Gemma (Alison Williams de Corra!) é uma dedicada e ambiciosa engenheira de computação e robótica que trabalha numa empresa de brinquedos, cujo chefe David (Ronny Chieng de Podres de Ricos) persegue a meta de gerar um produto que cative o público-mirim e que seja de custo acessível e cuja tecnologia interna não permita a pirataria das concorrentes. Seu último lançamento, é praticamente um upgrade dos Tamagotchis*1 e apesar das boas vendas, não atingiu o potencial esperado, sendo inclusive copiado por rivais piratas, que colocaram na praça um similar, custando quase um quarto do original. É um meio selvagem, e ela está desenvolvendo (à revelia do chefe) um ambicioso projeto, de um brinquedo que substituiria a preferência de qualquer criança.
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Gemma (Alison Williams) faz da sua sobrinha Cady (Violet McGraw) a usuária principal do protótipo M3GAN |
Ao mesmo tempo, ela sofre uma tragédia familiar, quando sua irmã e o marido morrem num acidente de carro, deixando-a como responsável pela sobrinha Cady (a ótima Violet McGraw de Jogador N°1) de oito anos, uma menina retraída pelo trauma, e pelo alheamento que os tempos atuais de celulares, tablets e o mundo virtual causam nas relações humanas entre pais e filhos, uma vez que os adultos cada vez mais preferem empurrar coisas para distrair os pimpolhos, do que encarar a tarefa hercúlea de ensiná-los à estabelecer relações (e assumir responsabilidades) com o mundo ao redor. Ao ver sua própria incapacidade de lidar com as necessidades de Cassie, ela vê na sobrinha a oportunidade de desenvolver seu projeto, e a coloca como usuária-teste de M3GAN (voz de Jenna Davis de Trem Infinito e performance de Amie Donald de Sweet Tooth e Kimberley Crossman de SMILF). M.3.G.A.N. (acrônimo de Model 3 Generative ANdroid – ANdróide Generativo Modelo 3) é uma andróide-boneca de 120 m, cujos parâmetros de sua programação a fazem proteger e cuidar das principais necessidades de Cady, orientando-a, e preenchendo sua carência afetiva, tornando-se sua melhor amiga, virtualmente uma irmã. Mas aí surge um problema: Se delegamos todas essas responsabilidades para a máquina, qual o real papel dos adultos que deveriam ser os responsáveis pelos pequenos?
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M3GAN (performance de Amie Donald e voz de Jenna Davis) |
Produzido por James Wan (Aquaman) pela Blumhouse e Atomic Monster e Dirigido por Gerard Jhonstone (Housebound) M3GAN (2023) se revelou uma grande surpresa neste início de ano, tendo alcançado boa aceitação de público graças ao hype das redes sociais, que viralizaram os memes da bonequinha dançando e interagindo com Cady, se firmando como a legítima herdeira de Chuck, o Brinquedo Assassino (que já não tem o mesmo fôlego), Anabelle e (por que não?) o Exterminador do Futuro, referendando-se com estes em vários momentos do filme, sabendo se valer do arrepio típico do Vale da Estranheza*2 que seres sintéticos muito próximos da figura humana nos causam. Essa intimidação vai gradualmente crescendo à medida que a relação Cady-M3GAN vai evoluindo para algo mais perigoso, pois os algoritmos (sempre eles!) vão gradativamente considerando “proteger” Cady usando de força letal para remover todo e qualquer indivíduo que se ponha entre as duas...
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Inicialmente, M3GAN se torna o ideal da "melhor amiga" que toda criança quer |
O roteiro de Akela Cooper (Maligno) a partir de sua história (em parceria com James Wan) espertamente mescla horror, ficção-científica e um fino humor na sua crítica social ao mundo corporativo da indústria de brinquedos, que busca mais, formas de fidelizar consumidores, do que, incutir valores construtivos nas mentes da crianças; o medo das Inteligências Artificiais, aplicativos como os as ‘casas inteligentes’, e o clássico “Complexo de Frankenstein”*3 popularizado por Isaac Asimov*4, pois parece que, a julgar pelo mundo atual, ninguém mais de real posição de poder (se é que alguma vez se importaram de fato) lembra do conceito das “3 Leis da Robótica” *5, além de apontar para o momento social atual, em que adultos não sabem mais ser ‘pais’ e ‘mães’ de seus filhos, tendo cada vez mais dificuldades de assumir o papel de dizer ’sim’ e ‘não’ e impor a noção de limites e de aprender a viver com a noção de frustração, coisa que a julgar pela quantidade atual de adultos mimados, que querem ter suas necessidades atendidas imediatamente, e não sabem lidar com coisas básicas como ‘esperar a vez’, e quando têm filhos, preferem empurrá-los para as escolas ou qualquer instituição, pois não querem (e não sabem) dar limites, pois muitas vezes não tiveram isso na própria infância...
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A relação de M3GAN e Cady evolui, mas a programação da boneca começa a ampliar a noção de "proteger" a menina |
A direção acerta na dinâmica entre os personagens é bem construída e conduzida, auxiliado pela edição de Jeff McEvoy (Power) mantendo um tom narrativo constante e gradativo, acompanhando os personagens secundários na sua função de conduzir a narrativa (e só isso), muitas das vezes morrendo no terço final, para concluir seus arcos e frisar o quanto M3GAN é perigosa. No quarto final o filme abraça a sua vocação de terror-pipoca, mas de forma gráfica, mas não gore, com muitas citações a Chuck, Exterminador do Futuro, Aliens, entre outros clássicos da ação oitentista, sendo muito hábil a mescla de efeitos práticos e animatrônicos supervisionados por Sven Harrens (Mad Max: Estrada da Fúria) da Weta Workshop, com os efeitos de maquiagem de Nina Anton (A Baleia) complementados por um CGI discreto da Weta FX e Fin Design, supervisionado por Jonathan Dearig (Perdidos no Espaço) na composição da movimentação da boneca-andróide-exterminadora, cujos figurinos de Daniel Cruden a tornam uma ‘Amiguinha 5.0’ (entendedores entenderão...).
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Gemma e seus colegas de projeto Tess (Jen Van Epps) e cole (Brian Jordan Alvarez) se veêm em apuros na hora de tentar neutralizar M3GAN |
Os valores e produção são muitos bons, dentro dos parâmetros de um filme de médio orçamento, com o desenho de produção de Kim Sinclair (Oeste sem Lei), a direção de arte de Bem Milson (Pearl) e a decoração de sets de Vanessa Cole (Avatar: O Caminho da Água) e Sean Keenan (Halloween Ends) criando os espaços funcionais e corporativos da empresa de Gemma e da sua casa geek, com sua ‘Alexa’ e seus brinquedos colecionáveis, que só ficam na estante (e dentro de suas caixas). A fotografia de Simon Raby (Sem Saída) e Peter McCaffrey (Topping Out) é basicamente clara e luminosa, ficando gradativamente escura apenas nos momentos mais sinistros, da mesma forma que a música de Anthony Willis (Doce Vingança) acompanha discretamente a escalada dos acontecimentos, mas se permitindo inserir espertamente hits para sublinhar de forma irônica a narrativa. Vocês nunca mais ouvirão ”Titanium” de David Guetta e Sia do mesmo jeito...
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A violência é moderada, mas precisa para causar impacto nos momentos certos |
Ao final M3GAN é um filme-pipoca satisfatório, que é honesto na sua proposta de entreter de forma inteligente, mas sem pretender ’reinventar a roda’, já ficando claro na sua cena final, e pela mais do que satisfatória recepção do público, que em breve teremos um upgrade da bonequinha-robô, quem sabe até numa versão adolescente e, posteriormente adulta, pois sua evolução algorítmica deve ditar esse rumo...
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A progressão do filme só pisa no acelerador no quarto final, caindo um pouco no lugar-comum, mas era o que se esperava do filme, não comprometendo o seu conjunto |
Notas:
*1: Tamagotchi foi um “bichinho virtual” muito popular nos anos 90,distribuída pela Bandai e criada por Akihiro Yokoi e Aki Maita cuja principal função era receber atenção e cuidados da parte das crianças, que tinham de ‘alimentá-los’, ‘medicá-los’ (quando ’adoeciam’) etc... num ritmo intenso pois rapidamente se a criança não cuidasse dele, ele ‘adoecia’ e ‘morria’. Foi uma febre por ocasião de seu lançamento, mas em poucos anos caiu no esquecimento.
*2: O Vale da Estranheza (do inglês Uncanny Valley) é uma hipótese no campo da estética, robótica e computação gráfica que diz que quando réplicas humanas se comportam de forma muito parecida – mas não idêntica- a seres humanos reais, provocam repulsa entre observadores humanos. O “vale” em questão é oriundo de um gráfico da reação positiva de um ser humano em função da verossimilhança de um robô. A expressão foi criada pelo professor japonês de robótica Masahiro Mori.
Wikipédia: http://pt.m.wikipedia.org/wiki/vale_da_estranheza
*3: Complexo de Frankenstein seria o clichê literário (e cinematográfico) do criador (cientista, mentor, etc...) que cria um ser (pode ser um robô, uma forma de vida, ou até a orientação de um aluno ou discípulo a como se inserir, num meio profissional, político, etc...) mas após um tempo, a “criação” acaba por destruir o seu “criador”, que não avaliou sabiamente os riscos de sua empreitada, seja por ambição, desleixo, ou até por idealismo.
*4: Isaac Asimov (1920-1992), foi um prolixo autor de ficção-científica e divulgação científica, famoso por obras relacionadas a robôs e a série Fundação, que ganhou o Prêmio Hugo de Ficção-Científica, sendo considerada a melhor série literária de fantasia e ficção-científica de todos os tempos desbancando obras como as séries Duna de Frank Herbert e O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien e As Crônicas de Nárnia de C.S. Lewis.
*5: Três Leis da Robótica são, na verdade, três regras e/ou princípios idealizados por Asimov a fim de permitir o controle e limitar os comportamentos dos robôs, sendo:
1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
Mais tarde Asimov acrescentou a “Lei Zero”, acima de todas as outras: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.
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"- Agora humanos que sou uma celebridade, poderei andar incógnita no meio de vocês, me disfarçando com meus óculos escuros..." |
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