terça-feira, 11 de agosto de 2020

Encontrando o próprio mérito... - 3% – 3ª Temporada

 por Alexandre César


 

Apesar de tropeços, série cresce e se firma

 

    - Eles dizem que os 97% não prestam mas eu digo que não, e vamos provar para eles o quanto estão errados!”
 
 
    Com esta frase de Michele Santana (Bianca Comparato de Somos Tão Jovens) define o seu projeto de comunidade logo no início da 3ª temporada de 3%, a produção sci-fi nacional que que tornou-se a primeira aposta da Netflix e dividiu opiniões no país, mas fez um grande sucesso fora, mostrando que a alta expectativa do público nacional pode ter atrapalhado mas, superando os desafios e, principalmente os preconceitos típicos do próprio brasileiro, que costuma ser demasiado crítico a produções que fujam ao lugar-comum do que seria uma “produção nacional”, falada em português (o idioma que boa parte do público prefere trocar pela dublagem em inglês, alegando muitos, que deixa a história “mais natural de seguir...” ).

 

Irmãos: Rafael (Rodolfo Valente, deitado) e seu maninho Artur 
(Léo Belmonte) tem bons momentos de união e conflito...
 
Joana (Vaneza Oliveira) e Natália (Amanda Magalhães) se tornam
os últimos membros da "Causa" e procuram formas de seguir 
com o movimento...
 
 
 De qualquer forma, o seriado criado por Pedro Aguilera (Onisciente) evoluiu bastante no segundo ano, aumentando o número de locações e complexidade da história, e isso permanece na terceira temporada, que é uma releitura direta da primeira, levantando os mesmos assuntos discutidos sob uma mesma filosofia e ambiente, lembrando o teor chocante da 1ª Temporada, e realçando questões marcantes e sequências inspiradas.
 
O CGI das panorâmicas do "Continente" continuam com um 
"quê" de vídeogame, agora parte da assinatura visual da série...
 
 
Michele realizou o sonho de Samira, uma das fundadoras (varrida para debaixo do tapete da narrativa oficial...) do Maralto e fez a Concha, uma alternativa ao próprio Maralto e ao Continente. Neste local, há um trabalho coletivo para fazer algo bom para todos, numa utopia que reflete bastante a construção ideológica inicial adotada pelo Maralto.  
 
A Comandante Marcela (Laila Garin) faz uma "oferta irrecusável" 
à Michelle, mas ela a rejeita...
 
Michelle, que tanto odiava o "Processo", acaba sendo 
obrigada à criar uma seleção similar à do "Maralto"...
 
 Como mostrado na temporada anterior, os fundadores queriam que o local tivesse um nível impossível de perfeição, após todos os problemas do Continente. Mas, para a narrativa se aprofundar, o sonho da Concha entra logo no começo em colapso, não por um acontecimento mirabolante, mas por uma tempestade de areia aleatória surgida do nada (o que leva a pensar como raios, ergueram uma super construção no meio do deserto mas não tinham um plano de defesa contra tempestades de areia e só a perceberem quando ela já havia chegado, apesar de terem um sistema de monitoramento 24 horas,...) fazendo com que Michele tome uma decisão extrema: é necessário selecionar quem ficará ou não no local, reduzindo o contingente populacional a... 10%. Familiar, não?
 
Descobrimos que o "Casal Fundador" Laís 
(Fernanda Vasconcellos) e Elano (Silvio Guindane) tiveram 
de abdicar de sua filha Tânia para o "processo"...
 
Dividida sobre as suas lealdades Elisa (Thais Lago) ajuda Rafael 
(que está escondido) que convence o irmão Artur a 
lhe dar mais uma chance...
 
Assim, a terceira temporada de forma muito inteligente espelha a primeira, brincando com a nossa percepção sobre “certo” e “errado”, repetindo, na Concha, o tão demonizado processo de seleção feito pelo Maralto, ainda que com outros contornos, e nisso fica indefinido para qual lado torcer, se para os eliminados do processo ou para os que ficam na Concha, sendo as provas desenvolvidas por Michele criativas e instigantes, não tendo aquele tom de eliminação de “Reality Show” que as provas do processo do Maralto tem, até porque como a própria Michele repete várias vezes: “nenhuma seleção é justa”, mas infelizmente, dessa vez, a protagonista não cresce na temporada tão bem quanto os outros personagens, perdendo a chance de de entregar grandes cenas de introspecção e reflexão, fruto dos muitos altos e baixos decorrentes de ver o sonho da Concha não sair como o esperado, obrigando-a à criar um “Processo” contra sua vontade; e nisso vendo como as pessoas que antes a amavam começam a odiá-la rapidamente, fruto do quanto ela fica solitária nestes momentos (assim como aconteceu com o Casal Fundador, apresentando o que há por trás de tais decisões) e como, muitas vezes, o autor da prova também colhe frutos amargos com seus resultados.
 

Marcela, e André (Bruno Fagundes) o irmão ardiloso de Michele, 
no final "Criaram uma 'dificuldade' para venderem uma 'facilidade'" no melhor estilo brasileiro...
 
 
Há na trama um claro salto de tempo depois que a Concha é formada, unindo personagens de diferentes núcleos, parecendo inicialmente confuso, mas todas as tramas da história vão ganhando espaço em flashbacks muito bem encaixados para contar pontos da história, como quando o conselho do Maralto institui a esterilização de sua população, pois se a sua população se reproduzisse, junto com aporte anual de finalistas do Continente, logo os recursos de produção de alimentos, habitação, etc... seriam comprometidos); ou, quando descobrimos quem fundou A Causa, o movimento de resistência que combate O Processo, ou ainda quando se detalha mais o passado da Comandante Marcela (a ótima Laila Garin de Chacrinha: O Velho Guerreiro) e sua relação com Leonardo, seu pai e membro do Conselho do Maralto (o cantor Ney Matogrosso, numa boa e seca atuação) e o peso de carregar o nome Alvares, deixando-a mais tridimensional do que uma mera  “vilã à Game of Thrones. Ainda temos ao final um movimento arriscado de André, o irmão ardiloso de Michelle (Bruno Fagundes de Sense 8) contra a autoridade de Nair (Zézé Motta de Xica da Silva) e o conselho. Todos esses possíveis desdobramentos estavam presentes desde o começo da série, ficando agora melhor definidos em termos dramáticos.
 
A direção de arte cria ambientes de aspecto orgânico e funcional 
para a "Concha", cujos corredores labirínticos, lembram 
as circunvoluções de uma concha real...
 
 
Nesta temporada temos um amadurecimento sólido de seus personagens, com destaque para Marco Alvares (Rafael Lozano de Marighella); Rafael Moreira (Rodolfo Valente de 13 Andares numa ótima performance) que cria uma boa sinergia com seu irmão caçula Artur (Léo Belmonte de Patrulha Salvadora); Glória (Cynthia Senek de Malhação) que deixa de ser a “menina meiguinha da igreja” e assume um protagonismo ainda que questionável; Xavier (o iniciante Fernando Rubro)um quase alívio cômico e, temos Joana Coelho (a excelente Vaneza Oliveira de Mãe não chora) que continua sendo a personagem forte (e uma das mais verdadeiras de toda a história), que desconfia de todo e qualquer “salvador”, incluindo Michele, mas apesar de incrédula, ela se permite conhecer a Concha e reconhece o seu potencial, ficando receosa com o rumo que as provas do “novo Processo” levará a comunidade que era para ser “uma alternativa ao estabelecido pelo Maralto”. Joana também se deixa, finalmente, levar pelos sentimentos e aceita o amor, numa mudança lenta e gradualmente construída ao longo da temporada.
 
André e Marcela instigam a rebelião na "Concha" para tomarem 
conta de tudo dentro da "legalidade"...
 
 
A fotografia impecável de Rafael Martinelli (Tempero Secreto) e Eduardo Piagge (Onisciente) com sua palheta de cores quentes que a edição de Vinicius Prado Martins (Fortunato) Olivia Brenga (Bixa Travesty) Ricardo Gonçalves (O Menino que Matou Meus Pais / A Menina que Matou os Pais) Christian Chinen (Música para Morrer de Amor) complementa num ritmo encadeando lirismo ao conhecermos os filhos de alguns personagens, percebendo o olhar infantil e o tom mais cinético quando a população se rebela contra Michelle, lembrando um mix de timbalada, culto evangélico e ato público populista, permeada pela música do estúdio Submarino Fantástico (Em Nome dos Pais) e André Mehmari (Gigantes do Brasil) que trabalha bem os momentos dramáticos e sublinha um certo lirismo e desilusão, como quando em sua seleção inclui na sequência da tomada da Concha a interpretação inspirada de Johnny Hooker para Bom Conselho de Chico Buarque, ou Mulher do Fim do Mundo interpretada por Elza Soares refletindo a reflexão de Joana sobre tudo à sua volta.
 
Leonardo (Ney Matogrosso) o pai de Marcela e o mais célebre dos 
"Alvares", a família tradicional que sempre passou no "Processo"...
 
A "Concha" abriga em seu interior um equipamento que poderá
 permitir à "Causa" dar o troco no "Maralto", que ferrou com o 
"Continente" há um século, criando a disparidade social da série...

 
A direção de arte de Fernando Zucolotto (Onisciente) e a decoração de sets de Mario Surcan (Solo) define bem o espírito da Concha, que contrasta o uso de materiais naturais em com a tecnologia sutil e avançada do Maralto, num minimalismo elegante e funcional, além de soluções criativas ao mostrar o aspecto miserável do Continente como um quebra-cabeças faltando inúmeras peças como o trecho em que Joana e Natália (Amanda Magalhães de Psi) fogem dos soldados passando de andaimes e aramados, para trechos de habitações danificadas e até seções de aviões de passageiros desativados, num grande ferro-velho, coisa que se reflete nos figurinos de Graciela Martins (Trabalhar Cansa) que flerta com o estilo “Mad Max” das roupas de guerra de Glória e de Marco quando estes vão à luta.
 
Glória (Cynthia Senek) e Marco (Rafael Lozano): O 
novo "Casal Fundador"???
 

Ao refletir temas da primeira temporada, 3% entrega em sua terceira temporada a mensagem de que a história é cíclica e, apesar das diferenças, ela está condenada à repetir-se, como demonstra a mudança rápida de opinião dos moradores da Concha mostrando o quanto a humanidade sempre está vulnerável ao discurso de “messias”e de “grandes salvadores”, mostrando com profundidade em seu texto que 3% ainda pode ser considerada uma grande produção brasileira, e não apenas a “primeira produção nacional da Netflix, tendo a crítica como elemento secundário e imaginário nesta trama que discute meritocracia e desigualdade social sem o semblante que narrativas do gênero que sempre lembram o espectador de que ele está assistindo a um projeto que quer alfinetar alguém ou alguma coisa, e assim pavimenta o seu caminho rumo à um futuro conflito que deverá encerrar as histórias de seus personagens e (se continuar com a coragem mostrada até aqui...) podemos esperar uma 4ª Temporada com tudo para terminar com uma mensagem realmente importante ao seu público.


Como diria a música: " -Vamos quebrar tudo...! Vamos, vamos..."

Quatro temporadas. Um feito e tanto apesar dos incidentes de percalço decorrentes do Brazill não conhecer e não gostar do Brasil...

O futuro, à audiência pertence...


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