segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Criação de um mundo sinistro - Resenha: O Set Design do Cinema de Horror da Universal

 


O Horror & A Classe...

por Alexandre César 
(Postado originalmente em 15/ 08/ 2020)

A estética cenográfica do Terror da Universal

 

#TerrorDaUniversal



Baseado na tese ”The Halls of Horror: An Analysis of Set Design in Universal Studios Horror Films of the Early Thirties” de Charlie Lessard-Berger (The Mel Hoppenheim Schol of Cinema – Setembro de 2011) 

 



Nos anos de 1930 a Universal Studios investiu numa série de filmes de horror que rapidamente se tornaram icônicos para o estúdio e influenciaram fortemente o desenvolvimento do gênero em Hollywood. Este ciclo de filmes, (que ajudou a criar a identidade iconográfica da Universal) tornou-se reconhecido por seu estilo visual grandemente dependente do set design de suas ambientações, revela numa análise mais profunda, um amalgama de influências, mostrando a ação de vários diretores de arte, cujo trabalho era, dentro das contenções impostas pelo modo de produção do estúdio, montar uma miríade de elementos estilísticos sugeridos por roteiristas, diretores, fotógrafos, produtores e... outros set designers, o que às vezes dificulta creditar corretamente o design estilístico a seus colaboradores. Neste artigo daremos especial atenção a três filmes em especial: Drácula de Todd Browning, Frankenstein de James Whale e O Gato Preto de Edgar G. Ulmer, os dois primeiros por apresentarem características marcantes que ditariam todo o padrão do ciclo, e o último, por aparentemente romper com este, mas manter laços indeléveis com o espírito narrativo e conceitual do mesmo.

O início da Universal

 

O patriarca Carl Leammle, fundador da Universal Studios



Carl Laemmle ( ⭐ 17/01/ 1867 - ✝ 24/ 10/ 1939 ), fundador da Universal Studios, comprou o terreno inicial de 230 acres (em que seria construído o estúdio) em San Fernando Valley em 1912 (foi concluído em 1914, sendo inaugurado em março de 1915 ao custo de 165.000 dólares da época) com o objetivo de construir uma “cidade-estúdio auto-suficiente”. Naquela época em comparação com outras majors era pouco competitivo, com poucas cadeias próprias de exibição, ao contrário de outros estúdios. Laemmle preferiu investir na construção de uma fábrica, que dinamizasse a produção de filmes, fornecendo locações estáveis onde eles pudessem ser rodados. Sua estratégia era produzir filmes de baixo orçamento que pudessem ser feitos na maior quantidade e no menor espaço de tempo possível. Sendo mais um homem de negócios do que um artesão, rapidamente implementou o estabelecimento de fórmulas que agilizassem a cadeia de produção. 

 

Um dos muitos filmes rodados nas locações do estúdio que muitas vezes não só reciclavam cenários e figurinos, como sequências inteiras de outros filmes


“Esperava-se que os filmes fossem diferentes uns dos outros, Laemmle estava convencido de estas distinções podiam ser minimizadas pela política de 'regular diferenças' enquanto certos valores de produção fossem mantidos. Desde que a fórmula para o processo de produção e história fosse estabelecido para digamos, cinco westerns de Harry Carey [ator pioneiro no gênero], um cineasta competente como John Ford poderia parti-lo, aproveitando com frequência as mesmas filmagens de cenas de ação, fazendo apenas ajustes na história e nos personagens” (Thomas Schatz: “The Genious of the System: Hollywood Filmaking in the Studio Era” New York: Pantheon, 1988) 

 

A "eurostreet", onde muitas cenas de vários filmes passadas "na europa" foram rodadas


Laemmle, estava tentando assegurar o segundo lugar no mercado, e não se preocupar com expansivos e vastos mostruários, O estúdio era a primeira manifestação física de sua estratégia de produção, contando já nos anos de 1920, quando a maior parte dos estúdios estavam sendo implantados, a Universal já possuía um grande número de cenários permanentes e de cidades e vilas artificiais que poderiam ser maquiadas para cada tipo de filme que fossem nelas filmadas. Havia uma “cidade francesa”, uma “village européia”, uma “cidade de farwest” e por aí ia, sendo cidades cenográficas genéricas, que causavam até estranhesa a cineastas europeus que lá filmavam, pois como diziam: “Isto não é a Europa, mas uma versão de opereta dela... , mas funcionava para os objetivos do estúdio (Algo muito similar aqui no Brasil são os estúdios Projac da da Rede Globo de Televisão, com as suas cidades cenográficas, que surpreendem no quesito de ambientação de suas novelas e séries). 

 

Matéria da Time Magazine de 1963 mostrando as cidades cenográficas da Universal, onde castelos medievais ficavam lado a lado com barcas do Mississipi ou cidades do Oeste americano.

Ao longo da década de 1920, o produtor Irving Thalberg, que trabalhou com Laemmle de 1918 a 1923 (quando mudou-se para a Metro-Goldwin-Meyer) tentou convencê-lo de investir mais em produções “A” (que tinham em média um custo de 400.000 dólares da época) e não contentar-se a apenas ser o segundo lugar no mercado. Laemmle ocasionalmente fazia produções “A”, privilegiando cineastas escolhidos a dedo (na sua maioria alemães emigrados como ele) mas os cenários destes filmes no geral eram extravagantes, com dimensões colossais e ornamentação em excesso, e os filmes tinham de ser rodados dentro dos limites físicos do estúdio para dar aos produtores controle sobre a produção e o seu orçamento.

 

Carl Leammle Jr. o "Júnior". Aquele que apostou no horror



 Tal estratégia começou a mudar quando Laemmle ofereceu o a direção do estúdio a seu filho Carl Jr. ( ⭐ 28/ 04/ 1908 - ✝ 24/ 10/ 1979) ao completar 21 anos (alguns pais dão um carro...) e cheio de ideias ele ousou em seu primeiro ano em duas produções; Nada de Novo no Front e O Cantor de Jazz (os dois de 1931) ambos de alto custo (cerca de um milhão de dólares) e tendo enfatizados em sua publicidade o trabalho dos Designers de produção Herman Rosse e Charles D. Hall como grandes trunfos, mas enquanto Nada de Novo no Front se tornou o grande campeão de bilheteria de 1931, se tornou o grande campeão de bilheteria de 1931, O Cantor de Jazz se revelou um fracasso ainda que fosse o primeiro filme sonoro da história, e percebeu-se que a despeito da publicidade, investir nos cenários não era uma estratégia eficiente para capturar a atenção da audiência, coisa que havia se percebido em duas produções de “monstros” anteriores, O Corcunda de Notre-Dame (1923) e O Fantasma da Ópera (1925) entretanto nestes dois filmes, o design de produção foi elemento chave para o seu sucesso e promoção (fora as performances imagéticas de Lon Channey) estimulando Laemmle Jr. a investir no gênero terror, “Importando” artistas e técnicos egressos do Expressionismo Alemão, pois com a crise econômica e a ascensão do nazismo muitos profissionais foram para os EUA, contribuindo com seus conhecimentos para alicerçar o gênero, ainda incipiente em Hollywood.

 

"O Corcunda de Notre-Dame" (1923). Lon Chaney e o início do namoro do estúdio com os "monstros"


 

Dentre esses, o diretor Paul Leni, que inicialmente fez dois filmes não diretamente considerados de horror: O Gato e o Canário e O Homem que Ri (ambos de 1927) que eram basicamente dramas cujos protagonistas apresentavam uma aparência desagradável e visualmente mesclavam influências do gótico e do expressionismo provando que o gênero não prescindia de cenários realistas e de dispendiosa reconstituição de lugares existentes para funcionar.

 

"O Fantasma da Ópera" (1925). Chaney foi pavimentando o caminho



Assim começou a se estabelecer o que passou a ser chamado “Gótico Universal” cujo maior expoente foi o designer Charles Daniel Hall que se caracterizava por sets de elementos góticos altamente ornamentados, com ângulos expressionistas e outros aspectos de sua estruturação que aliava uma sólida influência europeia, mantendo um estilo visual consistente, dentro do estilo fabril utilizado na elaboração dos filmes, e das restrições orçamentárias (que impunha a reciclagem dos cenários) durante toda a primeira fase do ciclo (sob a gerência de Laemmle Jr.) criando assim uma identidade visual de que o estúdio precisava, e embora, dependente do retorno financeiro que o gênero lhe rendia, os seus executivos priorizavam as comédias e dramas e musicais com estrelas consagradas. 

 

"Os Crimes da Rua Morgue" (1932). DNA Expressionista


Dentro do sistema de divisão de trabalho que imperava em Hollywood e sua fragmentação em vários departamentos, é difícil determinar a exata proporção da influência de cada profissional no trabalho envolvido, mas sendo evidenciado como certas as influências além de Laemmle Jr., de Hall, as do fotógrafo Carl Freun, do diretor Robert Florey (Os Crimes da Rua Morgue de 1932) e do técnico de efeitos especiais John P. Fulton, entre outros, infelizmente desconhecidos, que ajudaram a cristalizar de forma consistente o estilo visual destes filmes, hoje clássicos.

 

Na contramão de outros estúdios e tendências

 

"Cleópatra" (1934): A influência do estilo Art Deco era predominante nos sets cinematográficos


Imperava em Hollywood, aliado à indústria da moda e ao consumismo em geral, o estilo Art Deco, também fortemente presente na arquitetura, tendo como principais adeptos Cedric Gibbons (criador da estatueta do Oscar) e Joseph Urban, figuras de proa no meio teatral e cinematográfico.

Ambos arquitetos por formação tal qual Hall e ao contrário deste se valeram do estilo glamouroso em voga para valorizar a função de diretor de arte, criando inclusive o conceito do “Super-Diretor de Arte”, responsável por tudo o que se via na tela, que se por um lado agregava prestígio à categoria, por outro criava uma visão distorcida do ofício, servindo mais para diminuir a importância da colaboração de outros profissionais em comparação ao seu próprio trabalho. Por exemplo, Gibbons em seus 30 anos de atividade à frente da MGM, onde estabeleceu o estilo extravagante do estúdio, foi creditado como responsável pelo design de 1500 filmes, o que era humanamente impossível, mostrando uma legião de colaboradores mantidos no anonimato (coisa semelhante ocorreria anos mais tarde na Paramount Pictures, onde a figurinista Edith Head era creditada por todos os figurinos de toda a produção do estúdio...). 

 

Dos musicais de Fred Astaire aos dramas sofisticados, o Art Deco imperava


Assim, Hall, que havia começado a ser notado em O Garoto (1921) de Charles Chaplin, e já havia provado sua competência para o ofício em O Fantasma da Ópera (1925) e O Homem que Ri (1927), tornou-se o responsável por fugir do glamour vigente e aliar o Gótico e o Expressionismo para criar a “cara” de um estúdio em constante crise financeira, para atrair o público. 

 

"Num castelo isolado no alto dos Montes Cárpatos..."

Beverly Heisner em seu livro “Hollywood Art” (1990) observa que muitas vezes o grau de colaboração entre designers, roteiristas e fotógrafos se refletia em detalhes como um uso diferenciado de escala, aumentando o seu tamanho no posicionamento da mobília, ornamentos de paredes desproporcionais e muitas sombras projetadas que aliado à um bom uso de câmera criava uma atmosfera apropriada ao clima procurado para as cenas. Tais elementos fizeram seu debut em em Drácula (1931) de Tod Browning

 

Drácula, o conde-vampiro gótico

 

A vista plena do imenso hall do castelo transilvaniano. Uma matte painting de respeito


Baseado livremente mais nas peças teatrais de Hamilton Deame e de John Balderston do que no original de Bram Stocker, o primeiro filme de horror sonoro e hoje clássico graças à estupenda performance de Bela Lugosi inaugurou o ciclo fazendo a identificação definitiva do estilo arquitetônico gótico e medieval com o gênero do terror (e ditando boa parte do que viria posteriormente) se valendo da concepção do espaço cênico para definir as marcações dos atores, posicionando o conde sempre enfaticamente numa posição de poder em relação aos outros personagens, sempre num nível abaixo ou mais limitado em termos de movimentação em relação a ele. 

 

O personagem-título e sua grande mobilidade no espaço cênico, pleno de texturas que virariam marca


As arcadas pontudas e de ornamentação carregada no gigantesco castelo em ruínas da Transilvânia remetiam às catedrais medievais, mas entretanto não eram apenas estes elementos que caracterizavam o filme mas sim o mix usando os estilos Gótico e Contemporâneo (da época) como ferramentas estratégicas para orientar a narrativa do filme, principalmente em função das imposições que o estúdio deu ao filme, com um orçamento de pouco mais de U$ 355.050,00 dólares (o maior da Universal naquele ano, mas ainda razoável em comparação com os orçamentos de outros estúdios) com 36 dias de filmagem, e portanto o maior investimento nos cenários do castelo, cujos subterrâneos foram depois reciclados no interior da Abadia de Carfax no ato final, e tendo a ambientação na Londres contemporânea do início da década de 30 e não naquela do período vitoriano, poupando despesas com cenários de época. 

 

A escada em "L", as colunas e elementos verticais e as arcadas pontudas típicas do Gótico


Hall, auxiliado pelos designers cenográficos Herman Rosse e John Hoffman (não-creditados) enfatizavam sempre a presença de Drácula e a sua posição de poder, principalmente pelo uso de escadas (onde ele sempre estava acima dos outros e na conexão entre os exteriores e interiores reforçando consistentemente este contraste entre ele e os demais personagens usando os dois estilos para enfatizar a dualidade e o fracionamento dos dois mundos: O sinistro mundo do conde (gótico) e o mundo comum do dia-a-dia humano onde habitam Mina, Jonathan Harker e Van Helsing, tendo essas duas realidades a aparência de períodos de tempo diversos: Uma numa era passada com suas ruínas empoeiradas e com imensas teias e aranhas e outra, nos seus interiores fashionistas, que por suas proporções menores podiam ser construídos com menos recursos e com material reciclado de outras produções. 

 

As catacumbas do castelo na Transilvânia e o subsolo da Abadia de Carfax em Londres: O mesmo cenário reciclado como dois ambientes distintos


A parte inicial, da ida de Renfield (Dwight Frye) à Transilvânia foi rodada nos arredores do estúdio com cenários já pré-existentes de outras produções (as locações “européias”) sendo somente a partir de sua entrada no castelo que somos apresentados a material cênico inédito, no imenso hall de vastos espaços trespassados pelos raios da lua através dos raios de enormes janelas verticais, refletindo um tom de ameaça desconhecida. 

 

As escadas e planos elevados sempre põem Drácula numa posição de poder, face aos mortais...

Um take estático, mais afastado com a adição de uma matte painting (técnica de efeitos visuais, em que uma placa de vidro com o resto da imagem pintada é superposta à imagem filmada, para ampliar as dimensões do cenário) ampliava as paredes até o seu desaparecimento nas trevas bem acima, dando a sensação de um mundo sinistro onde o homem (Renfield) se sente esmagado pelas suas dimensões sendo encapsulado pela grande escada imperial em “L” tal qual um inseto. O conde não é afetado por este efeito por ser apresentado num patamar acima, no alto da escada, numa posição dominante,e apesar de maciço, o hall passa um senso de permeabilidade entre o exterior e o interior, enfatizado pelos galhos secos de uma árvore que atravessam uma das janelas, de vidros partidos, evidenciando que Renfield não está protegido de nenhuma ameaça externa (as “crianças da noite”como diz o conde mais adiante). 

 

O espaço destinado ao hóspede Renfield o encapsula num canto


De forma similar a sala de convidados do castelo, termina numa enorme janela aramada ao fundo, confinando Renfield a uma extremidade, que tem atrás de si uma imensa cortina, e à sua frente uma maciça mesa de jantar, diminuindo a sua figura e dando ao conde grande liberdade de movimentação, dominando a cena. Aqui se revela o elemento-chave do design cenográfico do filme: o não balanceamento, pois enquanto uma parte da sala se estende à dimensões como as de uma catedral, despersonalizando o espaço, a sua parte oposta consiste de numa quina restritiva e aprisionante. Esta falta de equilíbrio enfatiza a natureza perturbadora do mundo do vampiro, que aliena a figura humana. Tudo no cenário enfatiza a superioridade de Drácula e sua desenvoltura, relegando Renfield a um canto aprisionado. Tal coisa que se repetirá ao longo do filme de maneiras distintas.

 

Em Londres, A escala muda e se cria o embate de dois mundos


Quando a ação se muda para Londres, obviamente a escala cenográfica cai drasticamente, além da mudança de estilo refletindo uma contemporaneidade (da época) que entretanto à medida que o filme progride vai evocando a associação gótica com o tema das “casas mal-assombradas” onde o espaço que deveria oferecer proteção se abre para a intrusão do terror, e tal qual no castelo, os cenários inicialmente convencionais se revelam construídos para que as áreas onde Mina, Harker, Van Helsing e cia. se encontrem em cena deixem-nos sempre confinados em suas seções sejam cercados por mobiliário, como estantes atrás de si, vasos e jarros de flores, etc... novamente revelando um não-balanceamento e transformando um espaço familiar em algo desconfortável, pois enquanto o castelo de Drácula é marcado por teias de aranha e neblina (associando-o à figuras de pesadelo) a própria decoração da casa de Mina apresenta sutis referências a ele, como quando na sala principal ele se posiciona em frente a um grande retrato (que guarda similaridades com as massivas decorações do castelo) e a uma miniatura de navio (que remete ao Demeter, que o trouxe à Inglaterra) reproduzindo desta forma, a questão da permeabilidade do exterior para o interior. De forma similar a sua entrada e saída através de balcões de janelas enfatizam a sua mobilidade sobrenatural. 

 

Os ambientes do dia-a-dia se tornam estranhos, face a ameaça do conde


Uma as características proeminentes dos cenários, (que se refletirão nos filmes subsequentes do ciclo) é o uso extensivo de escadarias que sempre servirão para marcar Drácula numa posição de poder, principalmente quando em seus domínios, e suas vítimas e opositores abaixo, em posição de inferioridade. Tal marcação tendo mais uma função simbólica (e até artificial) do que realmente lógica, pois os outros personagens sempre tomam um trajeto diferente (sempre mais apertado e restritivo) do usado por ele. 

 

Recorrência de elementos e temas estético do Gótico seguem ao longo do filme


Paralelo a isso, fica patente ao longo do filme, a constante evocação dos mesmos temas pela repetição de elementos arquitetônicos no castelo, na casa, nas escadarias na abadia, na textura dos tijolos das paredes, fruto do reaproveitamento dos mesmos cenário ou parte deles ao longo do filme, por questões orçamentárias, mas caindo como uma luva para compor a sua atmosfera. 

 

Independente da localização, as janelas, os arcos e rosáceas são encontradas nos cenários de forma evidente ou sutil


Embora a versão em espanhol (rodada ao mesmo tempo à noite) tivesse uma direção mais dinâmica (menos estática do que a de Browning) e os atores se movessem de forma diferente dos da versão em inglês, a relação de dominância entre os personagens e a repetição de temas se manteve pela forma como os cenários foram construídos, ditando-os e assim estabelecendo os dois mundos: O da Londres contemporânea (da época) como um mundo nem bom nem mal, mas de razão e de ciência, e o mundo gótico, passado e sobrenatural do vampiro como um mundo de puro mal. Tal resultado de dois estilos fazerem sentido na trama na verdade, não resultaram da vontade dos produtores de estabelecer uma coerência estilística e sim, da competência dos profissionais envolvidos, pois na época essa disparidade de ambientação foi muito observada pela crítica, mas à medida que o filme foi envelhecendo, e a parte de Londres ficando mais datada e menos contemporânea, tais problemas ficaram menos patentes do que outros mais cruciais como a direção estática de Browning, que caso não tivesse um intérprete do peso de Lugosi, teria feito um filme que hoje estaria esquecido. 

Duvida? Procure no YouTube a versão espanhola, que tem uma direção tecnicamente superior (inclusive usando gruas em ousados movimentos de câmera) mas um conde sem metade da energia de Lugosi e depois reflita.

 

Mesmo em ambientes mundanos, os mortais se posicionam num canto, dando mais mobilidade ao conde


Em que se pese prós e contras, Drácula introduziu algumas das principais características que se tornaram persistentes no departamento e arte do estúdio durante todo o ciclo do Horror da Universal como as criptas e grandes cortinados que eram fortes reminiscências de filmes anteriores (quando não vinham dos próprios...) e o uso de escadarias e portadas que tematizavam os personagens remanescendo como elementos recorrentes e acima de tudo, o tom artificialmente over dos cenários, com seus castelos em despenhadeiros, florestas enevoadas com árvores retorcidas ao luar, numa Transilvânia assumidamente fake mas que se tornou icônica. 

 

"A Filha de Drácula" (1936) embora usasse cenários mais Art-Deco, reaproveitou os cenários do castelo (centro), numa escala menor


Frankenstein, o monstro expressionista

 

Bastidores do laboratório. mix de estilos


Após o sucesso de Drácula, e à varias mudanças de roteiro e de escalação de diretores e atores, Carl Leammle Jr. Fechou contrato com James Whale (substituindo o francês Robert Florey que acabou encaminhado para dirigir Os Crimes da Rua Morgue) para filmar a adaptação de Frankenstein, feita a partir da peça teatral inspirada no original de Mary Shelley. Whale, tal qual Florey, optou por estilisticamente mesclar o estilo Gótico com o Expressionismo, mantendo dois estilos distintos para enriquecer a narrativa visualmente. Originalmente orçado em U$ 262.000,00 dólares, viria a se tornar o maior investimento da Universal do ano de 1931, destacando-se que alguns testes preliminares feitos por Florey e pelo fotógrafo Paul Ivano e o roteiro inicial, serviram para entusiasmar a equipe do departamento de arte, que abraçaram o conceito de “algo mais impressionista do que científico, e projetado para criar a sensação da 'mágica científica' como foi sugerida no laboratório de Metropolis (clássico de Fritz Lang de 1927)” .

 

Esboços de Herman Rosse do laboratório e do moinho


Hall, auxiliado por Herman Rosse, desenvolveu mais de cinquenta esboços até definir como seria o laboratório do cientista, largamente bebendo das fontes do expressionismo alemão, embora o estúdio quisesse tal qual em Drácula, um visual gótico-moderno. Whale, foi driblando as imposições onde podia, assegurando a construção do laboratório e do moinho onde se dá o conflito final entre criador e criatura, fazendo uma concessão aqui e outra ali ao estúdio, que embora tivesse dinheiro para investir no filme, impôs limitações orçamentárias (pois apesar do sucesso dos últimos filmes, a Universal ainda estava em crise financeira), fazendo uso da reciclagem de cenários de filmes anteriores para assegurar a sua visão apesar de uma ou outra inconsistência estilística. 

 

O alto "pé-direito" do laboratório ainda era menor do que o da ideia original

 

O cenário do laboratório, no teste inicial como uma versão afunilada de um cenário de Drácula, de onde a luz exterior vinha de uma abertura no topo, sendo posteriormente incorporados elementos que dariam novas texturas, atendendo a exigências dos produtores, sendo adicionada a ideia de uma plataforma circular num patamar mais elevado com uma mesa onde o monstro repousava (a área de experimentação) e abaixo, um nível de observação onde se caracterizava pela adição nas paredes de vários equipamentos modernos, refinando a sua estrutura. O look final do cenário acabou reduzindo as proporções dos esboços de Rosse, eliminando o aspecto moderno pela incorporação de elementos góticos na sua estrutura (como o estúdio queria) ficando o fator moderno por conta dos equipamentos elétricos, cujo visual sofisticado contrastava com as paredes angulosas de tijolos, de aspecto medieval evocando uma velha estrutura.

 

A masmorra, distorcida para parecer um espaço menor do que era de fato, enfatizando a angústia do monstro


A diferença de níveis de experimentação e observação foi diminuída e a circunferência da área foi restringida, por uma massiva parede de tijolos deixando espaço para maior interação entre cientistas e convidados apesar das grandes dimensões do cenário. A esguia plataforma elevada na parte esquerda da sala deixa a mesa de operações num nível abaixo, ficando num nível que a remove do nível onde os personagens interagem, enfatizando a natureza bruta do experimento. 

 

Os espaços de estudo, sempre têm um crânio ou esqueleto, para evocar vida, morte, etc...


As altas paredes de pedras quadrangulares do cenário evocam a tradição gótica orientada para o céu, mas simultaneamente as paredes oblíquas com seus efeitos de claro-escuro evocam o estilo do expressionismo alemão. O aspecto moderno se mantém pelo equipamentos desenvolvidos pelo eletricista Kenneth Strickfaden, que criou vários dispositivos elétricos e montou-os de forma a preencher o espaço. Entretanto o vasto e desordenado espaço de equipamentos tecnológicos induzem à sensação de um senso de caos e desorganização, mas do que de refinamento, e faz o cenário parecer mais saturado e claustrofóbico. 

 

Os exteriores em estúdio, assumiam o seu lado "fake"


A ideia original de Florey era a de uma estrutura vertical força a hierarquização do espaço, ficando a torre do laboratório ereta contra a tempestade e partindo os céus como um monte pontudo. Do lado de fora, a estrutura é uma reminiscência da iconografia gótica, sugerindo um desejo de ascensão e se conectar com forças mais sublimes. O laboratório provê uma impressão de ausência de limites da parte interna por sua abertura, cujos ângulos das paredes ecoam o aspecto da torre e seu senso de imensidão. Convertido, a estrutura do laboratório, com sua pequena abertura no topo permitindo à luz entrar somente do topo, chamam a atenção para a obscuridade dos experimentos do Dr. Frankenstein. Enquanto o exterior da estrutura aparece como uma torre ereta, seu interior é desenhado como um profundo abismo. A hierarquia entre os personagens ganha significância uma vez que a localização na torre das outras salas são reveladas, ficando a criatura (Boris Karloff) assassina aprisionada no mais baixo nível, alguns níveis abaixo da entrada, enquanto o cientista mantém a sua superioridade pelo seu posicionamento no mais alto piso do laboratório. 

 

As escadas atestam simbolicamente a procura do monstro por ascensão


A outra seção do laboratório é a masmorra de estruturas contorcidas onde o monstro fica aprisionado. A parede de fundo é feita de ângulos convergindo para uma pequena janela gradeada, confinando-o num beco sem saída. Fluindo através da estrutura do laboratório, a luz entra no cômodo vinda por cima, através da janela. A abertura do cenário direciona a atenção do espectador para a sua dimensão vertical, enfatizada pelo gestual do monstro sempre abrindo as suas mãos para o alto tentando pegar a luz. Embora não descrita como uma masmorra, a adição de uma grande e oblíqua estrutura posicionada acima da cabeça do monstro é suficiente para dar uma ilusão de espaço fechado, com a imitação de estreitamento entre as paredes, convergindo para a pequena janela, mantém o senso de aprisionamento e deixa espaço para uma abertura permitindo ao monstro imitar a conversação com a luz acima dele. 

 

O moinho, já em chamas no climax final. O aspecto cônico da estrutura foi mantido, embora reduzido


Este comportamento enfatiza a verticalidade da torre e a conexão com Deus, enquanto a ilusão de achatamento sobre a estrutura horizontal e a convergência de linhas acima da janela de fundo quebra a sua linearidade por referenciar o estilo angular do horror germânico. Os dispositivos elétricos carregam os aspectos científicos, enquanto a sua estrutura e o seu material de construção, evoca o Gótico. Ao final, o laboratório mescla claramente o design moderno, o científico, o Gótico e o Expressionismo mostrando o quanto um cenógrafo pode ser influenciado num projeto.  

 

O interior do moinho. Espaço apertado e bagunçado, refletindo o estado de confusão de criador e criatura


O confronto final entre o cientista e a sua criação se dá num moinho de vento dilapidado, que domina o horizonte com a sua elevada estrutura. O moinho é o cenário que compartilha a maior similaridade com a ideia do script original, em que a sala principal era descrita como “uma pequena sala circular, larga o suficiente para acomodar equipamentos hidráulicos e/ou mecânicos” e onde “tudo está num estado de decadência”. O resultado final consiste numa pequena sala com pedaços e madeira e colunas. A despeito da manutenção do anguloso design expressionista do laboratório, seu estreitamento ajuda a enfatizar a tensão e confusão da cena de luta. A compacta organização cria um labirinto em miniatura, que tem um perturbador efeito na narrativa por providenciar um senso de perigo imprevizível. Isto é suportado pela insistência de Whale em evitar grandes tomadas. O interior do moinho é claustrofóbico, enfatizando o senso de aprisionamento e o estado de conflito mental do monstro. Embora a imposição da estrutura exterior sugira, a ausência de espaço e os grandes mecanismos, e os ângulos pouco usuais foram determinados pelo design de seu interior. 

 

Os floridos ambientes evocavam uma "normalidade" embora tivessem as texturas características dos sets da Universal


Charles Hall descartou algumas ideias, optando por fazer o interior do moinho o mais obscuro, complexo, e labiríntico possível, num caminho que forçaria os mais diversos posicionamentos de câmera para dinamizar a ação. Enquanto Hall imaginava algo espaçoso, que facilitaria movimentos amplos, os roteiristas e o diretor viram a oportunidade de criar um espaço sufocante. O exterior do moinho, com o sua estrutura vertical cônica, quase similar à do laboratório, é a única cujo aspecto exterior é desproporcional em relação ao interior (mesclando as ideias de Florey e de Hall).

 

Os cemitérios eram plenos de símbolos iconográficos que foram replicados por todo ciclo


Embora a maioria da ação se passe no laboratório, outros cenários do filme contrastam pelo seu aspecto mais convencional e mundano, como algumas tomadas na mansão de Elizabeth (Mae Clarke) a noiva do cientista, apresentando uma estrutura mais convencional de trâs paredes, típica de cenários de estúdio, com paredes pesadamente ornamentadas com motivos florais emergentes de influências góticas. O living room da mansão é um desses cenários de estrutura convencional, de fácil confecção, que apresentavam as texturas de paredes e portas com motivos geométricos das quais os artesãos da Universal se especializaram (em especial nos filmes de horror) sendo pouco vistos em filmes de outros estúdios. Estes cenários eram bastante comuns, exceto pelo seu excesso no uso de flores e bouquets na ornamentação, que sugere a contribuição de Whale (que era obcecado por flores).

Corredores e cômodos com seus pisos e paredes texturados (moldados) eram O "Universal Style"


Entretanto parte destes cenários incorporavam sutis elementos que serviam de recordação do estilo angular do laboratório, embora em contraste tenha um aspecto mais contido e menos espaçoso, tendo o corredor adjacente a este cenário seja construído com dois volumes oblíquos, que remete ao senso de caos e desequilíbrio visto no cenário da masmorra do monstro. A adição deste corredor espaçoso é suficiente para referenciar o senso de verticalidade achado em outros cenários, coisa perdida em outros cenários da mansão. Desta forma, ainda que os cenários não tenham algumas especificidades estilísticas, por seu turno, ainda ecoam o universo disruptivo de Frankenstein, por conterem elementos que permitem um desenvolver um único estilo.

 

crânios e mais crânios, evocando as questões de cunho moral, apesar da morbidez intrínseca


Como regra, elementos reciclados de outros filmes, como cenários, adereços de cena foram usados para desenvolver o seu próprio e consistente universo, sendo várias vezes utilizados esqueletos ao fundo de cenas (em salas de estudos ou consultórios) em que são discutidos temas como vida, morte, loucura e ciência, sendo estes espaços introduzidos gradualmente, do cemitério para a escola de medicina ou o escritório de Waldman (Edward Van Sloan) onde embora associados à ciência, tais elementos vão ganhando conotações mórbidas pelo uso de figuras mortas como matéria-prima pelo cientista. 

 

"A Noiva de Frankenstein" (1935) retomou e ampliou o laboratório



O cemitério, assumidamente feito em estúdio, com seu céu carregado (de nuvens ameaçadoras...) pintado em telão. e cruzes e lápides, introduz o senso estético correspondente ao resto do filme, assim como os vales artificiais nas cercanias do moinho. Tal constância estética só é quebrada nos dois momentos em que se usam tomadas ao ar livre, quando o monstro encontra uma garotinha num bosque, e quando seus pais carregam o seu corpo, filmado usando a cidade cenográfica de Nada de Novo no Front (1931) sendo rupturas no estilo artificial Gótico-Expressionista do filme, evidenciando que por mais criativos que fossem os realizadores e designers do filme não tinham carta branca para criarem um novo lote de cenários em função da situação deficitária crônica da Universal

 

"O Fantasma de Frankenstein" (1942). O uso de sombras e sets texturados se manteve firme ao longo das sequências


Diferente de Diferente de Drácula, que tem uma bem definida oposição mundo normal, humano X mundo sobrenatural, maligno, Frankeinstein tem o seu desequilíbrio na oposição ciência perigosa X mundo cotidiano, humano mas sem estabelecer uma oposição definitiva entre ambos pelo uso recorrente de temas ao longo de seu desenvolvimento, criando uma assinatura estética coerente. 

 

O Gato Preto e seu palácio Bauhaus

 

"O Gato Preto" (1934) visual sofisticado em narrativa clássica


Diferente de Drácula e de e de Frankenstein, que foram baseados (ainda que livremente) em autores europeus (Bram Stocker e Mary Shelley) Edgar G. Ulmer ao filmar essa fusão de elementos de histórias do americano Edgar Alan Poe (O Poço e o Pêndulo, A Queda da Casa de Usher e O Gato Preto) decidiu, além de incorporar as suas próprias ideias, mudando o script original (do qual Laemmle Jr. não era muito entusiasmado...) que originalmente pretendia ser algo similar a O Gabinete do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene e, fazer um filme com um estilo visual diferente tendo por inspiração o movimento Bauhaus alemão, bem diverso do gótico e do expressionismo, resultando ao final numa aparente ruptura com o estilo Horror da Universal, mas muito mais estrutural e ideologicamente, produto genuíno do estúdio do que se pode pensar à primeira vista. 

 

Nos Montes Cárpatos: O castelo de Drácula (Esq.) e a mansão de Poelzig (Dir.). Disposição similar na geogarfia da região

O movimento Bauhaus (escola aberta por Walter Gropius em 1919 em Weimar, tendo profunda influência na arquitetura e nos movimentos artísticos até o seu fechamento pelos nazistas em 1933) foi como diriam alguns, “mais do que uma escola, um movimento espiritual, com um enfoque radical da arte em todas as suas formas, um centro filosófico similar ao das escolas gregas”, tendo os seus arquitetos uma doutrina rigorosa que os distinguia dos gostos e ideologias burguesas, refletindo-se numa arquitetura despojada de ornamentos, pilastras, portadas, cornijas, etc... e materiais luxuriosos como granito, mármore, tijolos vermelhos e etc... apostando num estilo limpo, usando materiais como estuque e vidro em seus interiores. Ou seja, o oposto daquilo que associamos ao gótico e ao expressionismo, as bases estéticas do Horror da Universal.


 

Um ambiente moderno e clean, mas tão sinistro quanto um castelo empoeirado e coberto de teias


Charles D. Hall, sob a orientação de Ulmer, optou por evitar torres elevadas, arcos e tudo que remetesse aos estilos tradicionais, criando uma espaço refinado e sem elementos supérfluos (embora em tese fosse uma “casa mal-assombrada”) cuja seriedade e rigor retrata uma história onde nada é o que aparenta ser, e onde a verdade sobre o propósito da casa se encontra escondida em seu subsolo.

 

Hjamar Poezig (Boris Karloff) e sua companheira Karen (Lucille Lund). A cama dossel é o único ítem mais mundano


Na trama Peter e Joan Allison (David Manners e Julie Bishop), um casal em viagem de trem pelos montes cárpatos conhecem o cientista Dr. Vitrius Werdegas (Bela Lugosi) que está retornando, após 15 anos, para “visitar um amigo”, e após saírem da estação, acabam sofrendo um acidente com seu ônibus, matando o motorista e ferindo Joan.

 

Poelzig, no alto e seu culto satânico, junto a seu "velho amigo" Vitrius Werdegas (Bela Lugosi). Aqui se cristaliza a aproximação de "moderno" e maligno


Os três vão parar na mansão de Hjamar Poelzig (Boris Karloff), uma mansão clean e sofisticada projetada por ele mesmo (seu nome é uma homenagem a Hans Poelzig, designer de O Golem de 1920 que destaca-se na paisagem numa disposição similar à do castelo de Drácula, refletindo um senso de dominação do ambiente à volta. Eles chegam à mansão de aspecto luminoso, cujo mais marcante elemento é uma parede e blocos de vidro localizada atrás de uma escada em curva de estrutura metálica esguia e polida faceando a porta principal. Enquanto o design similar ao de uma prisão da parede sugere o senso de ordem e disciplina (e Poezig) sua transparência obstruída indica haver algo escondido sob sua superfície. 

 

Mulheres embalsamadas no porão. "Belas adormecidas"?


Tudo na residência,sejam seus motivos arquitetônicos geométricos, mobiliário, luminárias, etc... reforçam a ideia de ordem associada ao estilo Bauhaus refletindo o controle do austríaco sobre o seu ambiente, como os quatro quartos analogamente projetados e com a mesma disposição de mobiliário (cama do lado direito da sala, acompanhando as paredes adjacentes de menor ângulo, com a porta no meio da parede encarando a câmera). Sómente o quarto de Poezig difere um pouco com por sua cama com dossel sobre a qual repousa Karen Werdegas (Lucille Lund) a sua companheira – a única peça de mobília burguesa conflitante com o dominante estilo Bauhaus

 

Werdegas X Poelzig. Ambos amavam a mesma mulher... O primeiro se casou com ela, o segundo a preservou no vidro...


A ideia de haver algo escondido abaixo das fundações da casa é logo introduzida no filme quando é mencionado que a mansão de Poelzig foi construída sobre um antigo campo de prisioneiros no qual milhares de homens foram assassinados. A medida que a narrativa progride, mais segredos são revelados das entranhas da casa. Quanto mais se é apreendido a respeito da casa, mais o observador é levado a descobrir que o refinado estilo Bauhaus é apenas uma fachada que mascara um segredo em suas fundações, e que uma vez revelado, vão surgindo manifestações de diferentes estilos arquitetônicos. 

 

Todo o visual "moderno" é apenas fachada para algo mais primitivo


O núcleo da mansão de Poelzig não se encontra na sala com luminosas paredes listradas do andar principal, mas no seu subterrâneo abismal. Inicialmente Poezig e Werdegas visitam o laboratório subterrâneo, aparentemente construído com o mesmo estilo moderno dos dois andares principais da casa. As paredes brancas são feitas de grandes pedras retangulares superpostas horizontalmente num modo similar dos motivos horizontais vistos nas superfícies dos muros dos andares de cima. É nesta cena que os segredos vão sendo revelados, quando Werdegas encontra o corpo embalsamado de sua esposa encapsulado num “aquário” de vidro, tal qual uma “Branca de Neve” no caixão de cristal (e ela não é a única...). Os motivos geométricos claramente lembram os padrões encontrados na parede faceando a entrada principal da casa. Ao final desta cena Werdegas impulsivamente pula para trás ao ver o gato preto de Poelzig (ele em uma fobia mortal à felinos), causando a quebra da parede de vidro em pedaços. A aparência moderna e científica se revela uma frágil e supérflua fachada, sendo esta parede o único elemento que claramente remete ao estilo Bauhaus dos andares acima.

 

Os tijolos de vidro sugeriam apesar de sua luminosidade, "algo por trás"


Muitos dos elementos visuais desta cena trazem reminiscências dos cenários de filmes de horror da Universal anteriores. As pedras utilizadas nas paredes são formatadas de maneira similar às das encontradas nas paredes das catacumbas do Conde Drácula e nas do laboratório do Dr. Frankenstein, embora mais geométricas, correspondendo ao senso de ordem de Poelzig. A grande escada em espiral que leva ao porão sugere uma construção abissal, sendo também uma reminiscência do profundo laboratório do cientista. Algumas características do design de cenários dos filmes de horror do estúdio lentamente vão se tornando aparentes embora já estivessem subentendidas na primeira cena do subsolo. Na primeira parte da filme, a forte aparência clean, sem adornos e a geometrização dos espaços complementava a visão de um estilo moderno. Quando os personagens vão adentrando progressivamente neste ambiente obscuro, estilo do horror começa a emergir à superfície, na mesma medida em que vamos tendo reveladas as atividades secretas de Poelzig, que se revela um alto sacerdote de um culto satânico, vagamente inspirado em Aleisteir Crowley

 

A cruz caída, no altar. Satanismo & minimalismo


A passagem que leva até à sala secreta consiste de paredes angulares terminando em portas maciças como de calabouços, sendo a sala onde se realiza a Missa Negra gradualmente revelada à medida que os personagens atravessam os corredores para chegarem ao núcleo da mansão. A sala se revela com um formato circular, com colunas angulosas próximas ao centro. O formato geométrico das colunas e as paredes sem adornos refletem a influência Bauhaus e a organização do primeiro e segundos andares da mansão, e pode-se dizer que nesta sala o estilo modernista e o mal colidem numa ambientação que evoca as catacumbas de Metrópolis (1927) de Fritz Lang e embora seja claramente construída com influências modernistas, mimetiza de forma similar o design de outros filmes de horror do estúdio. O local onde o ritual toma lugar é acentuadamente elevado do solo e contém uma cruz caída de lado em seu centro, posicionada de forma similar ao laboratório do Dr. Mirakle, de Os Crimes da Rua Morgue (1932). As ações dos personagens evocam muitas similaridades entre os dois filmes na comparação desta cena: A vítima, uma jovem indefesa é amarrada numa “cruz” no centro do cenário para um experimento (aqui, um ritual profano). 

 

"O Fantasma de Frankenstein" (1942), "O Gato Preto" (1934). Todos os laboratórios remontam ao original do Dr. Frankenstein de 1931


Após a interrupção da Missa Negra, Werdegas finalmente descobre a sala secreta no laboratório de Poelzig, com a mesa de experiências onde repousa o corpo de sua filha Karen, claramente se percebe aqui a similaridade com o laboratório do Dr. Frankenstein e como os de outros cientistas loucos da Universal, apesar de construído com um estilo modernista para distingui-lo. Em adição temos no final a cena da tortura de Poelzig, cuja sombra projetada na parede lembra a sombra da primeira vítima do Dr. Mirakle

 

"Os Crimes da Rua Morgue" (1935), e o fim de Hjalmar. Similaridades na posição em cruz e no uso das sombras


Ao final, em que pese o fato de Ulmer ter se beneficiado da ausência de Laemmle Jr. (que neste período esteve ocupado com questões legais do estúdio) e conseguido a aprovação do script, mediante o comprometimento de fazer o filme com um orçamento de filme“B” (mais precisamente U$ 90.000,00 dólares) embora se pareça à primeira vista um projeto mais autoral, O Gato Preto é um genuíno produto da é um genuíno produto da Universal, em que pesem o fato de Ulmer fazer o filme diferente da visão de Laemmle Jr. (algo como Caligari) ainda sim, a opção sugestiva da ação se passar nos Montes Cárpatos, e o uso de dois estilos, tal qual em Drácula para marcar a ideia da coexistência de dois mundos (a inocente normalidade e a dos sádicos rituais satânicos) mostra uma perfeita convivência desta obra no mesmo universo ficcional. 

 

Conclusão: Um universo próprio e coeso 

 

"O Corcunda de Notre-Dame" (1923), Drácula" (1931) e "O Fantasma da Ópera" (1925). Identidade gótica na ambientação


O desenho de produção dos filmes de horror da Universal em seu primeiro ciclo certamente contém características estilísticas que os distinguiam dos filmes de horror produzidos por outros estúdios de Hollywood durante a Era de Ouro. Este estilo peculiar, mais influenciado pelo modo europeu de fazer filmes (notadamente expressionistas alemães) ficou claro num senso de continuidade com os seus filmes da fase silenciosa. Drácula como O Fantasma da Ópera tem como ambientação ruínas empoeiradas e subterrâneos sombrios com pequenas escadas e escuros corredores. 

 

Os cortinados (e outros elementos..) de "Drácula" ecoaram por todo o ciclo


A vasta entrada do castelo do conde compartilha muito em comum com a catedral gótica de O Corcunda de Notre-Dame, com suas altas coberturas e grandes janelas verticais. Em todos esses filmes, particularmente aqueles em que Charles D. Hall participou, são reunidos por numerosas similaridades. Os padrões das cortinas no living room de Drácula são grandemente reminiscências das cortinas  de O Homem Que Ri, cujo cemitério em que é visto um homem enforcado balançando é muito similar ao que aparece em Frankenstein. Estes elos forjados entre os filmes da fase muda do cinema de horror e os primeiros da fase sonora são inumeráveis, o que nos leva a perguntar porque então Drácula é considerado como o ponto de partida de um novo estilo de horror? 


"A Noiva de Frankenstein" (1935) seguiu na mescla de estilos, acentuando a sua herança expressionista


A resposta seria por ter lançado o modelo que seria seguido pelo estúdio nos filmes seguintes. Drácula, em que pese o seu estilo predominantemente gótico, oscilava entre imensos interiores sombrios e pequenos apartamentos do dia-a-dia, se comparados às ruínas do castelo na Transilvânia e da Abadia de Carfax. Seu desenho de produção se tornou padrão por três fatores: a forma como os cenários equilibram vários estilos numa combinação de elementos de forma coesa e consistente; o posicionamento de personagens é significado através do uso de portas e escadas; e a forma como os ambientes exibem características associadas aos seus habitantes. 

 

"A Noiva de Frankenstein". Os calabouços de um jeito ou de outro eram semelhantes


Diferentement, Frankenstein tinha raízes no expressionismo alemão, embora incorporasse elementos do gótico e modernos (para a época) com seus equipamentos científicos. Com as diversas mudanças de roteiristas e diretores, e de diretores de arte que fizeram inúmeros esboços para o filme, os cenários acabaram oscilando numa variedade e estilos. Entretanto, como em Drácula, tal mix de elementos criaram uma unidade estilística para o filme, estabelecendo um senso de coesão. Embora sem arcos ou longas janelas de vidro, a verticalidade do espaço e as detalhadas ornamentações da mansão de Elizabeth ecoam o gótico, além do uso do material de construção do cenário - paredes imitando pedras retangulares, telões pintados de fundo, janelas aramadas, superfícies rochosas feitas de tela aramada, tecido e gesso – proveram os filmes com a textura visual que se tornou-se típica da Universal Studios

 

"Os Crimes da Rua Morgue" (1932). As locações "européias" eram suficientemente genéricas para todo uso


Para O Gato Preto os executivos da Universal compartilharam o desejo de criar algo mais moderno. Entretanto, somente uma parte dos cenários terminaram sendo claramente de um único estilo. Grande parte dos cenários contém os mesmos elementos achados nos de outros filmes (pedras angulosas, seções moldadas integradas às paredes, portas de masmorras maciças, cruzes, tablados, locais de culto, etc...). Como em películas anteriores, ela foi contextualizada por um diretor europeu que queria fazer o filme parecer europeu, mas ao final, ainda continuava sendo um filme de estúdio. A despeito dessas características exóticas os filmes do ciclo não negavam as suas origens. 

 

"A Múmia" (1932) O designer Willy Pogany mesclou o Art Deco a motivos egípcios


Os filmes analisados tem um estilo de set design que agregou algo único para o ciclo. Um número de películas de horror foram feitas entre Frankenstein e O Gato Preto, e cada um deles ofereceu uma oportunidade para explorar um estilo diferente: A Múmia (1932) introduziu o Art Deco e os motivos egípcios, enquanto as comédias de horror de James Whale revelaram a atmosfera carregada de uma velha casa mal-assombrada em A Casa Sinistra (1932) e uma pequeno e aprisionante hotel de dois andares isolado num deserto de neve em O Homem Invisível (1933). Cada película do ciclo apresentava o seu próprio estilo único, mas no final revelando algumas das características achadas em Drácula e em Frankenstein

 

No centro, "Abott & Costello encontram Frankenstein" (1948). Escadas e planos elevados enfatizam o anseio de ascensão do monstro e, a posição de poder do conde


O fato de a mesma equipe de artistas e técnicos terem trabalhado em cada um desses filmes podem responder por essa recorrência. Mas o impacto das restrições orçamentárias não deve ser descartado, pois como se diz, “a criatividade surge com as limitações” e nada estimula mais do que “fazer o pouco parecer muito” e isso eles e, anos mais tarde a sua sucessora, a Hammer Films nos anos 1950/ 60/70 soube fazer muito bem, pois todas as suas produções compartilhavam em comum o fato de serem (na sua grande maioria) produções de orçamento “B”, coisa que o seu concorrente americano Roger Corman, “O Rei dos Filmes B” levaria às últimas consequências.

 

"A Casa de Drácula" (1945). Mesmo sem Hall, o estilo continuava coerente em sua concepção de espaço e uso de elementos estruturais


O trabalho dos diretores de fotografia também deve ser levado em conta, pois mesmo após a partida de Carl Freund, suas lições se mantiveram através de seus seguidores no ciclo. Profissionais como George Robinson, Milton R. Krasner, Elwood Bredel, Joseph l. Valentine, Paul Ivano, Charles J. Stumar, Arthur Edeson entre outros, desdobraram-se em valorizar através de enquadramentos e um uso do alto contraste as texturas e angulações dos sets procurando mascarar ao máximo os elementos reciclados e tornar o “fake” num estilo. 

 

"A Casa de Drácula". a fotografia contrastada e os enquadramentos inovavam cenários "N" reciclados, sendo um desafio à criativdade dos realizadores


As estratégias de poupar gastos resultaram em interessantes elementos visuais, como os telões com nuvens pintadas que davam um efeito impressionista nas cenas exteriores feitas em estúdio, que garantiam o seu senso de continuidade quando posteriormente se adotou o conceito do “universo compartilhado” desses filmes, hoje coisa comum com as franquias dos filmes da Marvel e e DC mas uma coisa inédita na época, coisa que nem a Hammer Films cogitou de fazer, mantendo os seus monstros em séries separadas. 

 

"O Filho de Frankenstein" (1939). Levando a tradição expressionista às últimas consequências, com interiores do castelo distoantes dos exteriores


Ao final da década de 1930 Charles D.Hall deixou a Universal, indo para a United Artists, cabendo a outros designers como Jack Otterson, John B. Goodman, Martim Obzina e Albert S. D´agostino, entre outros seguirem seus passos, dando a sua contribuição individual.

 

"O Filho de Frankenstein". Mas a disparidade exterior/interior causava uma "estranhesa", servindo como alegoria do monstro, feito de corpos diversos...


Os cenários eram iluminados e filmados com novos enquadramentos, de maneira diferente para mascarar o reuso extensivo dos elementos, que se no início criou um efeito interessante para o público em geral, com o tempo passou a ter um “quê” de redundância, mas para os fãs dos filmes, também de familiaridade, tornando-se reconhecíveis, sendo em determinadas cenas, quase replicações de cenas dos filmes anteriores do estúdio. Muitos dos filmes “B” e seriados feitos pelo estúdio sofreram similar reciclagens, às vezes inclusive reaproveitando sequências inteiras, prática que se tornou comum na TV, tendo como grande usuário dessa prática o lendário produtor Irwin Allen.

 

"O Lobisomem" (1941) e "O Fantasma de Frankenstein" (1942). As florestas enevoadas e os cemitérios familiarizaram o conceito do "universo compartilhado"


As sequências de Drácula, Frankenstein, A Múmia e O Homem Invisível, ofereceram muitas oportunidades para o reuso. Se a escada em espiral do Dr. Frankenstein inicialmente parecia estranha e original, ao final do ciclo se tornou algo extremamente familiar. Os cenários não eram mais espaços perturbadores de horror, mas hospitaleiros e reconhecíveis abrigos para os monstros. Este ciclo tornou-se icônico porque tornou-se familiar para a sua audiência, fruto de diversas e conflitantes influências que deram uma unidade que dá crédito por seu estilo ao estúdio como um todo, e não apenas a um produtor ou diretor. 

 

- Gostaria de comprar um jazigo aqui, no "Jardim da Saudade Eterna"?


0 comentários:

Postar um comentário