domingo, 27 de setembro de 2020

Sobre legado e feridas não cicatrizadas - Cobra Kai (1ª e 2ª Temporadas)

por Alexandre César


  

Drama oitentista envolvente e cativante


A batalha continua...  

 

Johnny Lawrence (William Zabcka de A Ressaca) viveu os últimos trinta e quatro anos à sombra de sua derrota no torneio de karatê para Daniel Larusso (Ralph Machio de Vidas sem Rumo) e que inclusive lhe roubou a namorada Ali (Elisabeth Shue de The Boys) tendo desde então vivido de fracasso em fracasso na sua vida pessoal e profissional (?) vendo à distância seu antigo desafeto seguir adiante, crescer e prosperar, enquanto ele permanecia engessado nos anos 80. Uma escalada de incidentes casuais vão levando-o à enfrentar seus fantasmas, entre eles Sid Weinberg (Edward Asner de Mary Tyler Moore) seu padrasto abusivo, assumir seus erros e reabrir o dojo de seu antigo mestre, mas dando o seu toque pessoal, galgando neste processo, uma jornada de redenção pessoal cheia de tropeços, mas que resgatará a sua dignidade perdida.

 
Figura paterna substituta: Johnny Lawrence (William Zabcka) 
acolhe Miguel (Xolo Maridueña) e o treina para se defender...   
 
Em 1984 Karatê Kid:A Hora da Verdade de John G. Avilsen (Rock, Um Lutador) imortalizou no imaginário popular a dupla Daniel-Sam & Mestre Myagi (Pat Morita) e tornou icônico o modus operandi de myagi ao ensinar o jovem carente a atravás da arte marcial a trazer equilíbrio à sua vida e, neste processo derrubar seus oponentes de forma rápida eficiente e elegante usando o golpe da garça entre outros, mostrando que só tolos valentões procuram a luta pela luta por fama e vaidade, enquanto um real campeão só procura “lutar o bom combate”. O sucesso do filme abriu caminho para outras continuações, em 1986 e 1989 que rapidamente caíram no lugar comum de repetir o esquema Daniel Larusso-se-desorienta-e-se-dá-mal-sendo-resgatado-por-Myagi-que-o-treina-e-ele-dá-a-volta-por-cima sempre dando algum acréscimo à metodologia do mestre japonês para não dizer que não tem algo diferente. Com o esgotamento da fórmula veio um desenho meia-boca para a TV em 1989, uma tentativa de apostar na diversidade (Karatê Kid 4: A Nova Aventura de 1994) com Miyagi treinando uma nova discípula (Hilary Swank) e, até um reboot com Jackie Chan e Jaden Smith em 2010 (que pela lógica deveria ser Kung Fu Kid) mas parecia que definitivamente o clássico juvenil oitentista ficaria no passado... ou não???
 
Daniel Larusso (Ralph Machio) cresceu e prosperou, junto à sua esposa Amanda (Courtney Henggeler), o seu porto seguro...

Chegando com pouco alarde em 2018, originalmente produzido ela Sony Pictures Television e veiculado no YouTube e agora assumido pela Netflix (que disponibilizou as duas temporadas já preparando uma terceira) e, surpreendendo à tudo e a todos, Cobra Kai revisita a mitologia do filme de 1984 de forma espetacular e empolgante, trazendo Daniel Larusso de volta à baila, agora cinquentão e próspero pai de família, com Amanda (Courtney Henggeler de The Big Bang Theory) uma esposa maravilhosa e seus filhos Samantha (Mary Mouser de Room 104) uma adolescente meiga e o caçula Anthony (Griffin Santopietro de Lá Vêm os Pais) viciado em videogames e ainda revemos a sua mãe Lucille LaRusso (Randee Heller de A Sogra) que alterna discussões com a nora e juras de amor incondicionais à ela. Comercial de margarina... mas aqui, a grande virada é vermos Daniel ter a sua posição de protagonista ser superada pelo seu antigo oponente, o verdadeiro foco da série (numa performance estupenda de seu intérprete que aqui agarra o papel da sua vida com unhas e dentes) nos levando a torcer por Johnny Lawrence, pois todos nós gostamos de uma história de redenção e aqui, o ex-garoto valentão e analógico, na melhor tradição de Rocky Balboa vai num crescendo de retomada do controle de sua vida, e nos levando com ele nesse processo, deixando Daniel Larusso com o seu dojo zen no caminho...
 
 
Lawrence, entre Hawk (Jacob Bertrand) 
e o neurótico Demetri (Gianni Decenzo)... 

 

Hawk apesar da grande transformação,
reinventa-se mas cai no abismo do radicalismo...

 
Invertendo os papéis, Lawrence acaba sendo o mentor e figura paterna substituta de Miguel Diaz (Xolo Maridueña de Parenthood: Uma História de Família) garoto equatoriano, sofredor de bullying por parte de valentões do colégio de classe mais abastada (e crush de Samantha LaRusso) ensinando-lhe karatê apesar dos temores de sua mãe Carmen (Vanessa Rubio de O Mundo Sombrio de Sabrina), que não quer o filho metido em brigas, opinião bem diferente da sua avó Rosa Diaz (Rose Bianco de Power). Assim, neste processo, Lawrence vai tornando uma trupe de nerds marginalizados na nova geração do Cobra Kai (apesar de seus métodos “inusitados” de treinamento).
 
Solidão: Daniel sente a falta de seu falecido mestre...

Do heterogêneo grupo do Cobra Kai se destacam Aisha (a iniciante Nicole Brown), a garota negra e gordinha que se revela uma oponente e tanto, Hawk (Jacob Bertrand de Jogador Nº1) o nerd magrelo de lábio leporino que se transfigura num “quebrador”, que infelizmente acaba virando um valentão, indo contra seu antigo amigo, o neurótico Demetri (Gianni Decenzo de Fartcopter) que não para de falar um segundo (ele acaba saindo para ir treinar com LaRusso, acentuando a rivalidade entre os dois), o gordinho Raymond, o “Stinger”(Paul Walter Hauser de Eu,Tonya) que embora não seja de fato um lutador desenvolve grande malandragem e senso de oportunismo e a bela e perigosa Tory (Peyton List de Acampados) que começa a namorar Miguel, mas cujo ciúme a coloca em rota de colisão com Samantha, culminando numa briga entre as equipes digna das lutas de saloon dos filmes de farwest em versão anabolizada. A ação é bem acrobática, o que levou muitos a observarem que o que é mostrado é coreografia, e não karatê, mas tudo bem pois é empolgante, estando de parabéns a edição de Zack Arnold (Burn Notice), Nicholas Monsour (Nós), Jeff Seibenick (O Mandaloriano), Spencer Houck (Cost of Living), Jordan Goldman (Homeland), Bartholomew Burcham (The Gifted) e Ivan Victor (Atlanta) que mantém o pique narrativo tanto nas cenas de ação quanto nos momentos mais serenos.
 
Miguel e amigos sofrem bullying pelos valentões da escola...

 
Miguel, ao derrotar os valentões num vídeo, viraliza na internet tornando-se um grande atrativo para a comunidade jovem, e aqui a série se mostra uma alegoria interessante com o momento político atual, de retomada da extrema direita em todo o mundo, pois LaRusso ao prosperar, se tornou um burguês, exemplo da ideologia meritocrática, cercado daqueles que o desprezavam em seus tempos de juventude, enquanto Lawrence com seu jeito bronco e apesar de politicamente incorreto, tornou-se um elemento de maior identificação dos jovens losers pois como aconteceu no mundo real, as esquerdas e as forças progressistas ao se estabilizarem, tornaram-se reféns das boas maneiras e do status quo, perdendo a credibilidade daqueles revoltados com a ordem vigente, e nisto o Cobra Kai cresce ao acolhê-los e empoderá-los com a ação e a vantagem numérica como método dando-lhes a noção de fazer parte de algo maior que eles próprios (o fascínio do fascismo é sempre pela grandiosidade do espetáculo....) e aí Lawrence cai na armadilha de dar uma segunda chance a John Kreese (Martin Kove de Rambo II: A Missão) seu antigo e abusivo sensei, que rapidamente vai infiltrando sua ideologia beligerante e militarista plena da ideia de que “a guerra cria homens melhores, mais fortes, mais duros!”coisa bastante familiar a nós atualmente...
 
 
Robby Keene (Tanner Buchanan) disputa a atenção 
de Samantha LaRusso (Mary Mouser)

Como nada é tão difícil que não possa piorar, Lawrence ainda tem sérios problemas de relacionamento com Robby Keene (Tanner Buchanan de Desginated Survivor) seu filho revoltado, fruto de seu relacionamento com Shannon (Diora Baird de Busca Incansável) mãe periguete e alcóolatra, que para alfinetar o pai acaba indo trabalhar (e treinar karatê) com Daniel LaRusso, disputando com Miguel o coração de Samantha.
 
Vitória: No final da primeira temporada 
o Cobra Kai ganha o campeonato local...

Apesar das suas grandes diferenças, Daniel LaRusso e Jonhhy Lawrence até conseguem chegar a um acordo de convívio, mas as circunstâncias, e os jovens (verdadeiros barris de pólvora) sempre acabam colocando os dois em rumo de colisão, mas nada comparado às duas equipes que na fervura dos hormônios só espera um riscar de fósforo para explodir.
 
Fatalite: Lawrence cai na roubada de dar uma chance  à 
John Kreese (Martin Kove) o seu abusivo sensei...

Visualmente a nostalgia impera na série, indo da música de Leo Birenberg (Pretty People) e Zach Robinson (Homem-Formiga) recheada de hits dos anos 80 e 90, que trabalha junto com os enquadramentos da fotografia de Cameron Duncan (Preacher), Paul Varrier (The Walking Dead) e D. Gregor Hagey (The Dark Stranger) parecendo um clip da época deliciosamente cafona num bom número de vezes, da mesma forma que o desenho de produção de Ryan Berg (Die Hart) e Moore Brian (A Barraca do Beijo 2) a direção de arte de Eric Berg (Better Things) e a decoração de sets de Liz Chatov resgata o Dojo Myiagicom as suas cercas bonsais, os troféus de competições de Daniel LaRusso e a coleção de carros do antigo mestre, em contraste com as instalações espartanas do Cobra Kai além de mostrar o contraste social na casa dos LaRusso com a casinha caindo asos pedaços de Johnny Lawrence, refletindo o seu estado quebrado tanto psicológico quanto financeiro e emocional. Já os figurinos de Frank Helmer (A Rainha do Sul) deixa claro a diferença entre os abastados, elegantes e bem sucedidos LaRusso e clientela e os ferrado do Cobra Kai, bem classe trabalhadora ou remediada. Karl Marx em videoclip...
 
Daniel reabre o seu Dojo Myiagi e passa a treinar Robby...

Ao final Cobra Kai surpreende por ser um novelão, mas sabendo ser um ótimo novelão, com um ótimo cliffhanger no encerramento de sua 2ªtemporada (digno do final de O Império Contra-Ataca, que termina com tudo dando errado) sendo Lawrence expulso do Cobra Kai por Kreese, que fêz um novo acordo com Armand Zakarian (Ken Davitian de Borat) o dono do shopping onde o Dojo se encontra, e assim vemos que o fascismo usa aqueles que inicialmente começam o movimento por um autêntico sentimento de mudança, para implantar o seu modus operandi de confrontação cuspindo fora aqueles que não lhe são mais úteis...
 
 
Paixão louca: Tory (Peyton List) passa a namorar Miguel de forma passional...

Confronto: A ciumenta Tory antagoniza Samantha por causa de Miguel...

Com a próxima temporada já confirmada, só podemos esperar pelo próximo movimento de Johnny Lawrence, o “herói quebrado”, que provavelmente resgatará a escalada de renascimento que outrora foi de Daniel-san e possivelmente no processo consertará a si mesmo e a seu antigo oponente, que na verdade, nunca foi seu inimigo de fato.
 
Trégua: Tanto Daniel LaRusso quanto Johnny Lawrence
 são capazes de entrar em acordo...

...mas os seus discípulos sempre entram em atrito...
 
A batalha ainda não está perdida...
 
"-Temos que parar de nos encontrar assim!!!" 

 
 
 
 
 
 

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