domingo, 23 de abril de 2023

Da floresta para a cidade - Crítica – Filmes: A Morte do Demônio: A Ascensão (2023)

 



Entre a recessão e o capiroto

por Ronald Lima


A franquia de Sam Raimi é reimaginada

 




Surgido em 1981 (depois relançado comercialmente em 1983), e feito em condições para lá de precárias, Evil Dead (aqui, Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio) foi um filme pioneiro ao lançar nos cinemas a fórmula do “terrir”. Custando meros US$ 350.000,00, gerou uma lucrativa franquia com duas continuações em 1987 (Uma Noite Alucinante 2) e 1992 (Uma Noite Alucinante 3), um reboot em 2013 (A Morte do Demônio, de Fede Alvarez) e uma bem sucedida série no streaming (Ash vs Evil Dead, de três temporadas, na Netflix). O filme original também lançou ao estrelato seu trio principal: o diretor Sam Raimi (Doutor Estranho no Multiverso da Loucura), o produtor Robert Tappert (O Homem nas Trevas) e o astro Bruce Campbell (Ash vs Evil Dead), cultuado ao se eternizar como Ash Williams, o principal protagonista da franquia. 
 
A trilogia, os games e a série no streaming, consagrou Ash Williams (Bruce Campbel) no imaginário pop



Agora, escrito e dirigido por Lee Cronin (O Bosque Maldito, Sete Minutos Depois da Meia-Noite), A Morte do Demônio: A Ascensão (2023) se propõe a ser mais uma reimaginação dos conceitos da franquia do que um remake ou uma sequência dos filmes anteriores. Ele se distancia estrategicamente dos elementos clássicos da franquia, mas não descartando-os totalmente - ficam alguns, como o livro que detona toda a história (mas com um visual menos quadrinhístico), a serra elétrica e a carabina. O humor splatter está lá, mas em dose muito pequena. Temos sangue pra tudo quanto é lado, mas não trazem aquela vontade de rir alto... 

O filme conta com boas atuações e um bom clima de tensão. Rodado a um custo modesto (US$12 milhões) e originalmente planejado para ser lançado no streaming pela HBO Max, a ótima recepção nas exibições teste levaram a mudança de estratégia, que levou o filme a ser lançando antes nos cinemas. Não Há nenhuma aparição de Bruce Campbell, citação a Ash Williams ou cena pós-créditos, o que deixou toda a plateia esperando em vão até o final da sessão para críticos... 
 
Tudo começa numa manhã tranquila à beira de um lago...

 
... com uma cabana na floresta


Logo na sequência inicial vemos em uma cabana à beira de um lago, Jessica (Anna–Mare Thomas, de The Sounds),  seu namorado Caleb (Richard Crouchley, de Princess of Chaos) e Teresa (Mirabai Pease, de Duckrockers) Um deles já está possuído pelo demônio e mata os outros dois, revelando a titulagem do filme, numa ótima solução visual, mesclando água e iconografia religiosa.
 
Em seguida nos é revelado que tudo iniciou-se no dia anterior, com a ação deslocando-se da floresta para a cidade de Los Angeles. Vemos um prédio velho e detonado condenado à demolição e com poucos e teimosos moradores. Sua caracterização e o impacto que causa na plateia são méritos do designer de produção Nick Bassett (Armas em Jogo), da direção de arte de Nick Connor (Ataque dos Cães) e da decoração de sets de Gareth Edwards (Sweet Tooth), que, criativamente, trabalharam com o orçamento restrito ao criar ambientes que dão a impressão da história não se passar nos dias de hoje. Seu tom meio cartunesco (em alguns momentos lembrando as antigas histórias em quadrinhos de terror da EC Comics), de um jeito torto, dialoga com a atual decadência econômica e a proletarização da América do governo de Donald Trump.  
 
 
Voltando no tempo, conhecemos um prédio velho em Los Angeles...


No prédio, mora o núcleo principal do filme, encabeçado por Ellie (Alyssa Sutherland, de O Nevoeiro e Vikings, em sensacional performance). Tatuadora, há pouco abandonada pelo marido, Ellie é a mãe dedicada (e sufocada) do filho mais velho e D.J. Danny (Morgan Davies, de Amigos para Sempre), da filha do meio Bridget (Gabrielle Echols, de Caminhos da Memória) e, a caçulinha Kassie (Nell Fisher, de Northspur), que brinca com tesouras, vê tudo e entende assustada a situação que se apresenta. A eles se junta a irmã mais nova (e distante) de Ellie, Beth (Lily Sullivan, de Barkskins), uma técnica em gravação que descobriu estar grávida. As duas irmãs têm um sentimento de mágoa quanto à sua figura materna, o típico "Você parece a mamãe!”. Ellie considera Beth incapaz de lidar com responsabilidades, insistindo em chamá-la de groupieCom seus jeans surrados, tênis baratos, bermudas e moletons comprados em saldões, os figurinos de Sarah Voon (My Life Is Murder) traduzem esse universo de personagens proletarizados, mas que se imaginam ainda acima da base da pirâmide. Resumindo: Uma família economicamente ferrada e espiritualmente atormentada. Desgraça pouca... 
 
 
Conhecemos Ellie (Alyssa Sutherland) mãe de três filhos, abandonada pelo marido...

... que é visitada por sua irmã mais nova Beth (Lily Sullivan) a "ovelha negra" da família



Após um terremoto, que abre um buraco na garagem do prédio, Danny encontra velhos discos e um livro bizarro: o Livro dos Mortos*1. Danny ouve um dos discos que narra os eventos de um padre que traduziu em 1923 o livro maldito. Ao ouvir o segundo disco, libera forças demoníacas que possuem Ellie, que então aduire um visual que remete a Samara, de O Chamado (2002). Fica andando de modo torto ou subindo pelas paredes, tal qual um inseto perseguindo sua família,  da mesma forma que pode ser vista em a lenda da Banshee *2, pois ela canta e também apela para o lado materno (“vai deixar mamãe aqui fora?”). Utiliza lugares mais comuns que se imagina em suas tentativas de manipulação de emoções. Mas demônios são assim mesmo quando querem chantagear emocionalmente suas vítimas... A partir da possessão temos uma noite de horrores, numa batalha primal pela sobrevivência, fazendo Beth descobrir forças desconhecidas dentro de si.  
 
Após um terremoto, Danny (Morgan Davies) acha um livro "esquisito"...



A fotografia de Dave Garbett (Os Últimos da Terra e Anjos da Noite - A Rebelião) usa sabiamente de tons sépia e verde, entrecruzando planos, utilizando a velha técnica do cameraman correndo (mostrando uma visão subjetiva do demônio) e fazendo de tudo para colocar todos os elementos da ação dentro do plano. Ele tem boa sintonia com a edição de Bryan Shaw (Spartacus), que mantém um ritmo narrativo frenético, mas com cortes controlados, não nos tirando a noção de geografia do local em que ocorre a ação. A trilha sonora de Stephen McKeon (O Bosque MalditoPrimitivo) é atmosférica, incorporando sons incidentais do ambiente, mantendo um tom claustrofóbico. 
 
Elie é possuída, virando uma "deadite", um demônio parasita, típico dos filmes da franquia

 


A supervisão de design de criaturas de Adam Johansen (Thor: Amor e Trovão) e a maquiagem de Hannah Wilson e Luke Polti (Ash vs Evil Dead) são eficientes. Eles aproveitam na caracterização dos deadites, as características fisionômicas de cada ator, realçando olhos e bocas, enquanto enfatizam a irreversível decadência dos infectados. Seus esforços são complementados pelos efeitos visuais de Cause and FX, Odd Studio e SSVFX supervisionados por Paul Dikson (O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder) , Matt Holmes (Sweet Tooth), Aled Rhys Jones (Altered Carbon), Charlie McClellan (Carnival Row) e Liam Neville (O Mandaloriano), que realçam os danos físicos do ambiente e de seus habitantes vitimados. 
 
 
O impacto da transformação de Ellie é devastador para todos, em especial para Bridiget (Gabrielle Echols) a filha do meio...

... e para Kassie (Nell Fisher) a caçulinha, que vai vendo sua doce mãe sumir, dando lugar a algo maligno



Ao final, a despeito de seus ótimos valores de produção e de seu bom elenco, A Morte do Demônio: A Ascensão peca basicamente por ser correto, equilibrado, mas não investir mais naquilo que é a principal marca da franquia: a ousadia. Cronin não investe tanto na carnificina embrutecedora, como fez Alvarez, nem mergulha em uma galhofa dispirocada, como Raimi. Ele fica num patamar mais mediano do que estes, embora ainda bem acima da concorrência de tantos outros filmes de terror-de-shopping-center que toda a hora estreiam nos cinemas e no streaming, para logo cair no esquecimento. 
 

A maquiagem é um dos grandes trunfos do filme, aproveitando bem a estrutura fisionômica dos atores, para melhor deformá-los




Notas
 
As versões do livro, em cada filme e série



*1: o filme menciona 3 livros, chamados agora de Naturon Demento”, ao invés de “Naturon Demonto”, como visto no primeiro filme, e “Necronomicon Ex Mortis” nos filmes posteriores e na série Ash vs Evil Dead. Isso levou alguns fãs a afirmarem que este novo filme se passa numa linha de tempo alternativa. Mas lembremos que, na Idade Média, antes da invenção da imprensa, os livros eram escritos e montados manualmente, um a um. Portanto, a existência de três exemplares com diferenças de edição entre si pode equivaler às nossas “edições revistas e ampliadas”, ou um mesmo livro traduzido e editado por editoras diferentes. 
 
 

 
*2: Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe. Fala-se que a Banshee seria um ser maligno. O termo origina-se do irlandês arcaico "Ben Síde", passando pelo irlandês moderno "Bean sídhe" ou "bean sí". Significa algo como "fada mulher" (onde Bean significa mulher, e Sidhe, que é a forma possessiva de fada). Os Sídh são entidades associadas a divindades pré-cristãs gaélicas. Encontramos algumas semelhanças entre a Banshee e a Moura Encantada portuguesa e galega. A Banshee seria da forma mais obscura da família das fadas. São vistas como seres que prevêem a morte. Seu grito poderia ser ouvido a quilômetros de distância, e seriam intensos o suficiente para  estourar até um crânio. 
 
 
Será o reinício da franquia???



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