Jogando bem os dados
por Alexandre César
Surgido no ano de 1974, sendo oficialmente o primeiro RPG*1 (Role Playing Game), Dungeons & Dragons (Masmorras e Dragões, em português) é um jogo criado por Gary Gygax e Dave Arneson. No início, o D&D (abreviatura de Dungeons & Dragons) era um simples complemento para um outro jogo de miniaturas chamado Chainmail (cota de malha), criado em 1971 por Gygax e Jeff Perren. Porém acabou dando origem a um jogo totalmente diferente e inovador, extremamente simples comparado aos Jogos de Interpretação da atualidade, influenciado por jogos de guerra/estratégia.
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Produzido pela Marvel, a série animada "Caverna do Dragão" foi mais popular no Brasil do que no resto do mundo |
O jogo virou uma febre entre o público nerd, geek e além, gerando várias expansões em diversas mídias*2. Uma delas foi uma série animada lançada em 1983 que foi extremamente popular no Brasil (aqui chamada de Caverna do Dragão). Ela acompanhava um grupo de jovens amigos transportados para um reino mágico em sua busca de como retornar para casa. Cada um deles encarnava o arquétipo de um personagem deste tipo de jogo. Tentou-se levar o conceito para o cinema, sendo mais uma vítima “maldição dos games”, o resultado foi o horroroso: Dungeons & Dragons: A Aventura Começa Agora (2000, de Courtney Solomon), com Jeremy Irons (O Rei Leão) , Justin Whalin (Superman: As Aventuras de Lois & Clark), Tora Birch (Ghost World - Aprendendo a Viver) e Marlon Wayans (As Branquelas). Sua pífia performance de público e crítica sepultaram por mais de uma década todo e qualquer esforço de se tentar transpor para tela grande este universo narrativo.
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O "harpista" (ladrão) Edgin (Chris Pine) e a bárbara Holga (Michelle Rodriguez) são a dupla condutora da trama |
Agora, dentro deste revival dos anos 80, no qual o jogo foi um de seus grandes ícones (vide, em especial, o destaque dado a ele na quarta temporada de Stranger Things), as atenções se voltaram para este universo narrativo, uma vez que o até a pouco tempo rentável filão dos super-heróis mostra sinais de saturação. Os estúdios tentam criar uma potencial franquia no também popular gênero fantasia, arregimentando os aficionados e o grande público criado pelas trilogias de Peter Jackson baseadas em J.R.R. Tolkien - que, aliás, é uma obra a qual o jogo deve muito de sua concepção.
Dirigido pela dupla responsável pelo ótimo A Noite do Jogo, John Francis Daley e Jonathan Goldstein, Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (2023) aproveita este momento de impasse da Marvel e DC para marcar posição com uma aventura descontraída, dinâmica e divertida. O filme serve de porta de entrada para o grande público, ambientado em um mundo colorido e visualmente rico, apresentando uma narrativa leve e descontraída.
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Edgin e Holga trazem o atrapalhado mago Simon (Justice Smith) e a druida Doric (Sophia Lillis) para a trupe visando um grande golpe |
A dupla, que assina o roteiro com Michael Gilio (Jolene) baseado em seu argumento feito com Chris McKay (Jim no Mundo da Lua), acerta na narrativa. Apesar de rasa na mecânica de como funciona uma partida de Dungeons & Dragons, ela apresenta este universo de forma irresistível para um público maior e não-iniciado, que, no máximo, curtia o desenho Caverna do Dragão ou as trilogias cinematográficas de O Senhor dos Anéis e O Hobbit. Isto garante logo de cara um amplo terreno para a expansão de uma potencial franquia.
Nesta toada de personagens que encarnam os principais arquétipos do jogo, conhecemos a dupla Edgin (Chris Pine, de Mulher-Maravilha 1984, bem à vontade no papel), o menestrel/ harpista (ladrão, na realidade) e Holga (Michelle Rodriguez, de Velozes & Furiosos 9, mais do que talhada para fazer o tipo “casca-grossa”), a bárbara. Eles amargam uma temporada numa prisão inóspita por conta do fracasso de sua última ”aventura”. Foram capturados, ao contrário dos outros membros da equipe - o atrapalhado mago Simon (Justice Smith, de Jurassic World Domínio), o carismático picareta Forge (Hugh Grant, de Magnatas do Crime, que está ótimo, provando que poderia ser um bom Dick Vigarista) e a feiticeira Sofina (Daisy Head,de Sandman , gélida e de presença intimidante). Edgin carrega a mágoa de estar distante de sua filha Kira (a vivaz Chloe Coleman, de Case Comigo) cuja tutela, Forge assumiu durante a sua ausência.
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Doric apresenta poderes transmorfos, além de ser exímia no uso do estilingue |
Após deixarem a masmorra para trás, a dupla reúne o grupo (não sem algumas reviravoltas) incorporando a ele a druida Doric (a ótima Sophia Lillis, de It: Capítulo II) e o paladino Xenk (Regé-Jean Page, de Bridgerton, genialmente hilário na composição de seu papel), que surpreende em sua participação.
A rica fotografia de Barry Peterson (A Noite do Jogo), auxiliada pela dinâmica edição de Dan Lebental (Homem-Formiga e a Vespa), sabe fazer uso de ampla palheta de cores de acordo com o clima de cada sequência, criando belas imagens que, ora lembram ilustrações de livros de instrução, ora parecem saídos de um game de fantasia, dialogando com o ótimo desenho de produção de Ray Chan (Falcão e o Soldado Invernal). Auxiliado pela direção de arte de Robert Cowper (O Homem do Norte), Tom Still (O Exterminador do Futuro: Futuro Sombrio), Jennifer Bash (Falcão e o Soldado Invernal) e Shira Hockman (Pokémon: Detetive Pikachu), eles criam ambientes visualmente ricos e coloridos. A decoração de sets de Naomi Moore (The Witcher) e Cosmo Sarson (Dumbo) apresenta easter eggs típicos de uma rodada de D&D, como espelhos, cajados e baús com ferramentas que fazem o seu papel de Deus Ex Machina, auxiliando a narrativa, para logo serem descartados e esquecidos.
Os figurinos de Amanda Monk (After Life: Vocês Vão Ter de Me Engolir) e o design de maquiagem de Alessandro Bertolazzi (Cyrano) caracterizam os personagens relacionando-os aos seus arquétipos, permitindo uma fácil identificação e a aceitação destas versões. A música de Lorne Balfe (Ingresso para o Paraíso) é eficiente no acompanhamento da jornada, mas não chama muita atenção para si, não apresentando nenhum tema realmente marcante.
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A direção de arte e os efeitos visuais recriam ambientações conhecidas dos jogadores... |
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...culminando numa arena, onde um grupo conhecido dos brasileiros dá as caras |
Variados e eficientes, os efeitos visuais de Moving Picture Company (MPC), Industrial Light & Magical (ILM), Clear Angle Studios, Industrial Pixel Visual Effects, Day For Nite e os efeitos práticos de Legacy Effects, supervisionados por Scott Benza (Kong: A Ilha da Caveira), Khalid Almeerani (O Chamado da Floresta), Axel Bonami (Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania) e Mark Botolotto (The Last of Us) acompanham a dinâmica narrativa, complementando ricamente o design de produção e a direção de arte, criando imagens coloridas e detalhadas que vão de referências às ilustrações dos Irmãos Hildebrandt a de histórias de terror ou à ambientação do primeiro filme da série Maze Runner.
No cômputo final, graça a sua direção esperta, seu elenco carismático e ótimos valores de produção, o grande público deve sair satisfeito com Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes. Quem sabe até ele fique com vontade de querer aceitar o convite daquele amigo chato que joga RPG. Quem sabe, se ele não for muito chato, também fique agradecido ao amigo por gerar um interesse pelo jogo, permitindo-lhe entrar de vez no mundo dos jogos de dados multifacetados e fazer o seu show particular, exibindo os seus dotes narrativos de Game Master e (quem sabe) criar um grupo de discípulos...
*1:
Role-playing game
("jogo narrativo", "jogo de interpretação de papéis" ou
"jogo de representação"): Também conhecido como RPG, é um tipo
de jogo em que os jogadores assumem papéis de personagens e criam narrativas
colaborativamente, com cada partida chamada de “aventura”. O progresso de um
jogo se dá de acordo com um sistema de regras predeterminado, dentro das quais
os jogadores podem improvisar suas trajetórias livremente e cujas
escolhas determinam a direção que o jogo irá tomar. Os RPGs são, em geral, mais colaborativos e sociais do que competitivos, embora vários deles sejam de confronto. Um jogo típico une os seus participantes em um único time que se
aventura como um grupo para realizar uma missão, que varia de uma partida para outra. Isso o torna fundamentalmente diferente de jogos de
tabuleiro, jogos de cartas colecionáveis, esportes, ou qualquer outro tipo de
jogo.
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"- Bem galera, fizemos bonito. Agora, temos de nos esforçar em manter o hype no alto..." |
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