“Você quer me usar? Vai ter que alugar...”
por Alexandre César
(Originalmente postado em 15/ 10/ 2019 )
e queira ou não Luke aprende a ser um líder...
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Luke Cage (Mike Coulter): O "Cara" do pedaço
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Na época de sua estreia na Netflix, Luke Cage, série da Marvel,
criou muita expectativa. A temporada, porém, foi frustrante para parte
do público devido ao fato da primeira para a segunda metade ter tons bem
diversos - uma mais séria, e até política, e a outra, mais próxima do
clima dos primeiros quadrinhos do personagem, nos anos 70. Não que tenha
ficado ruim, mas claramente houve um potencial grandioso não alcançado.
Esta segunda temporada se foca mais na luta pelo poder entre gangues
rivais do que no super poder de seu herói. No turbulento Harlem, em Nova
York, entre os combates aos bandidos de todas as facções, tirar selfies e mandar recados abusados com a vizinhança, o “grandão” age como o novo xerife da localidade. Indestrutível, com sua pele à prova de balas, mas apenas uma peça a mais no tabuleiro.
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Luke e Claire (Rosario Dawson): "Foi bom enquanto durou, gata..."
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Nas duas temporadas, vemos uma criminalidade entranhada até a raiz na
organização social da comunidade, enquanto Luke (Mike Coulter), herói do
pedaço, luta para não ceder a raiva dentro de si, nem à fama fácil e ao
dinheiro que pode ganhar - camisas com seu nome, vídeos de suas lutas e
até mesmo um aplicativo para que todos no Harlem saibam sua localização
estão na web.
A ideia de um Luke altruísta, mas tentado pela grana fácil, é
interessante e bem-vinda, pois encaminha o personagem para tornar-se
aquilo que tanto o norteou nos quadrinhos: alguém que quer ajudar, mas
precisa de dinheiro para sobreviver, um “herói de aluguel” .
A chegada de uma ameaça externa, porém, é o fator que fará a roda da
vida girar, trazendo fantasmas do passado e borrando ainda mais de cinza
as fronteiras de certo e errado. Com isso, nessa temporada, Luke Cage investe na ambiguidade, dando uma interessante virada no status quo de seu protagonista. Mas, apesar da boa idéia, falha na execução.
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"Diga 'Xis', Luke"!!!
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Novamente, a extensão narrativa por looongos treze episódios prejudica (problema crônico da maioria dos seriados da Marvel na Netflix).
O tom de proximidade com os quadrinhos dos anos 70 na segunda metade da
temporada é tão over, que destoa por soar farsesco em relação a
primeira metade, mais sério e político. Afinal, Luke Cage não é Ash Williams (personagem icônico interpretado por Bruce Campbell no seriado Ash versus the Evil Dead). Ainda sim a temporada empolga nos seus últimos episódios, mostrando eventos realmente relevantes.
Nesta temporada temos o vilão jamaicano John 'Bushmaster' McIver (Mustafa Shakir) é basicamente um Luke “do Mal”.
Ele ganha super-força e uma certa invulnerabilidade ao usar um tipo de
esteroide natural. Isto, junto ao seu domínio de artes marciais, o
torna um inimigo perigoso e formidável. Apesar de um tanto caricato e
com um lado cômico, não é ridículo como o Cascavel da primeira
temporada. Ele é, à sua própria maneira, o personagem mais interessante
nesta nova leva de episódios, tendo motivações pertinentes para suas
ações. Aqui, Luke é um apenas um obstáculo no seu caminho, cujo
verdadeiro alvo é Mariah Dillard (Alfre Woodward), que revela-se uma
antagonista sinistra, que cria com seus atos uma bola de neve que vai
crescendo e atropelando as aparentes boas intenções que ela tanto prega
ter. Destacamos aqui a relação da Mariah com Shades (Theo Rossi). A
dinâmica entre os atores, Rossi e Woodard, surpreende, com um
intensificando a performance do outro.
A transformação da conselheira Mariah Dillard em Mariah Stokes reflete
a sua luta interna. Ela procura não evidenciar o passado de sua
família, pois o sobrenome Stokes é um título presente nas entranhas do
Harlem há tempos. Sua filha, Tilda Johnson (Gabrielle Dennis), é um
fator complicador das dinâmicas em jogo que nos faz entender o passado
perturbador e cheio de camadas Mariah. A conselheira tem um
relacionamento complexo com Luke, que demonstra a idealização profunda
que cada um dos personagens tem de si e do que podem vir a ser. Isso
cria uma armadilha para que o Herói do Harlem vire uma espécie de “Herói de Aluguel”, tentando não ceder ao jogo distorcido desta visão. Ou seja: os fins realmente justificam os meios?
Uma coisa que incomoda é a dissociação entre o personagem que vemos aqui daquele que está presente em Os Defensores, o seriado que reúne todos os diversos protagonistas de seriados do Universo Marvel na Netflix.
Esta segunda temporada se passa após os acontecimentos que juntaram ele
aos outros heróis e Danny Keith, o Punho de Ferro (Finn Jones) faz
aqui uma aparição que rende excelentes momentos mas, parece apenas
ocorrer para confirmar que tudo faz parte do mesmo cenário. Mas Danny
some, sem dar uma boa razão para isso, quando sua presença seria
realmente necessário para dar uma ajuda ao mano Cage.
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Reverendo James Lucas ( o falecido Reg E. Cathey): Pungente momento entre pai e filho
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Infelizmente também, a série reduz o peso de Claire Temple (Rosario
Dawson, que questiona as ações de Luke), jogando a enfermeira para
escanteio. Misty Knight (Simone Missick) reaparece, agora com um
sensacional braço mecânico que salta aos olhos. Ela e Luke têm pesadelos
parecidos, relacionados ao que é certo e o que é errado, mas a policial
é atropelada pelos acontecimentos da série, ingrata com os seus
personagens coadjuvantes, que invariavelmente somem e são esquecidos,
quando a presença deles poderia ter impactado mais a narrativa.
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Misty Knight (Simone Missick) e Luke: O conflito moral entre o certo e o errado
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Outro bom momento é a destaque dado ao relacionamento de Luke com seu
pai, o Reverendo James Lucas (Reg E. Cathey). O ator faleceu durante as
filmagens, o que faz o personagem sumir de cena repentinamente. Mas,
apesar de breve, a participação de James é marcante, apresentando bons
momentos de pai e filho e revelando um Luke mais humano, em constante
confronto contra seus sentimentos ruins e sua mágoa represada. Os mais
belos momentos da temporada estão numa sequência mostrando cenas de Luke
com seu pai e de Bushmaster com Mariah, num paralelo entre perdão e vingança, conectando o herói e o vilão.
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O mano Daniel Rand (Finn Jones) aparece e dá "uma força" a Luke...
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Mais um problema da série é não entender o seu potencial político e
social, e não saber como fazer esse potencial funcionar, conciliando-o a
uma trama fantasiosa de quadrinhos. O filme Pantera Negra, ou o seriado Raio Negro, da rival DC Comics,
souberam casar muito bem as duas coisas, conseguindo um excelente
equilíbrio entre o entretenimento, as referências a suas origens nos
quadrinhos e a crítica social, levando o espectador a refletir.
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Shades (Theo Rossi): Boa presença em cena
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Luke Cage até
tenta estabelecer esta reflexão, em uma ou outra cena isolada, como
quando o protagonista cita para Claire que sempre sofreu racismo, mas
fica apenas nisso. Diferentemente da série do “Maioral de Freeland”,
que aborda o racismo crônico da sociedade de forma mais direta e com um
texto mais corajoso, aqui a cultura negra ainda é exaltada apenas por
meio das bandas de blues, jazz, reggae e afins que passam pelo Harlem’s Paradise nos interlúdios dos episódios. A música concede uma jinga própria a série, mas tudo fica apenas no exotismo. O showrunner Cheo Hodari Coker e os produtores parecem não ter interesse em investir mais do que isso nesta questão.
Esperemos que a próxima temporada o “Herói de Aluguel” tenha mais negritude do que temos visto até agora, pois o personagem merece... e muito!
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"- C@#@l3*!!! Soube agora que aqueles branquelos da Netflix e da Marvel cancelaram a minha série! Como vou me virar agora!?!"
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