O Rei das Multidões
por Carlos Vinicius Marins & Alexandre César
Da Marvel à DC, juntas e misturadas simultaneamente
"Não espere a oportunidade, crie a oportunidade"
(George Perez ✰ New York, 09/ 06/1954 – ✝ Los Angeles, 06/ 05/ 2022)
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Quando jovem na F.O.O.M. (fanzine da Marvel), como uma estrela em potencial
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Um artista de traço limpo e detalhado - EXTREMAMENTE DETALHADO - e que, ainda sim, dificilmente atrasava nos prazos de entrega dos trabalhos. O sonho de consumo de qualquer editora no mercado ultra competitivo dos comics americanos. Uma luz que brilhou intensamente por quase 50 anos, tal qual um farol que iluminava a tudo que desenhava ou arte-finalizava.
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Não importava o tamanho da página ou do quadrinho, o nível do detalhamento se mantinha
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Nesta
sexta-feira (06/05) faleceu um dos mais admirados artistas do mercado
de quadrinhos - George Pérez, com 67 anos - em decorrência de um câncer
pancreático no estágio 3. Perez anunciou sua condição nas suas redes
sociais em dezembro do ano passado, quando disse também que não
pretendia se submeter a tratamento indicado, que seria muito agressivo e
não tinha grandes possibilidades de êxito. Preferiu ficar o tempo que
lhe restava - de seis meses a um ano - ao lado de sua família e em
contato com seus fãs, participando da maior quantidade de eventos de
quadrinhos e cultura pop que pudesse para se despedir dos que o
admiravam.
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O jovem Pérez fez história ao trabalhar simultaneamente para as duas grandes editoras concorrentes do mercado norte-americano
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Nascido
em Nova York, numa família porto-riquenha, George já havia definido que a profissão que iria seguir
seria a de desenhista muito cedo, aos cinco anos de idade. Seu primeiro
trabalho de peso nos quadrinhos foi pela Marvel, quando se tornou
responsável pela arte da revista dos Vingadores, em 1975.
Está fase será relançada aqui no Brasil em breve pela Panini Comics.
Não demorou para pegar outro grande título no mesmo período: o Quarteto Fantástico, cuidando das duas revistas ao mesmo tempo.
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Os Novos Titâs: Destaque da grande parceria com Marv Wolfman
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Com
uma fama já estabelecida de trabalhar bem com super grupos, em 1980
George começou a trabalhar também o para a DC Comics, cuidando da arte
da revista dos Novos Titãs, um antigo grupo de jovens heróis da editora.
A ideia era fazer do título um rival a altura do novo grande sucesso da
Marvel: os X-Men, outro grupo de heróis que estava no limbo e foi de
revitalizado. Para Perez era a oportunidade de ir para editora e talvez
pegar seu título dos sonhos da editora: a Liga da Justiça. Ele conseguiu
realizar seu desejo: com o falecimento de Dick Dillin, que estava a
frente das ilustrações da revista a anos, George passou a acumular a
arte das duas grandes equipes da casa - que chegaram a se encontrar numa
história ilustrada por ele na revista dos Titãs. Durante um tempo, para seu deleite, ele chegou a desenhar ao mesmo tempo HQs da Liga e dos Vingadores. O sucesso da jovem
equipe, porém, foi tão arrebatador que ele acabou deixando de lado a
Liga, dedicando-se quase exclusivamente a eles.
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A morte da Supergirl, num dos momentos-chaves de "Crise nas Infinitas Terras"
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Como
George cuidou muito bem da arte dos Vingadores e da Liga da Justiça, se
tornou o artista perfeito para a desenhar um crossover entre as duas.
Marvel e DC já haviam publicado desde a década anterior alguns encontros
entre seus heróis e essas histórias se tornavam grandes eventos. George
chegou a desenhar mais de 20 páginas da HQ quando o acordo para o
projeto foi desfeito devido a desavenças editoriais. O sonho foi adiado,
mas Pérez acreditava que ele um dia iria acontecer.
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A reformulação da Mulher-Maravilha: Maior fidelidade à mitologia grega, um empoderamento real e um perfil mais atlético condizente com uma guerreira amazona
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Em
1984 George deixou de desenhar os Titãs para cuidar de uma empreitada
de fôlego, sem precedentes no seu alcance. Com o mesmo roteirista dos
Titãs, Marv Wolfman, ele desenvolveu Crise nas Infinitas Terras, uma
longa HQ que reunia praticamente todo o elenco de personagens da DC
Comics e que reestruturou drasticamente todo o seu universo ficcional,
procurando atualizá-lo para os novos tempos. A série se tornou a maior
referência para para mega sagas que se tornariam lugares-comuns desde
então nas editoras norte-americanas.
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No Brasil, na FIQ de 2013, parodiando com uma cosplayer sua icônica capa de "Crise nas Infinitas Terras"
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Ao
término da saga, as histórias de quase todos personagens da editora
passaram a ser recontadas do zero. Grandes artistas ficaram responsáveis
por cuidar dessa renovação, cada um cuidando de um herói. Com o
sucesso da minissérie O Cavaleiro das Trevas, Frank Miller cuidou do
Batman. John Byrne veio da Marvel, onde fez sucesso com seu trabalho em
X-Men e Quarteto Fantástico, para trabalhar com o Superman. Coube a
George Pérez revitalizar a mais conhecida das super-heroínas: a
Mulher-Maravilha.
Apesar de ser a mais conhecida super-heroína dos quadrinhos
- muito devido ao popular seriado de TV dos anos 70, protagonizado por Lynda
Carter -, a Mulher-Maravilha nunca tinha passado por uma fase verdadeiramente
memorável nas HQs, sendo mais lembrada até então pelo que ela representava do
que por suas histórias - Diana sempre foi um ícone do feminismo desde sua
criação, ainda nos anos 40.
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Mulher-Maravilha. Após a fase inicial da personagem, em 1941, a sua fase mais marcante é a de George Pérez
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Pérez pegou uma proposta do escritor Greg Potter e
reinventou a personagem-tipo , com o auxílio dos roteiristas Len Wein e Mindy Newell,
deixando a Mulher-Maravilha com mais profundidade e personalidade, trabalhando
sua dualidade de Guerreira e Embaixadora da Paz, lhe dando um background
mais coeso e interessante, cimentando de forma mais eficaz sua relação com a
mitologia grega, criando personagens secundários com os quais nos importarmos e
finalmente lhe dando um elenco de vilões de primeira grandeza: Ares, o Deus da
Guerra; Circe, a lendária Feiticeira Grega (que se tornou sua maior inimiga); e
as revisadas e melhoradas Cisne de Prata e Mulher Leopardo.
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Ares: o Deus grego se torna um dos maiores vilões da Princesa Amazona e torna-se o antagonista de seu primeiro filme |
Seu trabalho de cinco anos com a Mulher-Maravilha reverbera até hoje, tanto nos quadrinhos quanto em outras mídias. É de longe o artista mais associado a personagem.
Nos anos 90,
George deixou a DC, voltando a trabalhar para a Marvel na reinvenção do lado
cósmico do universo da editora, desenhando a minissérie principal da mega saga Desafio
Infinito, escrita por Jim Starlin.
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Capa da primeira edição de “Desafio Infinito”: Quando as Joias do Infinito demonstram seu poder pela primeira vez nos quadrinhos |
Esta saga, onde Thanos recolhe pela
primeira vez as Joias do Infinito, serviu de base para a principal trama desenvolvida nos filmes do Universo
Cinematográfico Marvel.
Pérez também é responsável pela arte de outra
minissérie chave da época. Lançada em 1992, Futuro Imperfeito é uma história
do Hulk escrita por Peter David, onde Hulk era comendado pela
mente do Dr. Banner, tal como é visto no filme Vingadores: Ultimato.
Hulk viaja a um futuro devastado por um evento nuclear, onde encontra Maestro, sua
versão com bem mais idade, poderoso e maligno, que passou a governar o restante da raça
humana onde antes existiu os EUA. Inicialmente criado apenas para aquela
história, Maestro se tornou um vilão popular e rapidamente se tornou um dos grandes vilões
da editora, voltando a aparecer em diversas outras ocasiões e sendo destaque em
outras mídias, como vídeo games e desenhos animados.
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Maestro: o vilão ocasional de “Futuro Imperfeito” veio a para ficar |
Após vários projetos para
editoras menores, George volta a Marvel para cuidar novamente da arte dos
Vingadores, em fase elogiada pela crítica e pelo público. Os roteiros de Kurt
Busiek destacavam a já conhecida capacidade de Pérez utilizar diversos
personagens em uma única cena, criando cenas memoráveis e possibilitando que a
equipe tenha mais membros do que o normal sem que a subtramas se percam. E
então finalmente aconteceu. Marvel e DC Comics haviam retornado aos crossovers
entre as editoras nos anos 90 e, em 2002, finalmente decidiram que chegara a
hora de fazerem o adiado confronto entre as duas lendárias equipes das duas
casas: Liga da Justiça e Vingadores. E, claro, o artista indicado para o
trabalho ainda era George Pérez.
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George Pérez de volta aos Vingadores: fase elogiada por crítica e público |
Durante todo esse tempo ele sempre deixara uma
porta aberta para isso acontecer. Naquela época, Pérez tinha um contrato de
exclusividade com uma editora menor, a CroosGen Comics. Mas em seu contrato
havia uma cláusula que abria uma única exceção nesta exclusividade: desenhar o
crossover da Liga da Justiça com os Vingadores. E, para melhorar, o escritor
seria seu parceiro Kurt Busiek. A minissérie foi um sucesso, com um roteiro que
presta uma sincera homenagem às duas equipes, dando espaço para todo mundo que
havia sido membro dos dois grupos - tanto entre os vivos quanto aos mortos. Até
a diferença de estilo das duas editoras e de seus universos ficcionais são
destaques no roteiro. E o que não faltou foram easter eggs para os fãs de longa
data, mostrando que Busiek era mesmo um profundo estudioso das HQs das duas
editoras. Liga da Justiça Versus Vingadores ainda é o melhor crossover entre as
duas editoras.
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A primeira versão inacabada do confronto entre Vingadores e Liga da Justiça |
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No seu estúdio de sua casa
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Uma
coisa interessante em George Pérez era a maneira como desenhava a
figura humana referenciando o seu período histórico. A forma como
delineava a anatomia: Esguia e musculosa, com boa definição, dava aos
seus heróis, um físico de praticantes de aeróbica/fitness. Jack Kirby parecia ter como referencial boxeadores, levantadores de peso, quaterbacks de
futebol americano e estivadores. Já John Buscema parecia ter
halterofilistas e lutadores de luta livre como modelos (Buscema, em sua
juventude, chegou a praticar pugilismo). De forma diferente, Neal Adams e José Garcia Lopez pareciam desenhar seus heróis como atletas olímpicos ou malabaristas... Já George Pérez desenhava corpos que pareciam saídos das academias de aeróbica de baixo impacto, ou fitness (talvez se iniciasse hoje em dia a sua carreira, seus heróis teriam um perfil mais aparentado com o crossfit).
Com ele Diana Prince deixou de ser apenas uma bonitona curvilínea, para
ser uma guerreira atlética, que poderia estrelar aquelas fitas de workout bem populares nos anos 80, como Jane Fonda entre outras estrelas...
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Sua concepção da Mulher-Maravilha, aqui retrabalhada como uma Pin-Up
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“Eu optei por deixar a natureza seguir seu rumo e eu vou
aproveitar o tempo que me resta o máximo o possível com minha bela
esposa de 40 anos, minha família, meus amigos e meus fãs”.
(sobre quando descobriu ter câncer, cujo tratamento só adiaria o inevitável)
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Mulher-Maravilha: A sua passagem serviu de base para o filme de 2017
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Ao ser diagnosticado como portador de câncer
pancreático no estágio 3 (e inoperável), George Pérez tencionava maximizar seu tempo restante com o máximo de lucidez possível, pois caso fizesse o tratamento com quimioterapia e a radioterapia apenas iria adiar o seu final, além de debilitar suas faculdades. Para facilitar sua interação com os seus fãs ele criou
uma página no facebook, @TheGeorgePerez, para melhor receber noticias,
conversar com os fãs e receber atualizações; além disso, pedir que a
privacidade de sua família e da sua esposa fossem respeitadas nesse
momento, permitindo que os fãs usassem a página para se conectar à ele, ao invés de
outros meios.
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Uma longa e proveitosa trajetória no mundo dos super-heróis
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“Espero poder coordenar uma ultima assinatura em massa para ajudar a fazer com que meu falecimento seja mais fácil. Eu também espero poder fazer uma última aparição pública na qual eu possa tirar fotos com o máximo de fãs o possível, com a condição de que eu possa abraçar cada um de vocês. Eu apenas quero dizer adeus com sorrisos, assim como com lágrimas”.
(Uma de suas últimas declarações, procurando ainda um contato mais direto com os fãs )
Em 2019 George anunciou a sua aposentadoria devido a diversos problemas de saúde - diabetes e doenças do coração e de visão, entre outros. Havia encerrado uma prolífica carreira que marcou mais de uma geração e deixou um legado que ainda vai reverberar por muito tempo. Com o anúncio do câncer e a eminente morte do artista, Marvel e DC Comics, que novamente tinham interrompido a parceria, anunciaram a republicação do crossover dos Vingadores com a Liga da Justiça - que estava fora de estoque há anos. George adorou a homenagem. Nestes últimos meses o artista foi elogiado e homenageado por diversão artistas e fãs por todas as alegrias e inspiração que ele lhes deu em suas vidas e carreiras.
Agora, apagadas as luzes, só podemos agradecer por termos tido a oportunidade de acompanhar a trajetória deste artista único, que nos impactou com seu talento e cuja lembrança será constante em todos nós sempre que nos referirmos ao panteão da Marvel e da DC Comics e de quem foi crucial no momento em que as suas principais superequipes se uniram.
Obrigado por tudo, George Pérez. Sua passagem foi significante em nossas vidas.
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Uma homenagem da DC Comics ao grande artista que tantos personagens ilustrou
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