segunda-feira, 25 de abril de 2022

Um trem para o passado - Crítica - Séries: Boneca Russa - 2ª Temporada

 

Olhar para trás para seguir em frente...

por Alexandre César

Série contextualiza que o passado é a chave para o futuro

 

Nestes últimos três anos Nadia Vulvokov (Natasha Lyone) e Alan Zaveri (Charlie Barnett)mantiveram contato e a amizade mas nada bizarro aconteceu



Desde os eventos da noite de seu aniversário de 36 anos, em que ficou morrendo e voltando, sempre na noite de seu aniversário, a cínica e sarcásticas engenheira de software Nadia Vulvokov (Natasha Lyone de Big Mouth) foi levando a vida, sempre mantendo contato com seu colega de loop temporal Alan Zaveri (Charlie Barnett de Ordinary People), caso algo voltasse a acontecer. Agora, às vésperas de completar 40 anos (algo crucial na vida da maioria de muitas mulheres), sempre que toma certa linha (dos 6 trens da 77th Street do metrô de Nova York), ela se vê viajando no tempo para algum momento importante de sua linhagem familiar, e tomando o lugar da protagonista daquele momento, tal qual Sam Beckett no seriado Contra Tempos *1.

 

Nadia, ao tomar uma linha do metrô, literalmente se vê como a sua falecida e tabagista mãe Lenora (Chloë Sevigny) grávida dela mesma


Em sua segunda temporada, Boneca Russa (Russian Doll) a série da Netflix criada por Lesley Headland, Amy Poehler e Natasha Lyonne continua investindo em seu humor ácido e, embora narrativamente derrape em alguns momentos continua com uma história interessante, graças ao seu roteiro, com reviravoltas insólitas, num ritmo ágil embora dessa vez desigual, trocando dessa vez o mote do loop temporal (dispositivo de enredo usado regularmente para demonstrar uma sensação de claustrofobia) pela viagem no tempo, aprofundando a alegoria das matrioskas*2 russas, ampliando agora geograficamente o universo da trama, mas felizmente ainda se apoiando em seu ótimo elenco.

 

Nadia, no corpo de Lenora, tem um rolo com Chez (Sharlto Coplay) o namorado picareta e ladrão de sua mãe

 
Agora, vivenciando alternadamente momentos em que desembarca do trem em Astor Place voltando a 1982, a cínica Nadia, literalmente se vê como a sua falecida e despirocada mãe Lenora (Chloë Sevigny de We Are Who We Are) que morreu aos 36 anos de idade (uma mãe que ela praticamente não conheceu e aqui, grávida dela mesma!); e mais adiante ainda, em 1944 como a sua avó Vera Peschauer (Ilona McCrea de
Dear Kate) em Budapeste, na Hungria ocupada pelos nazistas.
 

Paralelo à trama de Nadia, Alan, está relaxado e feliz, vivendo o amor


Ao perceber que tem a oportunidade de reescrever seu passado, Nadia tenta garantir que a família não perca sua herança (que ela acha que resolveria seus anseios de ter uma família melhor resolvida). Mas, suas ações geram consequências bizarras (mas não tão inesperadas)... 

 

Alan, vive em Berlim Oriental em 1962 , no corpo de sua avó Agnes (Carolyn Michelle Smith) uma estudante de intercâmbio, natual de Gana


Alan, por sua vez, vivencia algo semelhante ao se transportar para Berlim Oriental em 1962 , se vendo no corpo de sua avó Agnes (Carolyn Michelle Smith de Cherish the Day), natural de Gana, e que nunca conheceu, que participava de um intercâmbio universitário, tendo um romance com Lenny (Sandor Funtmek de Azul é a Cor Mais Quente) e descobrindo mais adiante (para seu horror) que os dois planejam com outros estudantes, fugir para o Ocidente através de um túnel que estão cavando a seis meses por baixo do Muro de Berlim*3. coisa que se forem pegos poderá lhes trazer consequências fatais...

 

Mais adiante Nadia se vê em 1944, como a sua avó Vera Peschauer (Ilona McCrea) em Budapeste, na Hungria ocupada pelos nazistas.



Em suas passagens por 1982, Nadia encontra uma versão jovem de Ruth Brenner (Annie Murphy de Murderville) amiga fidelíssima de sua mãe e a sua “mãe” espiritual e que no presente (vivida por Elizabeth Ashey de Oito Mulheres e um Segredo) passa por complicações de saúde. Nadia de quebra, se relaciona com Chez (Sharlto Coplay de Distrito 9) o namorado picareta de sua mãe, com quem haviam roubado os 150 Krugerrands*4 da família, para a decepção de sua avó Vera Peschauer (Irén Bordán de Operação Berlim)

 

Nadia vai pesquisar suas origens em Budapeste (atual Hungria) com sua amiga Maxine (Gretta Lee) encontrando túmulos de antepassados



Como ela se vê responsável, ou cúmplice de sua mãe tabagista (que mesmo grávida, fuma como uma chaminé, coisa que todos na série fazem...) pelo sucedido, se lança à uma caça ao tesouro do paradeiro de sua herança, indo para Budapeste, na Hungria atual (2022) com sua amiga Maxine (Gretta Lee de The Morning Show), à tiracolo, para descobrir o que aconteceu com os objetos de valor que a família tinha antes da Segunda Guerra Mundial; e ao voltar no tempo, em 1944 (no corpo de sua avó), tenta rastrear a herança roubada pelos nazistas, sendo auxiliada pela fiel amiga Delia (Franciska Farkas de Apatigris). Apesar do perigo latente, não há “momentos de ação” de fato, sendo os momentos históricos mais alegorias dos desvios e percalços da vida do que outra coisa. 

 

Um Budapeste, Maxine tenta fazer um filho com Kristofz (Balázs Czukor) por ver 'bons genes'



A edição de Todd Downing (Generation) e Debra F. Simone (Mrs. Fletcher) mantém um ritmo ágil na narrativa, embora ao final quando fica mais frenético, em alguns momentos nos fazer ter de voltar o episódio por ficar mais corrido do que o ideal. 

 

Em 1982, Nadia recorre ao voluntário Derek (Ephraim Sykes) dos 'Guardians Angles' para ter informações sobre o paradeiro de sua herança



Entre os desdobramentos das interrelações de Nadia e Alan (que passaram os últimos três anos esperando que algo acontecesse) voltam rostos conhecidos como Lizzy (Rebecca Henderson de Inventando Anna) parceira de Maxine, (aqui com pouca presença) e outros novos como Kristofz, o artista húngaro (Balázs Czukor de Baptiste) com quem Maxine tenta fazer um filho, e em 1982, Derek (Ephraim Sykes de Hamilton) membro dos Guardians Angles, um grupo de vigília do crime de Nova York, que ajuda Lenora num momento-chave 


Em 1962, Alan/Agnes descobre que seu 'crush' Lenny (Sandor Funtmek) e amigos pretendem fugir da Alemanha Oriental por um túnel

 


A fotografia de Urzula Pontikos (Marcella) valoriza bem as locações na Hungria, dando um tom mais dessaturado nas passagens de 1944 e realçando bem o colorido do metrô de Berlin Oriental, que a direção de arte de Christopher Minard (Run the World) e a decoração de sets de Lindsay Stephen (O Justiceiro) enfatizam bem o lado brega do realismo socialista arquitetônico e decorativo do período (1962) bem como a cafonália do apartamento de Vera Peschauer e retratando a Nova York de 1982 através de um prisma da cultura pop e referências sociopolíticas, como o filme A Escolha de Sophia acabara de ser lançado, o moicano ainda é um penteado popular entre os rebeldes sociais, a cidade ainda estava naquele momento de decadência e alta criminalidade (antes da gestão de Giuliani) e A Lista de Schindler ainda não havia sido feito, e termos como "Wi-Fi" e "millennials" ainda não haviam sido inventados. 

 

Em1944, Nadia, no corpo de Vera Peschauer (sua avó) conta com a fiel amiga Delia (Franciska Farkas)



Ainda há o resgate do desenho de produção de Michael Bricker (Não Provoque) quando em certo momento Nadia reaparece no banheiro com a porta luminosa (e com a maçaneta/gatilho de revólver), do apartamento de sua amiga, Maxine, que a recebe, sempre com a saudação “Olha, a aniversariante”, recebendo um “cigarrinho” suspeito e, ameaçando recomeçar o loop da temporada anterior, devido a uma de das burradas, resultantes de seu egoísmo, que vão bagunçando o passado, na tentativa de consertar o próprio futuro, havendo um bom trabalho dos efeitos visuais da Ingenuity Studios supervisionados por Gabriel Regentin (The Humans) nos momentos mais surreais nos últimos episódios.

 

Em certo momento, se volta à festa da noite da primeira temporada
 

O sistema metroviário de Nova York serve brevemente como cenário para a segunda temporada, em 1968 e em 2022, quando reencontramos o mendigo Horse (Brendan Sexton III de O Homem nas Trevas 2), que agora “trabalha” no Metrô (aquele que no início da primeira temporada encontra Aveia, o gato perdido de Nadia) e que demonstra de forma misteriosa “saber das coisas”, desta situação surreal, como quando diz a Nadia que “quanto mais próximo você chega do centro da Terra, mais perto você fica da verdade” , sendo um personagem que de certa forma referencia O Pescador de Ilusões (1991) de Terry Gillian. 

 

E Nova York dá as boas vindas à mais uma cidadã...



Os figurinos de Jennifer Rogien (Katy Keene) trabalham bem a caracterização dos períodos retratados, caprichando na caracterização de Lenora, e nas versões mais velhas de Vera Peschauer e sua amiga Delia (Athina Papadimitriu de Os Bórgias) em 1968/1982, e nos elegantes modelitos da jovem Ruth Brenner. 

 

O Metrô de Berlim Oriental. A direção de arte trabalha bem o lado brega so 'Realismo Socialista' em sua ênfase propagandística

 


A trilha musical de Joe Wong (Kenan) ainda pontua ocasionalmente o tema Gotta Get Up de Harry Nilsson (a “música do capeta” que Nadia chamava na temporada anterior...) intercalando com hits clássicos dos anos 80 e 60 como Bela Lugosi's Dead por Bauhaus; Put a Straw Under Baby de Brian Eno; Der Kommissar por Falco; 99 Luftballoons por Nena; Runnin' With the Devil do Van Halen; trechos de Shine On You Crazy Diamond do Pink Floyd, Get It While You Can de Janis Joplin, e utiliza trechos de Piano Concerto No 4 in G Major, Op. 58: III. Rondo: Vivace de Beethoven nos momentos ambientados em 1944. 

 

Nadia encontra a jovem Ruth Brenner (Annie Murphy) fiel amiga de sua mãe, e sua futura madrinha

 

No final de sua segunda temporada, Boneca Russa, embora de forma desigual (talvez mais um ou dois episódios permitisse fechar melhor os arcos narrativos) continua sendo uma comédia fora do padrão, com momentos engraçados e dramáticos, balanceando o sombrio, com o cômico, pois se a mensagem da 1ª temporada era sobre aceitação e superação de nossas culpas cotidianas, a 2ª temporada, é sobre como o passado modela o presente e o futuro e como ao não viver o presente, acabamos muitas vezes perdendo os últimos momentos de entes queridos. 

 

O mendigo Horse (Brendan Sexton III) como sempre parece "saber mais das coisas" do que aparenta 



Ao fazer seus dois protagonistas entenderem que o sentido da vida não é procurar por “Coney Island” (aquela coisa que tornaria tudo melhor, caso tivesse acontecido) nos convidando a apreciar cada momento da vida, ao invés de ficarem presos no mundo do “e se?”; e da mesma forma, remetendo às questões inacabadas entre pais e filhos e ao se conscientizar de que se vivêssemos as mesmas situações, não erraríamos de forma semelhante, daí a alegoria das matrioskas, que retratam uma história de amor – seja próprio, por seus familiares ou por todos que fazem parte da nossa vida (pois nunca sabemos por quanto tempo eles estarão ao nosso lado). E como diria Renato Russo seus pais “são crianças como você como você, vai ser, quando você crescer” ... 

 

Ruth Brenner  (Elizabeth Ashey) a madrinha, amiga e “mãe” espiritual de Nadia, provando em todas as épocas que o amor real é dado de graça



 


 

 

Notas:

 




*1: Contra Tempos (Quantum Leap - 1989 -1993) foi um seriado criado por Donald P. Bellisario em que o cientista Samuel Beckett (Scott Bakula de Star Trek: Enterprise) pulava de um período histórico para outro, sempre trocando de lugar com o indivíduo em questão, sempre se vendo no espelho a pessoa com a qual trocou de lugar. Ele era sempre monitorado por um holograma de seu amigo Al Calavicci (Dean Stockwel da versão de Duna de 1984) que só ele via, que lhe dava as informações necessárias para que ele corrigisse a linha temporal daquele momento, e assim pudesse voltar para casa, dando um salto quântico (quantum leep) para outro período histórico. Como o personagem vivenciava em cada episódio a experiência de ser jovem, velho, negro, mulher, escravo, etc... a série era por muitos interpretada como uma versão sci-fi do conceito de reencarnação, pois Becket poderia ser visto como a alegoria de um espírito em evolução, com cada episódio como uma vida passada que lhe ensinaria uma coisa, e o holograma seria o seu guia espiritual. 

 


*2: Matrioskas (a “Boneca Russa” do título da série) são peças de artesanato originais da Rússia que são bonecas que carregam cópias exatas ou semelhantes de figuras femininas uma dentro da outra em tamanhos decrescentes, contando simbolicamente histórias familiares, de uma mãe que carrega a filha no útero, que por sua vez carrega a neta e, assim em diante, servindo de alegoria das nossas camadas pessoais interiores.

 


*3: O Muro de Berlim foi uma barreira física construída pela Alemanha Oriental durante a Guerra Fria, que circundava toda a Berlim Ocidental. Era parte da fronteira interna alemã. Este muro, além de dividir a cidade de Berlim ao meio, simbolizava a divisão do mundo em dois blocos ou partes: República Federal da Alemanha (RFA), que era constituído pelos países capitalistas encabeçados pelos Estados Unidos; e a República Democrática Alemã (RDA), constituído pelos países socialistas sob jugo do regime soviético. Construído na madrugada de 13 de agosto de 1961, dele faziam parte 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 127 redes metálicas electrificadas com alarme e 255 pistas de corrida para ferozes cães de guarda. Este muro era patrulhado por militares da Alemanha Oriental Socialista com ordens de atirar para matar (a célebre "Ordem 101") os que tentassem escapar, o que provocou a separação de dezenas de milhares de famílias berlinenses. A queda do Muro de Berlim abriu o caminho para a reunificação alemã que foi formalmente celebrada em 3 de outubro de 1990. Muitos apontam este momento também como o fim da Guerra Fria.

 


*4: Krugerrand é uma moeda de ouro da África do Sul, sendo cunhada pela primeira vez em 1967 para ajudar a vendas do metal produzido pelo país. Em 1980, o Krugerrand respondia por 90% do mercado global de moedas de ouro. O nome em si é um composto de "Kruger", e "Rand", a moeda em circulação na África do Sul. Alguns países ocidentais proibiram a sua importação durante os anos 1970 e 1980 por causa de sua associação com o governo do apartheid da África do Sul. O Krugerrand é atualmente uma moeda popular entre os colecionadores.
A produção de Krugerrands variou significativamente durante os últimos 50 anos. Durante o período 1967-1969 cerca de 40.000 moedas foram cunhadas em cada ano. Em 1970, o montante subiu para 211.018 moedas. Mais de um milhão de moedas foram produzidas em 1974 e em 1978 foram produzidos um total de seis milhões de Krugerrands. Após o fim do apartheid a produção caiu para 23.277 moedas em 1998 e desde então os níveis aumentaram novamente. São moedas trocadas nas casas de penhor nos bairros judeus, como opção ao pagamento em dinheiro (cash) caso os clientes queiram “algo mais seguro” do que o papel-moeda, mais sujeito às oscilações cambiais.

 

Ao final, é perdoando os erros dos pais que os filhos se perdoam as próprias falhas

 

 

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