quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O vício da dor e da perda - Crítica - Séries: O Justiceiro - 1ᵃ temporada

 

“GUERRA” é guerra?!?
 
 
por Alexandre César
(Originalmente postado em 29/ 09/ 2019 ) 

E Jon Bernthal encontra o papel de sua vida



Origens: Em Kandahar, os irmãos em armas Frank Castle (Jon Bernthal) e Billy Russo (Ben Barnes, de touca) servem à patria, "para trazer paz ao mundo"...


Frank Castle  era um patriota. Amava o seu país, e como extensão natural a sua família,  tendo jurado defender ambas de seus inimigos, indo parar no Afeganistão, como fuzileiro, e participado de missões especiais e feito coisas indizíveis para segundo os seus superiores, “manter a América segura de seus inimigos”. Findo o seu período no front e retornando à vida civil, tentando esquecer os fantasmas da guerra e o seu contato com o “ lado negro”, a sua família é morta num tiroteio entre gangues, um “efeito colateral” da guerra urbana levando o nosso herói a adotar a identidade de o Justiceiro e expiar seus pecados, combatendo o crime e fazendo justiça com as próprias mãos... Simples, não?


"- Trarei a Paz, nem que tenha de matar a todos os 'Motherfuckers' do mundo!!!"



Seria simples se estivéssemos na década de 70, quando Charles Bronson e Clint Eastwood barbarizavam no cinema como Paul Kershey e Larry Calahan nas cineséries Desejo de Matar e “Dirty” Harry, as duas, fontes de inspiração de O Justiceiro, nova série Marvel/Netflix, baseda no personagem de quadrinhos da "Casa das Idéias", onde Jon Bernthal, que já havia interpretado o personagem na segunda temporada de Demolidor, aqui tem o seu vôo solo, constatando que o grande inimigo por trás das mortes de sua família e de muito mais gente... é a própria trindade CIA - Exército AmericanoNSA, dentre outros pilares institucionais dos “valores americanos”.

 


Aliança entre "homens mortos": Castle une forças ao hacker David Lieberman (Ebon Moss-Bachrach) para ferrar com seus antigos chefes



 
Na sua cruzada de vingança contra aqueles que tiraram o seu “porto seguro” no mundo, Castle acaba formando (ainda que relutante) uma aliança com o hacker David Lieberman/Micro (Ebon Moss-Bachrach) dado como morto para proteger a esposa Sarah (Jaime Ray Newman) e filhos. A química entre os dois atores é muito boa, criando uma ótima dupla disfuncional. Ambos vão atrás o todo-poderoso William Rawlins (Paul Schulze), escroto à toda prova e mentor das “operações especiais” do grupo de Castle no Afeganistão, envolvido com tráfico de drogas, “queimas de arquivo” e toda sorte de abusos que forças de ocupação costumam praticar em nome da paz e da segurança nacional.
 

Pela América: O Mal. Schoonover (Clancy Brown) e William Rawlins (Paul Schulze) criaram as "Operações Especiais" para tudo, menos fazer do mundo um lugar melhor...

 

A dupla cruzará com as investigações da agente especial Dinah Madani (Amber Rose Revah) de origem árabe, que apura abusos do exército. Ela inicialmente se envolve com um antigo companheiro de unidade de Castle, Billy Russo agora empresário da área de segurança privada (o eterno Príncipe Caspian Bem Barnes, que desde Westworld vem se especializando em personagens ”bonitinhos mas ordinários”) com quem protagoniza cenas quentes. 

 

Curtis Hoyle (Jason R Moore): Amigo nas horas difíceis de Frank, acostumado a lhe fazer curativos e suturas

 

Temos ainda no elenco de apoio Sam Stein (Michael Nathanson) parceiro de Madani e seu fiel escudeiro, Curtis Hoyle (Jason R. Moore) ex-fuzileiro amigo de Frank que dirige um grupo de ex-combatentes, que é uma de suas poucas âncoras na sanidade. Diferente das outra séries Marvel/Netflix aqui, o elo de ligação é Karen Page (Deborah Ann Woll) e não a Enfermeira noturna, já que foi ela que demonstrou empatia com o drama de Castle na sua aparição em Demolidor, vendo-o como um ser humano e não um terrorista, interagindo com o ex-fuzileiro desequilibrado de 26 anos Lewis Alcott (Daniel Weber), que envereda pelo caminho dos atentados civis achando que assim consertará o mundo. Pela primeira vez vemos Karen como algo mais do que um bibelô, prova de um melhor conhecimento da personagem da parte dos roteiristas.



A Bela e a Fera: Karen  Page (Deborah Ann Woll) é o elo de ligação com o universo das séries Marvel / Netflix.


 
Uma vez que Frank Castle é o “trem desgovernado” que todos conhecemos, a violência, e o sangue correm soltos, até mesmo por uma questão de fidelidade ao personagem. Afinal não dá para ser o Justiceiro e ser PG-13. Logo, Tiros, facadas, socos, chutes, mordidas e mutilação para todos os gostos. E como Frank Castle sangra... ao longo dos 13 episódios o vemos ser baleado, ferido, torturado, ficando às portas da morte diversas vezes, sangrando bicas, numa via crucis de expiação de culpas, revolta e certa dose de insanidade.
 


Sam Stein (Michael Nathanson) e Dinah Madani (Amber Rose Revah) investigam as ações de Rawlins & seus associados...


 
Bernthal mostra ser a encarnação definitiva do personagem, numa interpretação ora visceral, ora minimalista mostrando grande versatilidade, mesmo falando grunhindo, como um Silvester Stallone com dicção e um corte de cabelo que se crescer mais, parecerá com o do Moe de Os Três Patetas. Nunca um personagem tão bidimensional ganhou tanta profundidade.
 


O ex-fuzileiro Lewis Alcott (Daniel Weber) ao se meter com o falso ex-combatente O´Connor (Delaney Williams) segue numa espiral decadente

 
 
Todos personagens tem os seus arcos bem desenvolvidos, apesar de que a série poderia ter um ou dois episódios a menos e funcionaria melhor. Outra coisa é que muitos poderão reclamar que esta série é mais uma série procedural tipo N.C.I.S. com o Justiceiro no meio do que uma série do próprio, mas entendamos que a maior falha na série, é justamente o seu maior mérito. Fazer um personagem bruto  como Frank Castle enxergar que  o sistema que o moldou é justamente o mesmo que tirou de seu alcance os seus entes queridos é uma boa sacada, ainda mais porque no momento atual, personagens como Castle são perfeitos para pessoas e grupos em busca de ícones que  justifiquem atitudes violentas e discriminatórias como espancar mendigos (e grupos étnicos, sexuais ou religiosos) ou até mesmo a legitimar o vigilantismo e a formação de milícias, coisa que as firmas de segurança privada (principalmente as americanas) já o são.
 
 

Adiante descobrimos que Billy Russo, agora um empresário do setor de segurança e Rawlins, são sócios de empreitadas ilícitas


 
Outra questão é a velha temática do stress traumático dos ex-combatentes, um efeito colateral de toda potência hegemônica. Transformam os homens em máquinas de combate, até o dia em apertam as suas mãos em agradecimento e esperam que eles retornem à vida civil sem problemas. Lewis é a materialização desta visão das coisas.


Logo Frank mostra o que faz melhor, e voam pedaços de oponentes para todos os lados...



 No cômputo final podemos dizer que sejam mariners, spetznas, ou qualquer outra denominação de combatente a história é sempre assim: Mandam os indivíduos à guerra, eles “fazem o que têm de fazer” e aos sobreviventes, dão a dispensa e “a certeza do dever cumprido” como se tirar o indivíduo da guerra fosse a mesma coisa que tirar a guerra do indivíduo. Guerra é algo viciante como bem demonstrou Kathryn Bigelow em Guerra ao Terror (2008) e seja no Oriente Médio, seja no Harlem ou nas comunidades pacificadas, alguns indivíduos estão atrás da sua dose...
 

No final, Castle ajusta as contas Billy Russo, Rawllins e toda a corja


Frank Castle tem a dor da sua perda, e o vício de sentir a dor da sua perda. Daí a importância de indivíduos como Curtis Hoyle, que o ajuda a encarar seus fantasmas e o vício.


E nós, talvez tenhamos o vício de vê-lo viciar-se em sua dor. Até a próxima dose, digo, temporada.



" - O chato não é fazer o trabalho, mas ter de limpar a bagunça depois..."

 

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