Não é sobre fungos. É sobre a vida
Fungos são classificados num reino separado das plantas, animais e bactérias. Entre eles, se enquadram espécies como os cogumelos, bolores, orelhas-de-pau e leveduras. O que em geral as pessoas não sabem é que eles são responsáveis por 1,7 milhão de mortes por ano e são cada vez mais resistentes ao tratamentos conhecidos pela ciência.
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Minha filha, minha vida: Joel (Pedro Pascal) vive para sua filha Sarah (Nico Parker) num mundo que desmorona |
Posto isso, percebemos que vírus e bactérias ganham a atenção de todos como principais ameaças biológicas, mas os fungos tem um potencial de dano maior do que normalmente supomos. Imaginemos então um debate televisivo entre cientistas, num talk show bem ao estilo dos anos 90, discorrendo sobre pandemias e os os riscos das viroses. e um deles vaticina que os fungos, caso um dia venham a sofrer mutação e proliferar nas altas temperaturas corporais dos humanos*1 (tal qual nos insetos *2), poderia provocar o nosso fim. É exatamante isso que ocorre no início da 1ª temporada de The Last of Us, o novo hit da HBO que acabou de chegar a sua conclusão.
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Tess (Anna Torv, à direita), a parceira de Joel, recebe a missão de levar consigo a destemperada Ellie (Bella Ramsey, à esquerda) |
Num pulo cronológico, conhecemos Joel Miller (o assombrosoPedro Pascal, de O Mandaloriano). Ele é um ex-militar, veterano de guerra, que carrega um peso descomunal na alma. Foi no dia de seu aniversário, em 26 de setembro de 2003, que irrompeu o pior surto pandêmico global de todos os tempos. Durante a fuga para um local seguro com seu irmão Tommy (Gabriel Luna, de O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio), sua filha Sarah (Nico Parker, de Dumbo) veio a falecer em seus braços, apesar de todo o seu esforço para salvá-la.
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De "Game of Thrones" para a distopia: Joel e Ellie (Bela Ramsey) ao lado de suas versões originais do game |
Duas décadas depois chegamos aos dias de hoje nessa realidade paralela. Joel trabalha na zona de quarentena de Boston - cidade controlada pela FEDRA*3 -, fazendo bicos, traficando drogas para os soldados etc. O clima geral é de desesperança, com o temor da praga e a opressão do governo militar, que reprime violentamente qualquer voz discordante do status quo.
Por fora, ele, junto com sua companheira ocasional Theresa “Tess” Servopoulos (Anna Torv, de Fringe) fazem serviços para os “Vagalumes”, um movimento rebelde contra a tirania militar. Sua líder local, Marlene (Merle Dandridge, de Estação 19), os encarrega de levar a adolescente Ellie Williams (a ótima Bella Ramsay, de Game of Thrones, em performance espetacular) para uma célula do movimento. Aparentemente a jovem é imune ao fungo causador da pandemia, pois foi mordida por um infectado e não desenvolveu a doença.
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O trio, chefiado por Tess, inicia a jornada, com Joel e Ellie não "se bicando" muito bem |
Criado por Craig Mazim (Chernobyl) e Neil Druckmann (Uncharted: Fora do Mapa), baseado no game para Playstation criado pela Naughty Dog, The Last of Us tem como diferencial entre os vários cenários distópicos de uma pandemia global apresentados na cultura pop, o seu olhar perspicaz sobre as relações humanas, dando destaque às pequenas coisas e aos momentos delicados. Em meio ao cotidiano brutal, estes momentos crescem de forma sólida, transmitindo verdade a seus personagens, que são valorizados pelo ótimo e afiado elenco (destacando-se a química da dupla protagonista) e uma direção inspirada.
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Não faltam pelo caminho paisagens desoladas e cheias de infectados, que se amontoam como entulho quando em repouso |
Um dos motes da série é sempre mostrar o apocalipse como uma experiência pessoal, da perspectiva própria de cada indivíduo. Até porque cada dia, em qualquer lugar, existe alguém vivendo uma situação de desamparo (um verdadeiro ”apocalipse”), seja num local acometido por um terremoto ou uma enchente, um desabamento, uma pandemia... Ou mesmo alguém tendo perdido aquele a quem mais amava. Portanto, sempre existe alguém, em algum lugar (às vezes na sua própria vizinhança mesmo) que perdeu tudo!!!
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Mais adiante Joel e Ellie têm de seguir por conta própria, aprendendo a se suportarem |
A perspectiva do indivíduo na série pode funcionar como contraponto ao clima de amargura geral. Em um dos episódios temos, na cidade de Lincoln, Massachusetts, a bela história de Bill (Nick Offerman, de The Resort) o sobrevivencialista, e de Frank (Murray Bartlett, de The White Lotus), seu companheiro. Eles vivem um momento terno em meio a um mundo conturbado, destoando inclusive de como a história de ambos é apresentada no game*4. Fazer essa mudança não muda muito a história geral, mas funciona como um momento de respiro no clima pessimista da série, em face às perdas que ocorrem nos episódios anteriores e posteriores.
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A história de Frank (Murray Bartlett) e Bill (Nick Offerman) é diferente do game |
Outra das discussões da série é o quanto o ódio pode ser uma força motivadora, mas seu preço, à curto prazo, é venenoso. Essa posição é representada por Kathleen (Melanie Lynskey, de Não Olhe Para Cima), chefe de Kansas City,após derrubar a FEDRA na região. Ela caça obsessivamente Henry (Lamar Johnson de X-Men: Fênix Negra) que traiu seu irmão em troca do remédio para a leucemia de seu irmão caçula, Sam (Keivonn Woodard, de Fractal). Sua história mostra o quanto o ressentimento pode ser maligno, podendo levar aqueles que deles se contaminam a finais trágicos, tão venenosos quanto o próprio fungo*5.
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Coisa banais, como viajar de avião, agora são ações "mitológicas" para a geração de Ellie, que só conhecem a realidade pós pandemia |
Mais um exemplo de contraponto ao pessimismo que normalmente norteia este tipo de narrativa ocorre quando nossos viajantes chegarem a cidade fortificada de Jackson, onde o irmão de Joel, Tommy, já está formando a sua própria família com Maria (Rutina Wesley, de DMZ) e onde o trabalho comunal e a posse coletiva dos meios de produção leva a comentários interessantes sobre as relações sociais.
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Contraste: Em Jackson, Joel reencontra seu irmão Tommy (Gabriel Luna) agora estabilizado, formando a sua própria família, enquanto ele parou no tempo |
No penúltimo episódio (o mais fraco da temporada, embora eletrizante) a situação de nossa dupla de protagonsitas se inverte se inverte. Vemos Joel ferido e Ellie tendo de encarar uma comunidade liderada por David (Scott Sheperd, de X-Men: Fênix Negra) um cultista psicótico que lidera e alimenta com o que pode seu ‘rebanho’, que segue o que ele diz de forma bovina por eles. Seu culto assume um perfil que mescla um viés fundamentalista mesclado com tons supremacistas.
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O bom uso dos efeitos visuais recria os visuais desolados dos gráficos do game |
A lírica (e de tom agridoce) música de Gustavo Santaolalla (Narcos: México) e David Fleming (Imperdoável)
retrabalha o seu tema original do game, utilizando acordes de ronroco,
transmite a solidão e a busca de esperança que é a característica
principal do game, além da inserção pontual de hits como “Never Let Me Down Again” do Depeche Mode na voz de Jessica Mazin; “Future Days” do Pearl Jam; “Long, long time” de Linda Rondstadt; “Up on the Housetop” de Benjamin Hanby; ”Fuel to Fire” de Agnes Obel; “True Faith”
por Anna-Lynne Williams entre outros, em momentos emocionalmente mais
carregados, acompanhando o ritmo da edição de Timothy A.Good (The Umbrella Academy), Emily Mendez (The Resident), Cindy Mollo (Ozark) e Mark Hartzell (Perdidos no Espaço) que acompanha o tom ora tenso, ora lento, e algumas vezes até contemplativo da narrativa.
A fotografia de Eben Bolter (Avenue 5), Ksenia Sereda (Uma Mulher Alta) e Nadim Carlsen (Holy Spider) sabe tirar proveito da beleza natural das paisagens externas, e de seus horizontes amplos, registrando a passagem das estações e nos ambientes internos, usa de tons escuros nos momentos de tensão, flertando com o horror.
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Em Kansas City, Kathleen (Melanie Lynskey)após derrubar a FEDRA, instaura um regime de terror obsessivo |
O eficiente desenho de produção de John Paino (Clube de Compras Dallas) cria um mundo distópico árido, de cidades abandonadas, e em ruínas, que a direção de arte de Don Macaulay (Altered Carbon), Callum Webster (O Predador), Andrew Moreau (Wynonna Earp), Steve Bedford (Altered Carbon), Andrew Li (Missa da Meia-Noite) entre outros, revela as nuances deste novo construto social deteriorado, que a decoração de sets de Paul Healy (Ghostbusters: Mais Além) pontua aqui e ali com os elementos de um mundo, outrora dinâmico, mas agora morto e que só persiste na memória dos sobreviventes, cujos figurinos amarrotados de Cynthia Ann Summers (Expresso do Amanhã) não deixa dúvidas de que não há lugar para confortos cotidianos como a elegância.
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A inspirada direção de arte recria omundo em ruínas do game, referenciando o final dos anos 90, quando aconeceu o surto |
Agora, falemos dos infectados, cujo design de maquiagem de Barrie (A Casa do Dragão) e Sarah Gower (Chernobyl), Werner Pretorius (Expresso do Amanhã) e Paul Spateri (A Lenda do Cavaleiro Verde) criaram caracterizações incríveis dos vários tipos de infectados*6 , que se harmonizam perfeitamente o ótimo CGI da Wëtã FX, Crafty Apes, Framestore, supervisionados por Alex Wang (Jurassic World Domínio) que quando aparecem, "tocando o terror", são "o bicho", além de ampliarem o horizonte devastado de suas paisagens.
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"Baiacu": Se você ver um desses correndo na sua direção, você está F#D1D0!!! |
Ao final, a primeira temporada de The Last of Us embora decepcione os puristas do game, que esperam basicamente um ‘copia e cola’ do mesmo, empolga ao público mais amplo, pois ao usar seu contexto distópico como pretexto para reflexão pois, mais do que sobre fungos, mutantes, infectados, zumbis, monstros, etc... o que a série nos fala realmente, é sobre a vida, e sobre nós mesmos, nossos medos, mesquinharias, anseios e necessidade de afeto, amor e pertencimento, não importa o quanto erremos tentando fazer o certo.
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David (Scott Sheperd) o "lobo em pele de pregador", digo "cordeiro" |
Notas:
*1: No seriado, a pandemia fúngica ocorre através de uma mutação ocorrida no Cordyceps (que na vida real não prolifera em humanos devido à nossa alta temperatura corporal) que infecta indivíduos, causando uma infecção cerebral que transforma seus corpos e mentes, tornando os humanos infectados num tipo de zumbi agressivo após a infecção, que podem viver desde poucas horas a até mais de 20 anos, sofrendo transformações ao longo deste processo.
*2: Na natureza, existe o “fungo-zumbi” que infecta formigas em especial, dando-lhes um comportamento anormal (daí o nome ‘formiga-zumbi’”) que vai proliferando até atingir totalmente o sistema nervoso central em até duas semanas após a infecção. Assim a formiga age com um zumbi, ainda viva, com toda a sua noção espacial, mas perdendo o domínio de seus movimentos. Na fase terminal, o fungo controla os músculos mandibulares da formiga fixando-as em uma folha ou outra região da planta, permanecendo assim até a morte da formiga.
*3: FEDRA (FEderal Disaster Response Agency – “Força Emergencial de Reação Anti-Desastres”) é um grupo militar que mantém o controle rígido sobre as zonas de quarentena, a fim de evitar novas infecções pelo fungo Cordyceps, tendo rapidamente degenerado para um sistema repressivo e brutal de controle de sua população. FEDRA está no controle da área de quarentena em Boston, onde Joel, Ellie, Tess e outros estão localizados.
*4: A série expandiu muito o personagem Frank. No game, nunca o conhecemos, e vemos apenas seu cadáver. No game, Bill leva Joel e Ellie ao se esconderem dos infectados, descobrem estar na mesma casa onde Frank, o parceiro de Bill, se enforcou. Com base nos documentos encontrados no corpo, fica claro que Frank estava tentando deixar Bill e ir para a Zona de Quarentena de Boston, já tendo preparado um veículo que esperava usar para sair da cidade. No entanto, ele foi mordido quando fazia seus prparativos. Antes de se transformar em um dos infectados, Frank suicidou-se, deixando uma carta um tanto brutal para Bill, destacando o quão diferente era o relacionamento deles no game. Leia:
Durante o tempo que Joel e Ellie passam com Bill, fica claro que ele é um tanto delirante, ocasionalmente falando sozinho e parecendo um eremita recluso. A nota de suicídio de Frank reforça essa ideia, porque quando Joel a entrega a Bill, ele fica chocado ao descobrir o desdém de Frank por ele, o que é muito distante dos amantes dedicados mostrados na série. No final, Bill ajuda Joel e Ellie a colocar o caminhão de Frank em funcionamento e os dois continuam sua jornada. Bill e Joel se separam em termos estranhos, pois Bill quer ficar sozinho para lamentar a perda de seu parceiro.
*5: Desde o segundo episódio, é citado o surto originário na Indonésia, numa fábrica de farinha e grãos de trigo (um substrato perfeito para a proliferação do fungo), já está estabelecido que não há uma cura ou vacina para evitar que a infecção se espalhe, restando o isolamento e a destruição dos infectados como forma de combate ao surto.
*6: Dos vários tipos de infectados, temos os “corredores”, ainda de aspecto basicamente humano, sendo ágeis e muito rápidos, ficando neste estágio por cerca de 2 semanas; passando para o estágio de “perseguidores”, quando o fungo começa a crescer, erodindo suas cabeças, cegando-os, o que os leva a usarem a eco-localização, mantendo metade do rosto ainda intacto e o resto do corpo ainda bem humano sendo mais fortes e rápidos, além de um comportamento mais sorrateiro, levando cerca de 1 ano neste estágio; os “estaladores”, com aquela infecção gigante tomando completamente suas cabeças, sendo bem mais fortes e resistentes do que um humano normal e muito agressivos, passando ao longo dos anos, vão se tornando os volumosos ”baiacus”, bem maiores e fortes, sendo os mais perigosos, podendo derivar para os “trôpegos”, que surgiram no segundo game, com os fungos proliferando em suas cabeças, como uma flora, com bolsões de esporos. Existe ainda o “Rei dos ratos” um agregado de vários infectados de estágios diferentes num só, como uma colônia.
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-"Não eram infectados. Eram excesso de população..." |
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