segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Águas nada potáveis - Crítica - Filmes: O Preço da Verdade (2019)

 

Receptores” ou Humanos?

por Alexandre César 

(Originalmente postado em 13/ 02/ 2020)


Tod Raynes e Mark Rufalo e os perigos ambientais

 

 
Água é vida certo? Dependendo da visão do CEO do grupo Nestlé Peter Brabeck-Letmathe, é um bem de não deve ser de acesso universal, coisa que num vídeo de cerca de seis minutos disponível no You Tube, ele defende que o acesso à água deveria deixar de ser um direito humano universal e ela deveria passar a ser tratada como bem privatizado. Isto apenas reflete a visão do mundo corporativo em que tudo deve ser monetizado e explorado segundo os critérios do “Deus Mercado” que sempre sabe o melhor para tudo e para todos, calcado na lei da oferta e da procura...



Tom Terp (Tim Robins) oferece sociedade ao promissor advogado Rob Billot (Mark Rufalo) por sua performance na advocacia corporativa

 
Inspirada numa história verdadeira e idealizada a partir do artigo de Nataniel Rich publicado em 2016 no jornal New York Times: “O Advogado que se tornou o Pior Pesadelo da DuPont” (https://nyti.ms/2GEu93x), e dirigido por Todd Haynes (Não Estou Lá) O Preço da Verdade (Dark Waters 2019) narra a trajetória de Rob Billot (Mark Rufalo de Vingadores: Ultimato) um advogado corporativo que defende empresas químicas para sobreviver e após ser procurado por Wilbur Tennant (Bill Camp de Coringa), conhecido de sua avó, e outros fazendeiros da Virgínia Ocidental que acreditam (e mostram evidências mais do que palpáveis) que a fábrica local da DuPont oferece risco à comunidade, por estar despejando lixo tóxico no aterro ao lado de sua propriedade que está destruindo seus campos e matando seu gado, por contaminar a água vai no decorrer da trama, ele, vai por uma tomada de consciência se tornando um defensor do meio ambiente.
 
 

Entra em cena o rústico fazendeiro Wilbur Tennant (Bill Camp) com o caso que redefiniria a carreira de Billot

 
Rob Bilott havia acabado de firmar uma parceria em seu prestigiado escritório de advocacia em Cincinnati, em grande parte pelo seu trabalho por defender grandes empresas do setor químico, o que o faz entrar em conflito consigo mesmo a partir desse encontro, e reunindo provas contundentes, pois a sua ação expõe uma longa história de poluição intencional, com aspectos que provocam reflexos até os dias de hoje. Ele inicia um processo ambiental contra a DuPont colocando em xeque sua carreira profissional.
 
 

O que Rob constata não lhe deixa dúvidas de que "Há algo de podre no aterro sanitário da DuPont"

 
 “- Eles têm todo o dinheiro, todos os recursos e vão usá-los", diz Bilott em certa altura. "- Eu sei, eu era um deles!", reforçando que a luta será árdua, arrastando-se por 15 anos, que levara vários dos queixosos ao túmulo, por decorrência de câncer provocado pela exposição à água contaminada. Surpreendentemente, Bilott, conta com a ajuda de seu parceiro na empresa, Tom Terp (Tim Robins de Sobre Meninos e Lobos) nesta empreitada que não apenas testará seu relacionamento com sua esposa, Sarah Barlage Billot (Anne Hathaway de 8 Mulheres e Um Segredo), mas também sua reputação, sua saúde e seu sustento, uma vez que no meio jurídico a sua companhia fica meio “mau-vista” pelas corporações.



Sarah Barlage Bilot (Anne Hathaway): A companheira fiel mas temerosa frente às ameaças à sua família

A direção de Haynes vai firme e gradativamente acompanhando a tomada de posição de Billot, que a princípio vai “empurrando com a barriga”nos primeiros embates, para gradativamente ir realmente vendo que a coisa é séria, principalmente à medida em que seus filhos vão nascendo, crescendo e ele por estudar os efeitos e o impacto ambiental do PFOA e do C-8 *1 e de outros produtos usados para a fabricação do teflon (isso, aquela “maravilha” que impede que os alimentos não grudem nas panelas..), bem como o seu uso prolongado no uso cotidiano e doméstico, pois uma vez dentro do “receptor” (no relatório, seres humanos...) não é eliminado pelo organismo. 
 
 

A visão de uma menina sorridente de dentes escuros leva Rob à perceber a gravidade da contaminação, que entrando no organismo, não é eliminado
 
 
O roteiro de Mario Correa (o documentário Electoral Dysfunction) e Matthew Michael Carnahan (Leões e Cordeiros) acerta em ir montando gradativamente o quadro geral apresentado suas peças e personagens como numa das cenas iniciais, quando Billot tenta civilizadamente confrontar o advogado da DuPont Phil Donnelly (Victor Garber de Titanic) que não lhe retorna telefonemas para esclarecimentos é significativa: Ao ir a um jantar do meio corporativo, ele o aborda avisando sobre irregularidades encontradas nos relatórios enviados, ao que arrogantemente o outro responde: “- Você vai arriscar a sua carreira por um bando de fazendeiros?!?” e Billot insiste, e ele responde: "- Me processe!”  e ao ser comunicado que o será, diz: “- Caipira!” mostrando a típica visão de uma elite que se acha acima de tudo e de todos,desprezando aqueles que tem a coragem de arriscar se necessário, sua carreira e algumas vezes a própria família para descobrir os segredos sombrios escondido por algumas das maiores empresas do mundo, e levar justiça as várias comunidades que são perigosamente expostas por décadas a fio a produtos químicos, nucleares, biológicos e toda a sorte de elementos mortais, coisa que a fotografia de Edward Lachman (Longe do Paraíso) sublinha na sua palheta de cores cinzas e azuladas (mostrando a frieza com que são tratadas as classes populares) e acastanhadas, remetendo a tons terrosos (“coisas enterradas”...) e a edição de Affonso Gonçalves (Carol) foca no tom documental, e até didático sobre como se monta um caso desse tipo, sublinhado pela música de Marcelo Zarvos (Extraordinário) sutil e incidental.
 
 

O advogado da DuPnt Phil Donnelly (Victor Garber) sintetiza a visão da companhia quanto aos queixosos e à Rob Billot: "- Caipiras!!!"

 
 
Ainda temos entre os personagens Sandra Tennant (Denise Dal Vera de Mente Obsessiva) a esposa de Will, cuja interpretação contida e real mostra a verdade de pessoas simples que suportam tudo apoiando os seus companheiros, Darlene Kiger (Mare Winningham de Philomena) moradora de uma cidade em que tudo gira em torno da DuPont e que sofre na pele a descriminação na comunidade por ousar questionar a principal empregadora da comunidade, e Harry Dietzler (Bill Pullman de Independence Day) um promotor que apoiou Rob na primeira vitória, que permitiu a criação de um banco de dados científico monitorando os queixosos constantemente para avaliar o impacto da contaminação por PFOA e C-8.
 
 


Billot enfrenta resistência na firma para seguir com o caso, mas Terp o apoia...



É legal ver o três vezes indicado ao Oscar®, Mark Ruffalo e atores consagrados como Anne Hataway, Tim Robbins, entre outros em caracterizações de seres humanos reais, com rugas, cabelos brancos, pneuzinhos, coisa que os figurinos de Christopher Peterson (O Irlandês) retratam, em pessoas reais com atitudes que refletem as preocupações cotidianas como quando Sarah (que havia sido advogada, antes de casar e ter filhos) conversa coma amiga de Rob Carla Pfeifer (Louisa Krause de Billions) advogada atuante, sobre as dificuldades de conciliar carreira e vida doméstica, refletindo as coisas triviais e as realmente importantes, de pessoas que tem medos e fragilidades, como em certa altura o protagonista desanima por conta de um manobra da DuPont de renegar um acordo que a mesma havia acordado sete anos atrás, levando a um contestação de todas as ações que arrastariam todo o processo, e ele fala:  - O sistema é equipado! Ele diz a todos que nos protege mas ele mente! Nós é que nos protegemos! Não as empresas, não os cientistas, não o governo. Nós! Um fazendeiros com ensino médio me disse isso! Em um dia ele sabia disso e eu achei que ele estava louco! Não é uma loucura?”  e a esposa responde que tudo isso não tira no mérito do que ele fêz (A ação junto a DuPont gerou um dos maiores bancos de dados do mundo sobre a exposição de seres humanos a materiais tóxicos e agressivos, daí a demora dos cientistas a dar um veredito, por ser tão vasto o volume material)...
 
 

Ao confrontar o Presidente da DuPont: "- Esse receptor tem um nome. O nome dele é Buck Bailey. Esta é a foto dele poucos meses depois de nascer!!!"

 
O desenho de produção de Hannah Beachler (Pantera Negra) auxiliado pela direção de arte de Jesse Rosenthal (Vidro) e a decoração de sets de Helen Britten (Marco Polo) situam a passagem do tempo no surgimento da internet discada, os ICQs e os celulares com mensagens de texto que iam substituindo os pagers.
 
 

O Buck Bailey real numa ponta, que dá um toque surreal à cena, chegando a parecer um efeito visual

 
Entre os rostos reais da história, que aparecem como figurantes, destaca-se o real Buck Bailey, uma das primeiras crianças afetadas pela contaminação do PFOA e C-8, que nasceu com apenas uma narina e desalinhamento dos olhos. Após algumas cirurgias corretivas sua aparência foi suavizada, mas ainda à primeira vista parece um efeito visual (foi o que inicialmente pensei ao ver a sua participação). Moral: O maior efeito especial ainda é a realidade...
 
 

Sarah é o porto seguro de Rob nos muitos momentos tensos.

 
 
Ao final Rob conseguiu n primeiro julgamento um valor de indenização de U$ 1.6 milhões, no segundo U$ 5,6 milhões e no terceiro U$12,5 milhões levando depois a DuPont a acertar com os 3535 casos remanescentes um total de U$ 670,7 milhões. “Final Feliz”? Bem, ao final somos brindados com os seguintes dados:
 
 

Em certa altura a psiquê de Rob fica abalada, cabendo a Sarah "dar-lhe colo"
 
 
- Atualmente acredita-se que o PFOA se encontra em virtualmente todo o ser vivo do planeta, incluindo 99% dos seres humanos.


- Como resultado do trabalho de Rob Billot, surgiram vários movimentos pelo mundo exigindo o banimento do PFOA e cerca de 600 investigações relatadas com os “químicos eternos” (que não são eliminados pelo organismo), a maioria, produtos não regulamentados.
 
 

O real Rob Billot e o sorridente Mark Rufalo...

 
 
E, passados mais de 20 anos desde que Wilbur Tennant bateu em sua porta, Rob Billot continua na luta... Coisa que nos faz pensar nestes tempos em que por aqui um governador sucateia uma companhia de tratamento de águas para piorar a qualidade do serviço e posteriormente justificar a sua privatização, na contramão de todo o resto do mundo...  

Água ainda deveria ser vida...
 
 


Notas:
 
*1: Ácido perfluorooctanóico (PFOA), também conhecido como C8 e perfluorooctanoato, é um ácido carboxílico perfluorado e fluorosurfactante sintético e estável. Uma aplicação industrial é como surfactante na polimerização em emulsão de fluropolímeros. O PFOA tem sido produzido desde os anos 1940 mediante síntese industrial. Também pode ser formado pela degradação de precursores, tais como os fluorotelômeros. (Wikipédia)

PFOA é um importante produto químico, crucial na fabricação de materiais utilizados para fazer produtos que se encontram em toda a economia norte-americana, e, neste caso, fluorpolímeros. É um tensoativo e um auxiliar da polimerização, utilizado em quantidades muito pequenas para ajudar a fazer dispersões de fluorpolímeros. No passado, todos os fabricantes de revestimentos antiaderentes utilizavam dispersões de polímeros fluorados à base de água (antiaderente) contendo algum nível de PFOA. Atualmente, os fabricantes de revestimento antiaderente mais conceituados estão produzindo revestimentos feitos sem PFOA.

 
PFOA: A fórmula química do vilão da história.

 

0 comentários:

Postar um comentário