quarta-feira, 8 de maio de 2019

Sobre levar desaforo para casa - Crítica - Filmes: O Insulto (2017)

 


Sobre oportunidades de diálogo perdidas... 

por Alexandre César

(Originalmente postado em 10 /02/ 2018)


  Ziad Doueiri e o difícil caminho da conciliação

 

Beirute, época atual. Uma discussão banal sobre a calha de uma varanda leva a um conflito Tony Hanna (Adel Karan), um cristão libanês mecânico de automóveis, e Yasser Abdallah Salameh (Kamal El Basha), um refugiado palestino que trabalha como capataz de uma empreiteira realizando uma obra pública. Apesar dos conselhos de amigos e de suas esposas - Shirine (Rita Hayek), esposa de Tony que está grávida e querendo voltar para o interior, e Manal (Christine Choueiri), esposa de Yasser que quer mudar-se para o exterior -, os dois entram em rota de colisão e acabam indo para o tribunal arrasando suas vidas, expondo as respectivas cicatrizes, mágoas e traumas do passado.  

 

Shirine (Rita Hayek) e seu marido, Tony Hanna (Adel Karan)

 Primeiro filme libanês a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro, O Insulto (2017, de Ziad Doueiri) venceu o Festival de Veneza na categoria melhor ator (Kamal el Basha). Ele mostra, de forma pontual, como indivíduos de posições firmes (e de cabeça quente) podem arrastar uma coletividade a rumos perigosos se o orgulho e a arrogância suplantarem o bom senso.

 

O advogado de Tony, Wajdi Wehbe (Camille Salameh): destaque

O roteiro, escrito por pelo próprio Ziad com Joelle Touma, teve como fonte de inspiração uma situação real vivida pelo próprio diretor (e testemunhado pela coautora) que, ao discutir com um encanador, o ofendeu com as mesmas palavras usadas no filme. Mais tarde o diretor pediu desculpas e, ao saber que ele foi demitido pelo incidente, saiu em sua defesa (coisa difícil de ver. Seja aqui, seja em uma boa parte do mundo...). Assim temos discutida de forma clara, didática, sem tomar partido de um lado ou outro, a questão da raiva e do rancor que envenenam tanto cristãos, quanto muçulmanos no oriente médio. O mesmo tipo de sentimento que confrontam judeus, palestinos, curdos e outros povos que, para nós brasileiros, parecem “alienígenas”, apesar de vivermos em nossos centros urbanos as nossas próprias “faixas de gaza”

 

Yasser Abdallah Salameh (Kamal El Basha) e sua advogada, Nadine (Diamand Bou Abboud)

 A atuação dos protagonistas é soberba e os coadjuvantes estão ótimos. O destaque vai para Wajdi Wehbe (Camille Salameh) - o advogado de Tony, responsável por iniciar o circo midiático que se cria em torno do litígio e seus desdobramentos, inflamando o já volátil cotidiano social do país. E, como se não bastasse isso, a disputa ainda ganha uma dimensão de conflito de gerações com a entrada de Nadine (Diamand Bou Abboud) - a advogada de Yasser que é filha de Wehbe. Isso faz com que, em decorrência dos acontecimentos, tanto Tony quanto Yasser acabem reconsiderando suas posturas e os seus próprios preconceitos.

 

O Insulto: como dois homens que não se conhecem podem se odiar tanto?

A fotografia de Tommaso Fiorilli e a edição de Dominique Marcombe enfatizam bem as ruelas e espaços restritos do habitat urbano de Beirute, com seus caminhos apertados onde todos se cruzam e se esbarram, facilitando tanto o conflito quanto o relacionamento entre povos de origens e visões de mundo distintas. Dessa forma, o único caminho é subir, construindo os arranha-céus que vão gradativamente tomando conta da cidade - seja pelo seu aumento populacional, seja pela necessidade substituir os ambientes antigos, tão desgastados pelos conflitos bélicos ocorridos a não tanto tempo atrás. Os que se dão bem são as empreiteiras que, não bastando faturar com as reconstruções, ainda podem economizar na qualidade da tinta empregada e/ou na compra de um equipamento inferior mais barato.



Ao final as duas partes preferem chegar à um entendimento para tocarem suas vidas

 

Ao final percebemos pela troca de olhares dos protagonistas, sublinhada de forma sutil pela música de Éric Neveux, que a principal causa de todos os conflitos é não conhecer, não entender o outro, não saber a sua história. Coisa que, em 1998, a graphic novel “A Piada Mortal”, de Allan Moore e Brian Bolland, acertou em cheio ao explicar de forma simples e clara o eterno conflito entre Batman e o seu arqui-inimigo Coringa e que o Homem-morcego expressou tão bem:

“Há anos eu combato e tento prever as ações deste homem em vão. Eu não conheço nada do seu passado. Eu não conheço ele. Ele não me conhece. Como dois homens que não se conhecem podem se odiar tanto? ”





 

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