Crônica de uma história alternativa
Cinema! Glamour! Fama! Hollywood!!! A Meca desta indústria que cria mitos e destrói vidas devido às pressões de um Status Quo que insiste em impor um padrão de “comercial de margarina” ao mundo e não quer ousar abrir as portas à mudança, padronizando e engessando astros em potencial em papéis que se tornam verdadeiras prisões estereotipadas. Agora, e se tal qual Quentin Tarantino*, imaginássemos um universo paralelo onde muitas injustiças históricas pudessem ser enfrentadas e superadas com muito trabalho duro e senso de justiça, corrigindo erros históricos e fazendo evoluir a forma de representar o mundo.
Criado por Ryan Murph (American Horror Story) e Ian Brennan (Glee) para a Netflix, Hollywood é uma versão de si mesma do período pós-segunda grande guerra, quando os EUA, em seu auge de potência hegemônica, ditava a política e a estética mundiais, refletindo uma nostalgia de um mundo que não existe mais em 7 episódios que variam de 45 a 58 minutos de duração sendo fácil de maratonar e apesar de ser fake em seu conteúdo, não deixa de ser simpático em seu todo.
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Archie Coleman (Jeremy Pope) e Jack acabam trabalhando para Ernie West (Dylan McDermott, ao centro) no seu posto que "presta serviços" à elite hollywoodiana... |
O fio condutor é o jovem candidato a ator Jack Castello (David Corenswet de The Politician) que veterano de guerra desempregado está na faina de bater de porta em porta batalhando um lugar ao sol e tirar o peso de pagar as contas de sua esposa Henrietta (Maude Apatow de País da Violência) apesar de não querer admitir que o casamento já não funciona. Em seu caminho ele une forças com Archie Coleman (Jeremy Pope de The Ranger ) roteirista negro e gay, que escreve o roteiro de "Peg", baseado na história real de uma jovem aspirante à atriz que suicidou-se** pulando do alto do famoso letreiro de Hollywood*** na colina e que todos conhecemos.
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Dentre as clientes de Jack Castello se destaca Avis Amberg (Patti LuPone) que arranja uma vaga para o jovem aspirante.... |
Jack e Archie passam a trabalhar para Ernie West (Dylan McDermott de O Desafio) dono de posto e cafetão dos seus frentistas para as madames endinheiradas de Beverly Hills e para os gays poderosos do meio cinematográfico. Jack acaba caindo nas graças de Avis Amberg (Patti LuPone de BoJack Horseman) ex-atriz e acionista do Ace Studios que o ajuda a ser contratado temporariamente como ator em formação****. Jack, vai burilando a sua tendência ao overaction, graças ao potencial que Ellen Kincaid (Holland Taylor de Dois Homens e Meio) diretora de elenco do estúdio vê nele, ao contrário dos demais. Jack faz amizade com Raymond Ainsley (Darren Criss de American Crime Story) jovem diretor que anseia por romper com paradigmas arcaicos, e fazer um cinema mais antenado com o mundo real e com a necessidade de mudança. Raymond é casado com Camille Washington (Laura Harrier de Homem-Aranha De Volta ao Lar) jovem atriz, cansada de “papéis de gente de cor”.
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Estereótipos: Camille Washington (Laura Harrier) está cansada de interpretar empregadas, e seu marido Raymond Ainsley (Darren Criss) é um jovem diretor que esconde ser "meio filipino"... |
E para fechar a trupe de talentos aspirantes temos a esforçada Claire Wood (Samara Weaving de Casamento Sangrento), filha dos donos do Ace Studios e o gente-boa Roy Fitzgerald, ou melhor, Rock Hudson (Jake Picking de Sicário: Dia do Soldado) que é tiranizado por Henry Wilson (Jim Parsons de Big Bang: A Teoria) agente de atores que faz o “teste do divâ” direto com ele e qualquer jovem aspirante ao estrelato. Rock, que acaba se envolvendo com Archie, a despeito de sua boa índole é o pior do grupo, sendo os seus testes bem engraçados de tão ruins que são (não que os de Jack também não sejam “qualquer-coisa”, mas representam bem o processo de aprendizado em que os “diamantes brutos” são lapidados, mostrando um momento de transição de uma forma de interpretação mais teatral para um naturalismo que já se impunha.
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Investimento: Camille, como outras novatas toma aulas de interpretação com Ellen Kincaid (Holland Taylor de costas) que trabalha a dicção e a impostação da voz entre outros elementos... |
O cabeça do estúdio Dick Samuels (Joe Mantello de The Normal Heart) junto com Ellen vê no roteiro de Peg uma oportunidade para levar o Ace Studios à um outro patamar, ganhando o apoio de Avis, quando Ace Amberg (Rob Reiner de O Lobo de Wall Street) pai de Claire e dono do Ace Studios fica imossibilitado após ter um infarto na companhia de sua amante, a atriz Jeanne Crandall (Mira Sorvino de Poderosa Afrodite) ficando com o estúdio em suas mãos, apesar das intromissões de Lon Silver (Brian Chenoweth de Ray Donovan) o advogado intrometido do Ace Studios que tenta impedir a realização de um filme controverso, pois Archie muda o nome do filme para "Meg" tornando-o um filme de superação e crítia social e Raymond escala Camille para o papel principal, e para um papel codjuvante ainda resgata a atriz de ascendência chinesa Anna May Wong (Michelle Krusiec de O Convite) injustiçada no passado, atraindo a ira dos setores conservadores da sociedade americana por colocar uma negra num papel principal, fugindo aos padrões W.A.S.P.***** vigentes, e sacudindo a cidade e a indústria.
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Oportunidade: Dick Samuels (Joe Mantello), Ellen Kincaid e Eleanor Roosevelt (Harriet Sanson, na cabeceira da mesa) convencem Avis de filmar "Meg" e fazer história... |
Ainda temos participações especiais, representando personalidades do passado como Hattie McDaniel (Queen Latifah de Chicago) primeira negra a ganhar o Oscar por E O Vento Levou e que dá grandes orientações à Camille sobre os obstáculos enfrentados pelos atores negros; Tallulah Bankhead (Paget Brewster de Mentes Criminosas) atriz pioneira da prmeira geração de estrelas do cnema sonoro; George Cukor (Daniel London de O Relatório) diretor consagrado, famoso por suas “festinhas” com garotões à procura do estrelato; Vivien Leigh (Katie McGuinness de Expresso do Amanhã) a eterna Scarlet O´Hara de E O Vento Levou de talento (e gênio difícil) incontestável; Noel Coward (Billy Boyd da trilogia O Senhor dos Anéis) ator da velha guarda assumidamente gay; Irving Thalberg (Timothy Dvorak de A Garota do Tempo) executivo de vários estúdios, sendo referência até hoje******; e Eleanor Roosevelt (Harriet Sanson Harris de Trama Fantasma) viúva do presidente Franklin Delano Roosevelt (que tirou os EUA da Grande Depressão de 1929 a 1941) e figura de proa de movimentos sociais; entre vários outros.
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Rock Hudson (Jake Picking à esquerda) é tiranizado pelo agente Henry Wilson (Jim Parsons à direita) que adora fazer "brincadeiras" com jovens aspirantes... |
Os valores de produção são competentes, destacando-se a fotografia de Simon Dennis (Pose) e Blake McClure (Miracle Workers) que valoriza a pelheta de cores vivas, remetendo ao Technicolor da época, auxiliado pelos discretos efeitos visuais da Fuse Effects para reconstruir a paisagem deste mundo mítico e dinâmico, cadenciado pela edição de Suzanne Spangler (À Beira do Abismo) e a música alegre de Nathan Barr (True Blood) que faz um bom amalgama com o desenho de produção de Matthew Flood Feguson (Hellbent) junto com a direção de arte de Mark Robert Taylor (História de Horror Americana) e a decoração de sets de Melissa Licht (The Hero) que reconstitui junto com os figurinos de Sarah Evelyn (Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw) esse período da América Imperial, que se elevava como a nação hegemônica e junto com a sua pujança hegemônica, tinha no cinema a sua principal ferramenta para ganhar os corações e as mentes do resto do mundo com glamour, elegância e ilusão, muuuiita ilusão.
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Não-W.A.S.P. : Anna May Wong (Michelle Krusiec) e Camille fogem à padronização dos filmes da época, chocando o Status Quo... |
Ao final Hollywood termina como a sua própria fantasia a cerca de si mesma, divertida, fake e luminosa, como se nos últmos 80 anos o sistema de estúdios fosse permitir surgir um protagonsmo não-W.A.S.P. e a representatividade LGBT tivesse tido espaço, ajudando a criar um mundo melhor e mais justo; um mundo onde Rock Hudson não tivesse tido que casar com sua secretária Phyllis Gates (de 9/ 11 de 1955 a 13/ 08 de 1958) para preservar a carreira, e viver a sua verdade, com direito ao fim à um belo e luminoso “The End”.
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Lições: Hattie McDaniel (Queen Latifah) aconselha Camille a brigar por seu espaço: -"Eles nunca vão te perdoar por brilhar neste filme!" |
NOTAS:
*: Como já havia feito em Bastardos Inglórios (2009) e Era Uma Vez... em Hollywood! (2019) Tarantino reescreve os fatos históricos de forma assumidamente descarada, criando uma realidade paralela à nossa.
**: Peg Entwistle, uma aspirante à atriz cujos planos não deram certo, pulou para a morte do alto do “H” do letreiro, em 1932.
***: Inaugurado em 1923, o letreiro foi construído por H.J. Whitley para anunciar um loteamento residencial. Inicialmente uma construção provisória, acbor se tornando icônico por aparecer repetidamente nas telas, ganhando permissão da prefeitura para lá ficar, mas ficou abandonado a partir de 1939, deteriorando-se, e desde o final da década de 70, ricos doadores privados têm financiado a sua manutenção. Ao longo da história surgiram muitas versões de como o letreiro, que originalmente se chamava “Hollywoodland” (“Terra da madeira de lei”) para (“Madeira de lei”), das formas mais variadas (na realidade foi mudado em 1949).
****: Star System era o sistema vigente até o final dos anos 1950, quando os estúdios contratavam os potenciais astros por um período inicial, e investiam maciçamente neles, com aulas de dicção, canto, dança, interpretação e eles recebiam uma remuneração, além da cobertura na imprensa necessária para promovê-los, num rígido controle de suas vidas pessoais (por exemplo, quem fosse gay tinha de ser discreto, arrumando relacionamentos ou até casamentos de fachada) exigindo muita disciplina. Findo esse contrato inicial, se o ator/ atriz desse retorno em popularidade apresentasse potencial de bilheteria, assinaria outro contrato, mais interessante financeiramente e seria de fato astro do estúdio, e iria renovando e até renegociando esse enquanto ele/ a fossem garantia de bilheteria e se não dessem problemas com escândalos, vida desregrada ou qualquer coisa que arranhasse o bom nome do estúdio.
*****: W.A.S.P. ou White Anglo-Saxan Protestant (Protestante Anglo-Saxão Branco) era o padrão vigente no meio audiovisual norte-americano, havendo pouca visibilidade para tipos latinos, orientais, indígenas, asiáticos ou negros fora de uma representação estereotipada ou demonizada. Coisa similar à história da nossa TV, em que normalmente grandes atores e atrizes negros passam quase uma vida inteira só fazendo papéis de escravos, serviçais ou bandidos. Na história da TV um pioneiro da ruptura para com o Padrão W.A.S.P. foi Gene Rodenberry na década de 60 com Star Trek ao fazer uma nave com tripulação internacional e multirracial com negros, japoneses, russos e alienígenas no mesmo patamar que os humanos de padrão americano.
******: Um dos grandes momentos da entrega do Oscar costuma ser a entrega do Prêmio Memorial Irving G.Thalberg (Irving G. Thalberg Memorial Award) é uma distinção especial atribuída periodicamente a produtores, cujo principal trabalho reflete uma constante produção de filmes de qualidade, sendo consideradas padrão de excelência.
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