domingo, 2 de abril de 2023

Clássicos - 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)

 


Passados mais de meio século, ainda esperamos o futuro


Por Alexandre César
(Originalmente publicado em 02/05/2018)

Filme permanece o clássico Sci-Fi dos clássicos
 
 
# 2001UmaOdisséiaNoEspaço55Anos

A Aurora do Homem: 4.000.000 de anos atrás, a criação de ferramentas dá o pontapé inicial na nossa evolução...

 

Fruto da colaboração de três anos do cineasta Stanley Kubrick e do escritor Arthur C.Clarke, 2001: Uma Odisseia no Espaço estreava em 1968, sendo o marco cinematográfico que unia cinema autoral de grande experimentalismo narrativo e ficção-científica, gênero até então considerado de segundo escalão, que aqui abria mão de monstros e discos-voadores para especular com altas doses de filosofia as origens e rumos do homem.

 

Um australopitechus (Donald Richter) e a descoberta do uso de ferramentas/armas. A maquiagem de Stuart Freeborn não foi indicada ao Oscar porque os membros da Academia pensaram que fossem macacos reais


O filme tem três movimentos, como uma sinfonia. No primeiro vemos a Aurora do Homem, há cerca de 4 milhões de anos, na África, onde um grupo de australopitechus ou similares vivem a dura vida de procurar comida, água, fugir de predadores e lutar contra grupos rivais. Neste cenário surge entre eles, numa manhã, um objeto misterioso: uma placa retangular negra, um monólito de algum tipo de material liso e polido. Aos poucos o grupo vai tocando o objeto e, de uma foram inconsciente para eles, tudo muda. Marcando este início, temos Also Sprach Zarathustra (“Assim Falou Zarathustra”), canção de Richard Strauss, tão associada ao filme e a ficção-científica como um todo, que custamos a crer que ela foi criada em 1896. 

 

A estação orbital valsando ao som de "O Danúbio Azul", de Johann Strauss

 

A seguir temos um longo salto adiante no tempo e temos o segundo movimento, a valsa espacial, quando o homem já tem veículos orbitando ao redor do planeta, de formas, função, tamanho, e nacionalidades distintas. Uma contínua valsa de tecnologia e poder.

 

À bordo dos transportes, as comissárias de bordo, usam toucas (para evitar eletricidade estática gerada pelos cabelos ) e usam calçados com solado aderente


Aqui acompanhamos o Dr. Heywood Floyd (William Sylvester), um cientista americano, num voo da Pan Am para a estação orbital, de onde seguirá para a Lua, para participar de uma investigação secreta, uma descoberta que poderá mudar os rumos da Humanidade.
 

 Na estação, o  Dr. Heywood Floyd (William Sylvester) telefona para casa e deixa um recado com sua filha (na verdade, a filha de Kubrick)


Floyd e outros pesquisadores vão de ônibus lunar até a cratera de Tycho Brye, examinar a descoberta: a Anomalia Magnética Tycho Um (AMT-1), o artefato recém encontrado e"deliberadamente enterrado" quatro milhões de anos atrás, parece ser o mesmo monólito que vimos na aurora da Humanidade. Floyd, usando traje espacial toca o monólito tal qual o australopitechus fizera no passado. E, mais uma vez, tudo muda. Ao ser banhado pela luz do sol pela primeira vez em milênios, o monólito emite um poderoso sinal de rádio rumo ao espaço profundo. O homem saíra da Terra e, a partir daí, se prepara para desbravar o infinito. Este segundo movimento é marcado pela valsa O Danúbio Azul, de Johann Strauss. Outra canção do século XIX (ela é de 1866) que cai como uma luva para a proposta de Kubrick, ilustrando as naves dançando graciosamente pelo vácuo do espaço. 


O módulo de pouso lunar. O filme contou com supervisão científica de Fred Ordway, da NASA para o maior realismo possível

 

Dezoito meses depois daquele momento na Lua, vemos a nave espacial Discovery One seguindo para Júpiter. Sua tripulação é composta pelo Dr. David Bowman (Keir Dullea), o Dr. Frank Poole (Gary Lockwood) e outros três cientistas que estavam em hibernação criogênica. As principais funções da nave eram controladas por "Hal" (voz de Douglas Rain), o computador HAL 9000 (de "Heuristic ALgoritmic"- Algoritmo Heurístico), que monitora todas as dependências da nave e seus tripulantes com seus sensores vermelhos, que remetem ao olho de um ciclope. Sua voz apesar de monocórdica, transparece a sua grande vaidade de ser infalível, perfeito.


Discovery One. Uma superdetalhada miniatura feita na escala de 1:10, medindo 18 metros de comprimento.


Após um falso alarme deflagrado por Hal, o que se segue é uma tragédia recheada de suspense e paranoia que reflete aquilo que o mestre em Ficção Científica Isaac Asimov chamou de “Complexo de Frankenstein”: a criatura que se volta contra aquele que foi criado para servir. O problema é que apenas Hal sabia o verdadeiro objetivo daquela missão e realizá-la era mais importante do que a vida de seus colegas humanos. O conflito Homem x Máquina conclui com Bowman desativando os módulos das funções mentais do computador de forma cirúrgica, enquanto ouvimos a voz constante e monótona de Hal em seu declínio, regredindo, antes de sua “morte”, até a sua primeira memória, quando aprendeu a cantar “Daisy Bell” - por sinal, outra canção do século XIX. Ela foi composta por Harry Dacre em 1892.


Frank Poole (Gary Lockwood) e Dave Bowman (Keir Dulea). Rumo ao infinito, apesar do "mau pressentimento"...

 

Após as funções independentes de Hal serem desligadas, uma mensagem pré-gravada por Heywood Floyd é ativada, explicando a verdadeira natureza da missão: contatar em Júpiter o destino da emissão do sinal de rádio do monólito na Lua. 

 

HAL 9000 (voz de Douglas Rain). O olho que tudo vê e lê...

 

Temos então o início do terceiro movimento, Júpiter e Além do Infinito, quando os diálogos cessam de vez. Quando a Discovery One chega a órbita de Júpiter, Bowman sai num módulo extra veicular e encontra, flutuando na órbita do planeta, um monólito idêntico ao que estava na Lua, mas de maiores dimensões.

 

O momento da "lobotomia" e "morte" de HAL 9000. "Fixe a câmera no fundo do cenário e coloque o ator pendurado de cabeça para baixo..."

 

Bowman se aproxima. O monólito desaparece na escuridão e se descortina diante do astronauta um portal estelar tragando o módulo para uma viagem desconcertante pelo espaço, assustando e desorientando Bowman, que vê paisagens, mundos, dimensões de cores incomuns, além da sua compreensão. Diferente dos movimentos anteriores, esta é uma sequência marcada por músicas então contemporâneas, compostas por Gyorgy Ligeti. Ela se inicia com “Réquiem para Soprano, Mezzo Soprano, dois corais mistos e orquestra”. Aqui, porém, os silêncios e ruídos difusos dão o tom.


O portal estelar. Nunca a grandeza esmagadora, opressiva e fascinante do cosmos foi tão bem traduzida em imagens


Ao término dessa sequência psicodélica, temos um Bowman envelhecido, ainda usando seu traje espacial, num quarto com decoração no estilo Luís XVI. Após uma série de imagens neste ambiente, com interpretações em aberto, Bowman é um ancião moribundo deitado na cama prestes a morrer, tendo o monólito diante de si. Estende a mão para tocá-lo como o australopitechus e Heywood Floyd fizeram e, vemos uma luz iluminando o leito. E mais uma vez, tudo muda. 

 


Bowman no leito de morte tenta tocar o monólito. Eterno retorno

 

Percebemos uma esfera luminosa com uma forma difusa similar a um feto. Subitamente nos vemos de volta ao espaço em torno da terra, sendo tudo observado pela estranha forma de vida, similar a um bebê com uma expressão de assombro face tudo a sua volta, e reconhecemos por seus olhos e traços o rosto de Dave Bowman.

 

Agora, o homem está pronto para um plano maior. Sua infância se inicia...


Filmado em Super Panavision, 2001: Uma Odisséia no Espaço e lançado originalmente em 02 de abril de 1968 (no Brasil, 04 de julho de 1968), foi exibido no Rio de Janeiro, na agora lendária sala de Cinerama (processo em 70 mm em tela gigante e ultra curva, sendo um processo de propriedade da MGM, que lançou muitos de seus filmes campeões de bilheteria neste formato) do Cinema Roxy, em julho de 1968. Como invejo quem o viu nestas condições. Eu só vi o filme em 1974, nos meus 12 anos, no cinema (já fechado) Madureira 2, e saí tão abestado quanto o australopitechus do filme, ou mais. Havia gostado e muito, mas tinha sérias dúvidas se havia entendido mesmo. Quatro anos depois, após ter lido o livro feito por Arthur C. Clarke em paralelo à sua elaboração do roteiro do filme, usufrui mais da obra, apesar de ver que as explicações literárias pouco influíram na degustação do filme.

 

O título: O mundo não acaba em 2000


Existem coisas que são melhores sentidas, ao invés de sabidas...

Uma coisa que não me toquei ao longo dos anos era que o título do filme: “2001” contradizia o tão-anunciado fim do mundo no ano 2000, extensamente anunciado por videntes e profetas da cultura cristã. 

 

Concepção de Robert MaCall do interior do "salão" giratório da Discovery One


Quantos fins de mundo tivemos desde então? 2012 já é passado. Fora que Kubrick usou o termo “Odisseia”, como a de Homero, em seu título. Segundo Clarke, "nos ocorreu que, para os gregos, as vastas extensões do mar devem ter tido o mesmo tipo de mistério e de afastamento que o espaço tem para a nossa geração".

 

As naves que aparecem no prólogo no espaço, na realidade são plataformas de mísseis nucleares, mas como ninguém disse isso, esse contexto de "Guerra Fria" não foi captado



Caso, 2001 fosse somente um exercício de futurologia, seria um filme de ficção científica banal. E falho: Em 2001, a Pan Am havia falido, o videofone da Bell não aconteceu, substituído pela comunicação via rede, como a Internet. Sem falar no seu principal “erro” futurístico: que estaríamos fazendo viagens espaciais de rotina. Anos depois do filme, Clarke dizia que, se não tivesse havido a guerra do Vietnã, a história teria sido outra (se levarmos em conta que no conflito os EUA chegaram a gastar em média um milhão de dólares por dia no conflito, eu não o contradigo...) e que talvez pudéssemos já estar já colonizando a lua e olhando para mais longe...

 

O "cooper" de Frank era feito com a câmera fixa no cenário, que girava, e permitia ao ator correr como se estivesse numa esteira, ou  então, a câmera ia correndo atrás ou na frente do ator enquanto o cenário girava, dando outros pontos de vista



Tirando os filmes mudos e os que não devem mesmo ter falas (como A Guerra do Fogo - 1981, de Jean-Jacques Annaud, que se passa antes da invenção da comunicação verbal), este é o longa-metragem com menos diálogos na história do cinema, só sendo proferida uma fala após 25 minutos corridos e sem nenhuma fala nos seus 23 minutos finais, perfazendo um total de 88 minutos sem uma única fala num filme de 150 minutos.

 

O interior da estação orbital, com seu visual clean. Indicações para o Oscar de Direção de arte, Diretor e Roteiro original, mas só ganhou o de Efeitos Visuais

 

Um grande destaque foi o uso, para embalar suas cenas icônicas, de peças de música clássica - temas que originalmente nada tem a haver com ficção científica. Este é o caso de O Danúbio Azul (uma música de dança de salão, feita para as massas da sua época), ou o uso do adágio da Suíte Gayane, de Aram Khachaturian, para os momentos mais solitários. O que dizer então do tema título Also Sprach Zarathrustra, que transmite um apelo mitológico, cosmológico, de uma grandiosidade épica inigualável, que passou a nos remeter sempre a algo maior do que a vida? 

 

Desde "2001" é comum que espaçonave, estação orbital ou base estelar tenha corredores octogonais ou hexagonais


 

Podemos comparar com a trilha originalmente composta por Alex North, colaborador de Kubrick em Spartacus (1960), mas que foi rejeitada pelo diretor. É um trabalho muito bom, como todas as partituras de North, mas parece de um filme épico histórico, dando uma dimensão humana, emocional, a algo que precisava estar além desta. Está disponível nos serviços de streaming, como o Spotify. É só procurar. 
 
 

A despeito de toda a tecnologia, alguns efeitos eram simples, como a caneta, colada num vidro movimentado à frente da câmera



O filme foi um pesadelo logístico por se basear em um futuro crível do ponto de vista científico e astronautico, tendo um espaço que, por ser no vácuo, não propaga o som. Ele contou com um exército de técnicos britânicos e americanos lutando para acompanhar as mudanças no roteiro e adequá-las ao design de objetos, naves e cenários.

 

O trajes de astronautas eram realmente funcionais, não embaçando os visores pela transpiração...


Os trajes de astronauta usados não tinham os vidros embaçados pela transpiração porque ventilavam mesmo ar internamente. As comissárias de bordo usavam toucas para prender os cabelos e evitar eletricidade estática, os tripulantes das naves andavam de acordo como andariam pessoas com solados para ambiente zero-gravidade. E como destaque temos o grande cenário do interior de Discovery (parabéns Anthony Masters e Harry Lange!): giratório como uma roda-gigante para criar a ilusão de força centrífuga gerando gravidade artificial. 

 

A cena da passagem da era primitiva para o espaço é feita pela edição da cena do osso arremessado pelo australopitechus, cortando em seguida para uma nave no espaço. A imaginação do espectador leva a fusão dos dois elementos pela semelhança de formato



Douglas Trumbull desenvolveu uma técnica de filmagem em câmera superlenta que filmava a maquete (18 metros) da Discovery que depois ao ser acelerada fazia a nave se mover ainda lenta, mas deixava a exposição do modelo com aquelas luzes fantasmagóricas de alto contraste como as vistas nas imagens dos vôos da NASA

 

O design da Discovery One sofreu várias alterações, até chegar a este, que remete ao de um espermatozóide, pois o monolito seria o óvulo, e ambos dariam origem à "criança espacial"


 

Durante anos a maquete da Discovery One foi guardada num galpão, até o seu dono cobrar da M.G.M. um aumento do aluguel, que ela não concordou. Isto levou à remoção e perda do modelo. Até as suas plantas técnicas foram perdidas. Quando foram fazer 2010: O Ano em que Faremos Contato (1984, dirigido por Peter Hyans), para reconstruir o modelo, o designer Albert Brenner apelou para o seguinte procedimento: projetar fotogramas do filme, puxar os seus pontos de fuga e fazer o levantamento das vistas técnicas para refazer as plantas. Simples, não? 

 

Os móddulos de Atividades Extra Veiculares tinham braços articulados que eram bastante funcionais para os padrões tecnológicos da época


Talvez o que tenha permitido que 2001: Uma Odisseia no Espaço continue tão impactante até hoje seja por ter sido um dos poucos filmes da história do cinema norte-americano (como ocorreu com Cidadão Kane, de Orson Welles) onde os executivos não conseguiram penetrar nos sets de filmagem ou influenciar de alguma forma na produção do filme. A filmagem na Inglaterra (com um custo mais barato do que em Hollywood) ajudou para mantê-los afastados, além do fato de Kubrick já possuir uma fama de perfeccionista capaz de unir intelectualidade com lucro nas receitas, criando uma “arte” respeitável ao mainstream da época. Além disso, como uma obra propositadamente aberta a várias interpretações, ele cresce aos olhos de quem vê. Pois se você adicionasse muita explicação a 2001, ele vira Interestelar (2014, dirigido por Christopher Nolan) e, se você tirar as explicações de Interestelar, provavelmente ele se assemelhará ainda mais a 2001. Adoro o filme do Nolan, mas a interferência de executivos, para se garantir um “produto vendável”, e a própria preguiça de boa parte das plateias a algo mais cerebral, dificulta saltos de fé mais arrojados atualmente. 

 

O livro de Clarke, escrito em paralelo ao roteiro original, manteve o destino da Discovery como Saturno. Como não foi possível fazer os anéis de forma convincente, no filme o destino da nave foi Júpiter



Tendo sido sucesso de público e crítica, e influenciado todo o cinema de ficção científica posterior (tanto que, desde então até Star Wars, os filmes do gênero fugiram de fazer algo ambientado no espaço) 2001 ainda gerou um derivado inesperado: a quadrinização em 1976 por nada mais nada menos do que Jack Kirby, o rei criador do referencial visual da Marvel, aqui fazendo um dos seus trabalhos mais incríveis. 

 

Interestelar(2014) de Christopher Nolan: O mais próximo de 2001 que já chegamos. Um ótimo filme diga-se de passagem...


A série foi publicada em A série foi publicada em Marvel Treasure Special, uma revista com duas vezes o tamanho padrão, com incríveis resultados: nunca o estilo pedregoso do desenhista, com seus personagens míticos, funcionou tão bem em algo fora do contexto dos super-heróis. 

 

A quadrinização por Jack "The King" Kirby. Audaciosamente indo aonde a Marvel jamais esteve...



Poderia dizer que, contando a mesma história, Clarke era um escritor, Kubrick era um pintor e Kirby, era um escultor, cada um reinterpretando os símbolos desta história épica, mitológica e arquetípica.Kirby, após adaptar o filme, chegou a criar uma série ambientada naquele cenário, mas adaptados à sua linha narrativa, com monstros e guerreiros, que teve 10 edições, Nestas páginas surgiu o personagem Homem-máquina, e, pouco depois, Os Celestiais, que foram posteriormente incorporados à continuidade do Universo Marvel - à revelia do autor, pois ele acreditava que diluiria o seu impacto.

 

Nas páginas de "2001" de Kirby, surgiu o Homem-Máquina, posteriormente incorporado ao Universo Marvel

 

Caso eu fosse um dono do estúdio detentor da marca, jamais faria uma refilmagem de 2001 - o filme de Kubrick é insuperável. Mas talvez filmasse, por meio de captura de performance, a adaptação do Kirby e intitularia apenas de A Odisséia no Espaço, pegando toda aquela iconografia lisérgica e traduzindo-a para a tela. Seria uma nova forma de narrar a mesma história.

 

Primeiro número da quadrinização de Kirby. Poderia servir para uma nova narrativa...


 
Tecnologia e recursos existem. Existirá a ousadia? Existirá algum dia um novo Ulisses para encarar Hal, o ciclope de inteligência artificial???



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