Eu sou a lenda
Desde que surgiu em John Wick - De Volta Ao Jogo, de 2014, onde o matador aposentado John Wick (Keanu Reeves, de Matrix Resurrections) retornava à antiga atividade por conta do assassinato de seu cachorro, fomos apresentados ao vasto universo da Irmandade dos Assassinos. Ao longo de suas sequências - John Wick: Um Novo Dia Para Matar (2017) e John Wick 3: Parabellum (2019) - um império invisível do Crime vai se descortinando para o espectador. Profundamente enraizado na sociedade, com promissórias, moedas, medalhões simbolizando juramentos de sangue e um rígido código de conduta, onde cada ação gera uma reação... A expansão de nosso conhecimento deste universo foi de forma exponencial, atingindo agora seu ponto culminante. Ou não?!?
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John Wick (Keanu Reeves) tem uma "entrevista" com um líder da Irmandade dos Assassinos e "entorna o caldo" de vez |
Dirigido novamente por Chad Stahelski (John Wick 3: Parabellum) com roteiro de Shay Hatten (Army of the Dead: Invasão em Las Vegas) e Michael Finch (Blood Brother), baseado nos personagens criados por Deerek Kolstad (Anônimo), John Wick 4: Baba Yaga (2023) segue a premissa de “mais e maior” até seu limite máximo. Com o auxílio da energética edição de Nathan Orloff (Ghostbusters: Mais Além), o fio da verossimilhança vai se esticando, ao longo de suas duas horas e quarenta e nove minutos de duração, até próximo do ponto de ruptura. Então o ritmo diminui um pouco, para logo em seguida tensionar novamente. Ao longo do filme esta alternância prossegue, gerando uma tensão narrativa que nos entrega um senhor filme de ação com “A” MAIÚSCULO.
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O "Mediador” (Clancy Brown) se apresenta no Hotel Continental de Nova York... |
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... instituindo o Marquês (Bill Skarsgård) como o novo administrador da crise |
Iniciando no deserto da Jordânia, com uma “entrevista” entre John Wick e um Ancião da Irmandade dos Assassinos (George Georgiou, de Moonhaven) que deixa claro que nosso protagonista nunca terá paz. Posteriormente conhecemos a enigmática e implacável figura do “Mediador” (Clancy Brown, de O Mandaloriano), que é encarregado de resolver a rixa entre a Irmandade dos Assassinos*1 e John Wick. Ele encarna a “face institucional” da Cúpula do Mundo do Crime e institui o Marquês (Bill Skarsgård de IT – Capítulo 2) para resolver a questão.
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O assassino cego Caine (Donnie Yen) é destaque do filme |
E o Marquês, exigindo uma obediência e fidelidade canina à guilda por seus membros, manda seu capanga-chefe Chidi (Marko Zaror, de Alita: Anjo de Combate) caçar John Wick com um pequeno exército. Além destes, Wick encontra pelo caminho alguns adversários que parecem estar a sua altura, como Caine (Donnie Yen, de Rogue One: Uma História Star Wars), um assassino cego que rivaliza em habilidade com o Demolidor da Marvel. Outro adversário é “Tracker” (Shamier Anderson, de Valentes), assassino astuto que possui uma cadela (espelhando o amor de Wick por cães) que fica à parte, só agindo após o valor pelo pescoço do alvo da vez ir crescendo até o valor que almeja.
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O misterioso “Tracker” (Shamier Anderson) |
Da galeria de tipos, retornam Winston (Ian McShane, de Deuses Americanos), gerente do Hotel Continental de Nova York, seu concierge Charon (Lance Reddick, de Fringe numa de suas últimas aparições) e o “Rei” do Bowery (Laurence Fishburne, de A Mula), que auxiliam John Wick em suas andanças.
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O filme marca uma das últimas aparições de Lance Reddick (1962-2023), como Charon, o "concierge" do Hotel Continental de Nova York |
Os valores de produção refletem o ápice da expansão deste mundo. A linda fotografia de Dan Laustsen (O Beco do Pesadelo) valoriza a beleza das locações na caminhada de seu protagonista pelo mundo, similar às aventuras de James Bond e Jason Bourne: o deserto de Wadi Rum (Jordânia); o Arco do Triunfo e as escadarias de Montmartre (França); Osaka (Japão); Berlin e o Estúdio Babelsberg, em Potsdam (Alemanha).
O bom desenho de produção de Kevin Kavanaugh (O Peso do Talento) cria ambientes elegantes e ricos, mesclando habilmente uma ambientação noir com elementos sacros, remetendo às origens bielo-russas de Wick. A ambientação rave cheia de neons do night club de Killa, e um apelo de anime, no Continental de Osaka, nos remetem ao melhor estilo de Matrix. Tudo isso auxiliado pela direção de arte de Chris Shriver (Em um Bairro de Nova York), Andreas Olshausen (Sem Remorso), Emil Birk (Uncharted - Fora do Mapa), Giles Boillot (Valerian e a Cidade dos Mil Planetas), Karim Kheir (Cavaleiro da Lua), Cornelia Ott (As Panteras), Thierry Zemmour (Missão: Impossível – Efeito Fallout) e Régis Marduel. A decoração de sets de Rand Abdel Nour (Cavaleiro da Lua) e Mark Rosinski (Atômica) enfatiza as forças políticas e econômicas em conflito.
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É nítido o contraste entre o elegante Shimazu e os capangas de Chidi, todos com "paletós de segurança" que parecem fora de medida |
Os figurinos de Paco Delgado (Morte no Nilo) contrapõem a elegância do terno preto de John Wick aos conjuntos padronizados em série de Chidi e seus capangas brucutus, que usam um uniforme padrão com coturnos e paletós cinzas (em medidas menores do que deveriam) feitos com um tecido de kevlar, para proteger seus usuários de tiros à queima-roupa. O aspecto destes não deixa de lembrar certos apresentadores de noticiários “populares” e políticos da nossa direita. A eficiente música de Tyler Bates (Deadpool 2) e Joel J. Richard (Livros de Sangue) permeia a ação, sublinhando o ritmo e acompanhando de forma eficiente a escalada do ritmo narrativo.
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A direção de arte é esmerada, em ambientes variados em estilo, tamanho e atmosfera |
Os efeitos visuais de Atomic Arts, Boxel Studio, Clear Angle Studios, Crafty Apes, Halon Entertainment, Incessant Rain Studios, Light FX, Mavericks VFX, McCartney Studios, NVIZ, One Of Us, Outlanders VFX, Pixomondo, Rodeo FX, The Yard VFX, Track VFX, Tryptyc e WeFX , supervisionados por Jonathan Rothbart (O Predador), Janelle Ralla (Mulher-Hulk: Defensora de Heróis) e Michael Ralla (A Tragédia de Macbeth), providenciam o necessário para dar credibilidade às cenas de ação, apagando cabos, fundindo tomadas, acertando cor, acrescentando sangue (sem ser splater), de forma eficiente e sem chamar demasiada atenção para si.
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No metrô de Paris, o “Rei” do Bowery (Laurence Fishburne) e Winston (Ian McShane) se reunem a John Wick para tratar de sua estratégia |
Ao final, tal qual o bicho-papão da mitologia eslava*2, John Wick 4: Baba Yaga mostra o dilema de seu protagonista, entre tornar-se a criatura ao mesmo tempo temida por uns e adorada por outros, ou apenas resolver suas pendências e encontrar um cantinho no mundo, curtindo o anonimato. Como a areia que escorre na ampulheta, saindo de uma câmara para outra, ao mesmo tempo que fecha um ciclo, podemos nos preparar para ser o início de um novo, caso a mesma ampulheta seja virada...
P.S.: Sim, amigos. Tem cena pós-créditos!
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Armas, muitas armas, e um terno especial de tecido de kevlar. É tudo de que John Wick precisa |
Notas:
*1: O universo ficcional da Irmandade dos Assassinos lembra a guilda de O Procurado (2008, de Timur Bekmambetov), com Angelina Jolie, James McAvoy e Morgan Freeman. Já ao evocar o passado mítico no deserto desta organização, o longa ecoa a versão hollywoodiana de As Aventuras de Omar Khayam (1957, de William Dieterle), com Cornel Wilde, Michael Rennie e Debra Paget.
*2: Baba Yaga, figura chave da mitologia eslava, é um ser sobrenatural (ou um trio de irmãs com o mesmo nome) que tem a aparência de uma mulher deformada e/ou feroz e que voa pelos céus montada num almofariz (uma espécie antiga de moedor), apagando os rastros que deixa com sua vassoura. Mora no interior da floresta numa casa apoiada sobre pés de galinha (ou apenas sobre um pé, em algumas versões), cuja fechadura é uma boca cheia de dentes. A Baba Yaga pode ajudar ou dificultar aqueles que a encontram ou a procuram. De acordo com a morfologia folclórica de Vladimir Propp, a Baba Yaga normalmente aparece nos contos de fadas como uma doadora ou vilã, podendo também ser completamente ambígua. Andreas Johns identifica a Baba Yaga como "uma das figuras mais memoráveis e distintas no folclore eslavo". Ele destaca que ela é "enigmática" e muitas vezes exibe uma "ambiguidade surpreendente". Se Baba Yaga pode ser traduzido como dor, Baba será Avó, e Yaga, mulher.
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- "Matar, morrer... quem sabe, dormir..." |
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