cabeças e animais empalhados) que tem um aspecto fechado, como a personalidade de Phil. Em contraste, com o aspecto meio mórbido da casa (talvez refletindo a presença do onipresente Bronco Henry, ou do que Phil considera como sendo esta lembrança). Em oposição, temos o único cômodo realmente luminoso: A cozinha, repleta de utensílios domésticos que refletem a transição da entrada da industrialização no modo e preparar a comida, facilitando a vida das empregadas, que dialoga com a estalagem de Rose, que embora simples é um ambiente onde as pessoas se reúnem para comer, conversar, cantar e dançar.
A cozinha é o local mais luminoso (e feminino) da casa mostrando a evolução do ferramental doméstico do período |
Os figurinos de Kirsty Cameron (Encantadora de Baleias) sublinham o contraste entre os modos de ser da vida da cidade, basicamente composto de paletós, calças, camisas sociais, vestidos, sapatos e tênis, em contraponto ao estilo de vida dos cowboys de uma Montana ainda não civilizada, com seus macacões e calças jeans, botas com esporas, lenços no pescoço, chapéus de grandes abas, e muito couro, enfatizando uma certa fetichização da figura do cowboy, presente no imaginário coletivo, que se reflete na cena em que uma Rose desesperançada doa uma leva de couro cru (que ia ser queimado) para o índio Edward Nappo, (Adam Beach de A Conquista da Honra) e ganha deste um par de luvas de sua confecção, e ela fica maravilhada com a suavidade ao toque destas.
O desenho de produção e a direção de arte recriam o período de transição do "velho oeste" para algo mais "civilizado", quando os carros já se estabeleceram |
Aqui o uso dos efeitos visuais, supervisionados por Charlie McClelan (Cowboy Bebop) é muito sutil, basicamente acertando a cor entre os takes, ampliando os cenários quando necessário para integrá-los à paisagem e, revelando na paisagem das montanhas o “cão”*4 do título, e que só Phil enxerga, fazendo que por isso ele se julge superior aos demais...
Ao final, Ataque dos Cães não deixa de dialogar (ainda que de uma maneira tangencial) com O Segredo de Brokeback Mountain (2005) de Ang Lee, onde a solidão oriunda da auto negação de si mesmo produz efeitos tão tóxicos e destrutivos quanto o antraz*5 naqueles que o praticam, como nos que orbitam à sua volta, seja na intenção de suas ações quanto no peso de suas almas...
Notas:
*1: Tanto o filme de Jane Campion quanto o livro de Thomas Savage referenciam um versículo bíblico no título. No final do longa, Peter lê o verso do Salmo 22 em voz alta: “Livra-me da espada, livra minha vida do “poder do cão.”.(”Poder do cão” teria sido um título melhor do que “Ataque dos cães”)
*2: O livro de Thomas Savage deixa claro que Phil, que com seus maus tratos, faz Rose beber.é o “cão”, independente da perspectiva bíblica: (“Graças ao sacrifício de seu pai e ao sacrifício que ele próprio fez a partir do conhecimento obtido nos grandes livros pretos de seu pai, o cão finalmente morre”, no livro).
3*: Phil é realmente como um “cão”, pois ele “late” para George e faz de tudo para irritar Rose. Como um cão com um osso, ele protege ferozmente os itens pelos quais se importa: o lenço e a sela de Bronco Henry, seu mentor, e discutivelmente seu amante.
*4: O termo “cão” também se refere à criatura feita de sombras, (a qual Bronco Henry treinou Phil para reconhecer nas montanhas) imediatamente reconhecido por Peter quando ele o questiona, pegando-o de surpresa, pois como a maioria dos colegas cowboys de Phil não conseguem enxergar essa criatura, Peter utiliza sua suposta existência para provar a própria superioridade, e sua habilidade (de ver o que Phil acreditava que aparecia apenas para ele) lhe dá uma grande vantagem.
*5: Antraz é uma doença bacteriana rara, mas grave, causada por uma bactéria formadora de esporos. Ele afeta principalmente animais. No gado é causada pela bactéria Bacillus anthracis, sendo uma doença infecto-contagiosa de origem animal, conhecida vulgarmente por Peste da Manqueira ou mal de ano. Ataca principalmente animais ruminantes herbívoros que pastam em áreas com solo contaminado.
Os seres humanos podem ser infectados pelo contato com um animal infectado ou por inalação de esporos oriundos de tecidos de animais mortos. Seus sintomas dependem da via de infecção, e podem variar de uma úlcera de pele com uma crosta escura a dificuldade respiratória. O tratamento antibiótico cura a maioria das infecções. O antraz inalado é mais difícil de tratar e pode ser fatal.
"- Cês tão vendo o cachorro???" "- Ali embaixo do dragão???" "- Só tô vendo duas girafas..." |
0 comentários:
Postar um comentário