Recorte idílico da memória
Anos 50. O casal Bart (Paul Dano, de O Batman) e Mitzi Fabelman (Michelle Williams, de Sexy por Acidente) levam seu filho Sam “Sammy” Fabelman (Mateo Zoryan) ao cinema pela primeira vez e assistem O Maior Espetáculo da Terra (1952, de Cecil B. DeMille). Sua incrível sequência do acidente de trem impacta o menino à ponto de querer recriar a cena repetidamente com seu trenzinho elétrico, batendo-o várias vezes até a sua mãe dar-lhe uma câmera de 8 mm para registrar a batida de uma vez e pronto. O garoto assim o faz, mas filma várias batidas no mesmo rolo de filme, e de ângulos variados, num exercício narrativo precoce. Ele estava fisgado, mordido capturado pelo cinema...
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"Era Uma Vez nos anos 50...". Bart (Paul Dano) e Mitzi (Michelle Williams) Fabelman, apresentam ao pequeno "Sammy" (Mateo Zoryan) o cinema |
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Mitzi dá de presente ao filho uma câmera para que ele registre o impacto de seus trenzinhos batendo, e assim evitar destruí-los |
Após a primeira experiência cinematográfica, Sam passa a fazer filmes amadores, usando suas irmãs Natalie (Alina Brace, de Doces Magnólias) e Reggie (Birdie Borria, de Você)
como atrizes, improvisando efeitos especiais com o que tivesse à mão
dentro de casa (a cena das múmias e dos ‘rolos de papel’ é hilária)
plena da graça infantil spielbergiana, transparecendo sua
capacidade de encontrar excelentes atores-mirins. Além de suas
narrativas, ele também registra passagens cotidianas de sua família,
mostrando a interação entre Bart e Mitzi, representando a imagem de
comercial de margarina da “família perfeita americana”. Mas, apesar
do amor quase devocional que têm um pelo outro, tanto seu pai, um
engenheiro de computadores, quanto sua mãe, uma talentosa pianista que
abriu mão da carreira para ser dona de casa, são como água e óleo. Enxergam e vivenciam o mundo de formas completamente antagônicas, sendo
Sam (ao seu jeito) um amálgama dos dois.
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"Mestre do Desastre": O jovem Sammy fica obcecado em recriar o acidente de trem do filme |
O roteiro, escrito por Spielberg e Tony Kushner (Amor, Sublime Amor, Munique) se foca não no elenco ou no enredo, mas na arte e no poder do cinema para nos ajudar a ver a verdade sobre os outros e sobre nós mesmos, seja utilizando uma citação, seja apenas informando, como no diálogo inicial do pai com Sam, explicando de forma metalinguística o funcionamento do cinema. O diretor subaproveita alguns dos personagens enquanto some abruptamente com outros após servirem aos propósitos da narrativa, mas isto não é um demérito. Não devemos esquecer que o filme é um retrato quase 100% real da vida de Spielberg, na melhor tradição do “é tudo verdade, tirando uma ou duas mentiras”. Ele nos mostra sua família grande e intensa, sua religião e o fato de ter sido um dos únicos judeus na sua escola, sua tentativa de desistir da carreira no cinema. Todas realidades vivenciadas pelo próprio diretor, culminando no encontro com o também diretor John Ford (David Lynch, de Twin Peaks). Momentos que a edição de Michael Kahn (Jogador N°1) e Sarah Broshar (Cemitério Maldito) condensam nas duas horas e meia de duração do filme, mostrando passagens da infância, adolescência e pré-vida adulta de Sam. O filme passeia por vários gêneros, como a comédia, o drama e até a aventura, na forma de mostrar Sam fazendo um filme de guerra com seus amigos escoteiros.
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Bart, suas filhas Natalie (Alina Brace) e Reggie (Birdie Borria) e sua mãe Hadassah Fabelman (Jeannie Berlin) prezam as tradições judaicas da família |
Anos depois, Sam, já adolescente (Gabriel LaBelle, de O Predador), já dominava profundamente os recursos de que dispõe, forçando os seus limites, fazendo filmes e acompanhando o crescimento da família Fabelman junto as agora crescidas, Natalie (Keeley Karsten, de Hunters) e Reggie (Julia Butters, de Era Uma Vez Em... Hollywood) e a caçulinha Lisa (Sophia Kopera, de Cenas de um Casamento). Ele está sempre com o “tio” Bennie Loewy (Seth Rogen, de Pam & Tommy), amigo e parceiro de seu pai na engenharia computacional, compartilhando de várias experiências do clã Fabelman. A avó paterna Hadassah Fabelman (Jeannie Berlin, de Um Amor Após a Vida) personifica a tensão sogra-nora com suas pontadas quanto aos cuidados de Mitzi fornece as suas ”mãos de pianista”, em oposição a ser uma dona-de-casa mais dedicada.
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Sam vai testando os limites de seu know-how na direção e montagem de seus filmes |
Por ocasião de um falecimento em sua família, Sam conhece o seu tio Boris (Judd Hirsch, de Numb3rs, ótimo numa participação memorável), artista circense que o enxerga como
um igual e lhe ensina que, para ser realmente um artista, ele deverá aprender a se permitir o egoísmo de viver a sua própria vida, independente (talvez até divergente) das metas de sua família. Bóris potencializa suas
ambições de Hollywood, explicando-lhe como pode ser maravilhoso e
excitante uma vida no showbiz - mas alertando-o do quão
difícil, arriscado, doloroso e demorado ela pode ser, pois, como ele diz, ‘arte’ e
‘família’ costumam ser antagônicas, não importa quanto amor unam os
dois...
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Os anos passam e Sam vai registrando em película o cotidiano de sua família |
Após uma sequência (inspirada em Blow-Up – Depois Daquele Beijo, clássico de 1966 de Michelangelo Antonioni) em que Sam faz uma descoberta dolorosa, Bart é promovido e a família se muda para Los Angeles. Lá ele passa a ter uma casa maior e maiores recursos, mas algo no casamento estava fraturado, pois Mitzi, pouco a pouco, definha à medida que a magia desaparece de sua vida. Embora ame o marido, a realidade pragmática da vida comum lhe roubou essa magia, levando-a a buscar novas formas de recuperar o lúdico em sua existência.
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Tio
Boris (Judd Hirsch), artista circense, explica a Sammy que arte não é
brincadeira, mas algo visceral que cobra um preço para seus adeptos |
Em paralelo a isto, fica evidente que Bart é bem mais do que um indivíduo frio como os computadores que projeta. Embora não compartilhe da visão lúdica da esposa, é mais do que evidente o quanto sua devoção por ela completa aquilo que lhe falta. Ele sempre viveu esse encantamento através dela. Mas a separação parece inevitável.
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O adolescente Sam,(Gabriel LaBelle) em seus filmes amadores já demonstra incrível domínio do potencial narrativo das imagens em movimento |
A narrativa condensa o caminho e a evolução de Sam, em cortes ancorados na fala, ou usando a continuidade de uma palavra, ou a repetição de uma mesma frase em dois contextos ligeiramente diferentes, que dão saltos temporais, construindo elipses eficientes e inventivas, bem no estilo característico dos filmes da Velha Hollywood. A bela música de John Williams (Tubarão, Contatos Imediatos do Terceiro Grau) valoriza cada passagem de fase da vida do protagonista.
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O
amigo da família Bennie Loewy (Seth Rogen) é o "tio" que ao final, à
despeito dos reveses, estimula Sam a seguir adiante com os seus sonhos |
O inspirado desenho de produção de Rick Carter (Star Wars: A Ascenção Skywalker), auxiliado pela direção de arte de Andrew Max Cahn (O Chamado da Floresta), Andrew Broomell (Dupla Jornada), Desma Murphy (O Esquadrão Suicida) e Lauren E. Polizzi (Top Gun: Maverick) e a decoração de sets de Karen O´Hara (Ad Astra: Rumo às Estrelas), referencia o suprassumo do que o cinema já foi e pode ser, mantendo seu tom fabuloso, transpondo a inocência que é própria do cinema estadunidense dos anos 1930, 40 e 50, polvilhado com uma certa ironia contemporânea. Os figurinos de Mark Bridges (Licorice Pizza) ilustram esse universo da suburbia americana, de homens de paletó com chapéu e óculos e mulheres com vestidos rodados e cabelos bolos de noiva. A linda fotografia de Janusz Kaminski (Amor, Sublime Amor) reproduz a paleta de azuis do Technicolor e alterna os formatos de tela passando do super 8 à película 35mm e além.
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Ao mudarem-se para a Califórnia, apesar da casa maior, o casamento já apresentava fraturas, à despeito do grande amor e respeito entre os dois |
Os efeitos visuais de Industrial Light & Magic (ILM) e SDFX Studio, supervisionados por Sam Basset (Jurassic World Domínio) e Jeffrey Kalmus (Um Lobo Entre Nós), cumprem o seu papel de forma sutil, complementando a criação deste recorte da memória, criando um mundo parecido com o real, na medida que a narrativa avança. Como exemplo, destaco uma cena em que Mitzi, transtornada, no meio de uma chuva, arranca com o carro (com as crianças no banco de trás) para acompanhar um tornado, refletindo com isso o seu desejo de querer trazer a magia de volta à sua vidinha normal (e sufocante) de mãe de família.
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Sammy ganha como namorada, a cristã fervorosa Monica
Sherwood (Chloe East) |
Ao final, Os Fabelmans emociona ao mostrar que a vida é bem mais complexa do que ser o herói ou o vilão de uma narrativa. A oposição entre seus pais é fundamental para que Sam encontre seu próprio caminho, que se inicia quando ele vê a grande tela pela primeira vez e, intuitivamente, entende que o cinema é capaz de colocar o sonho na palma da sua mão (algo que o filme apresenta de forma literal em uma das cenas mais bonitas do longa) e o custo disso se resume ao que o Tio Boris (sempre ele) lhe explica sobre o seu ofício de colocar a cabeça na boca do leão:
“Isto é arte?” – pergunta Sam
“Não! Isto é coragem!” – responde Boris. “Arte é convencer o leão à não fechar a boca e comer sua cabeça!!!”
Coragem é necessária para peitar e viver a arte e suas consequências...
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Uma lenda fazendo o papel de outra: John Ford (David Lynch) dá um importante conselho ao jovem Sam sobre arte e narrativa |
*2: A pronúncia de “Fabelman” é muito próxima, senão idêntica, à de “fable man”, ou “homem de fábula”, coisa que essencialmente, define Spielberg.
*3: O filme ganhou até agora, o Globo de Ouro de 2023 de Melhor Filme de Drama e o de Melhor Diretor.
*6: Escape to Nowhere filme amador (8 mm) de 1961 (https://www.youtube.com/watch?v=pI3431fetiM)
*7: Na vida real, Steven Spielberg viveu com seu pai em Los Angeles após o divórcio de sus pais. Suas três irmãs mais novas permaneceram com sua mãe em Saratoga.
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"A fantasia e a narrativa na palma da mão..." |
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