No avançar da trama, a equipe da Discovery chega à Terra, que deixou de ser a sede da Frota Estelar e da Federação. Após solucionar uma disputa, a tripulação tem a adição de Adira (a estreante Blu del Barrio), que abriga um simbionte Tril. Mas, por ser humana. ela não consegue acessar as memórias dos seus hospedeiros anteriores. Dentre elas estão as do Almirante Sena Tal, que sabe a localização do oculto QG atual da Frota, que Michael e seus amigos tanto querem encontrar. Temos então um bom momento inclusivo na série, quando revisitamos o mundo dos Trils, que apareceram pela primeira vez na franquia na 4ª temporada de Star Trek: A Nova Geração e tiveram destaque em Star Trek: Deep Space Nine. Quando Burnhan leva Adira para resgatar as memórias dos falecidos hospedeiros, dentre elas a de seu companheiro Gray Tal (Ian Alexander, de Todo Dia) temos um conflito: Adira não pertence a espécie dos tril, coisa não aceita por parte daquela sociedade, que considera isso uma abominação. Aqui temos uma alegoria sobre a aceitação dos indivíduos não-cis e trans, enquanto que originariamente em Deep Space Nine os Tril eram uma alegoria do conceito de reencarnação.
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Joan Owosekum (Oyin Oladejo) tem um pequeno momento de protagonismo, enquanto Keyla Detmer (Emily Coutts) mostra finalmente a que veio...
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Descobrimos que houve a unificação entre romulanos e vulcanos e que já geraram uma terceira raça híbrida de ambas... |
Dr. Culber (Wilson Cruz, de 13 Reasons Why) passa a ter nessa temporada a 'missão' de sempre dizer que só "Michael Burnhan pode resolver a questão, pois ela ficou um ano sozinha etc", empurrando-a para um protagonismo que poderia ser mais dividido com os outros personagens, que continuam com pouco espaço de tela.
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...com direito à uma breve homenagem à Spock (Leonard Nimoy) |
Finalmente encontrando a última base remanescente da Frota Estelar. O Almirante Charles Vance (Oded Fehr, da minissérie A Múmia) trata a nave recém chegada com suspeita, em virtude do seu desaparecimento e devido à “Guerra Fria Temporal” *2 (que foi uma trama importante em Star Trek: Enterprise). Viagens no tempo são vistas nessa época como um crime, submetendo a tripulação à uma acareação.
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Kovich (David Cronenberg) pode vir a ser o "canceroso" de Star Trek
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Philippa Georgiou (Michelle Yeoh) se despede num episódio duplo no "Universo espelho" |
O misterioso Kovich (o diretor David Cronenberg, de A Mosca) interroga Philippa Georgiou (Michelle Yeoh, de Podres de Ricos) sobre o seu Universo Espelho, agora uma dimensão pouco acessível. Ele deixa claro que não se intimida ante a banca dela, lembrando um pouco o “Canceroso” de Arquivo X. Ele é um personagem interessante que, infelizmente, apesar de um bom começo, é logo deixado de lado. Esperemos que na temporada seguinte seja melhor aproveitado, seja como o típico “cara que sabe das coisas” ou, quem sabe, até o chefe de uma nova versão da Seção 31 (a CIA da Frota Estelar, com suas “black operations”), dado o seu acesso à informação privilegiada. Phillippa tem um episódio duplo no Universo Espelho (mas que poderia ser apenas um, para dar mais tempo e amarrar melhor outros problemas da temporada) e temos a despedida da personagem, que deverá retornar na nova série derivada de Star Trek: Discovery focada na Seção 31, ainda em pré-produção.
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A base da Frota Estelar, escondida num campo de força é visualmente clean |
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A Discovery sofre uma repaginada, atualizando seus sistemas para o Século 32 |
Há um pequeno espaço para se detalhar um pouco mais personagens secundários, como a tenente Keyla Detmer (Emily Coutts, de Dear Jesus), que tem o seu “momento Luke Skywalker”. Mas repete-se o problema crônico da série de dar um pouco mais de espaço a um personagem, nos permitindo conhecê-lo um pouco mais, para depois descartá-lo. Aqui algo assim ocorre com a comandante Nhan (Rachael Ancheril, de Carter), chefe de segurança. Felizmente não a mataram, como fizeram com Arian na temporada anterior... Da mesma forma quase não vimos a sarcástica Engenheira Jet Renno (Tig Notaro, de Transparent), cujas tiradas eram bem divertidas. No final temos um pequeno foco em personagens como Joan Owosekum (Oyin Oladejo, de Endlings), mas o resto da ponte - R.A.Bryce (Ronnie Rowe Jr., de Black Cop) ou Gen Rhys (Patrick Choon-Kwok, de Wynona Earp), continuam basicamente apenas parte da cenografia.
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Maior por dentro do que por fora: Acredite se quiser, eles querem que acreditemos que é assim o espaço interno da Discovery, onde os turbo-elevadores correm... |
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O resultado é condizente com "Harry Potter","Doctor Who" ou "A Fantástica Fábrica de Chocolte", mas não com Star Trek que sempre se propôs a ser medianamente fantasiosa
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Os valores de produção da série continuam altos, mesmo tendo várias fases da pós-produção feitos em regime de home-office, em função da pandemia do Coronavírus. Vemos alguns incrementos tecnológicos e novos designs de naves, mas nada que você possa dizer ‘UAUU!!!’ Não há aquela mudança visual que salta aos olhos com a passagem de tempo como sentimos na relação entre a série original e A Nova Geração ou os filmes de cinema. O Desenho de Produção de Phillip Barker (American Gothic), a Direção de Arte de Matt Middleton (Ana e Os Robôs) e William Budge (13 Reasons Why) e a decoração de sets de Peter P. Niolakakos (The Expanse) são competentes e até inspirados em alguns momentos, como a atualização do mundo Tril ou ao vermos a antiga sede do QG da Frota na Terra, mas não é memorável. Da mesma forma, os figurinos de Gersha Philips (A Vida de Miles Davis) e Bernadette Croft (Cardinal) basicamente dão prosseguimento ao que fizeram na temporada anterior.
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Dentre os vilões "meia-boca" da temporada temos Zareh (Jack Weber)
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A fotografia de Glen Keenan (Frontier), em parceria com os efeitos visuais de DNEG, Alchemy Studios, Crafty Apes, BUF, Ghost VFX, Legacy Effects, Gentle Giant Studios, Pixomondo, Monsters Alens Robots Zombies, Spin VFX, Second Chance Games & Visual Effects, Storm Studios, Torpedo Pictures acerta na criação de momentos-chave, como a reconciliação de Adira com as memórias de seu simbionte. A edição de Jon Dudkovwski (Impulse), Scott Gamzon (Krypton), Chad Rubel (Limetown) e John Wesley Whitton (The Tick) cria momentos intimistas, que a música de Jeff Russo (Star Trek: Picard) tira bom proveito. Mas nada - NADA! - vai me convencer de que todos os turbo-elevadores transitam em um espaço vazio absurdo como o mostrado na cena do episódio final, quando Michael e Boker lutam com os capangas de Osyraa, fazendo parecer que o espaço interno da Discovery é absurdamente grande. Algo digno de Doctor Who, Harry Potter e Fantástica Fábrica de Chocolate, onde a relação entre espaço externo e interno é chutada para escanteio. As naves da Federação - fossem as várias Enterprises, a Reliant, a Defiant, a Voyager e, por tabela a Discover - não são como a T.A.R.D.I.S. ou muito menos, o interior da mala da Mary Poppins. Curiosamente talvez seja esta a maior de todas as violações de cannon da série, e pode abrir um precedente perigoso para a futura credibilidade da franquia se continuarem a seguir esta direção da “ciência-mágica”, sem nenhuma preocupação de ter um mínimo de embasamento na ciência e nas leis da física...
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O cientista chefe de Aurelio (Kenneth Mitchell) representa a ciência cooptada pelo poder sem ética
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Ao final, derrotados o vilões e empossada Michael Burnhan novamente como a salvadora da galáxia (como um certo James Tiberius), a terceira temporada de Star Trek: Discovery conclui seu arco de forma razoável, apesar de seus muuuiiitos deslizes. Mas não consegue superar as próprias limitações auto-impostas por seus roteiristas e showrunners, que se mostraram tão obcecados com as causas corretas e louváveis da representatividade e da inclusão - sempre checando o que está bombando nas redes sociais -, que se esqueceram de que, se tais tópicos não estiverem bem amarrados a um bom roteiro, uma boa construção de personagens e uma coerência interna do conjunto, acabarão por fornecer munição para os haters e todo o tipo de reacionário para justificar suas posturas contra a série. Lovecraft Country, The Expanse e até a distinta concorrência The Orville mostraram que é possível conciliar narrativas fantásticas com levantando de questões de representatividade de cor, gênero, crítica social e política, de forma coerente e inteligente. Só assim uma narrativa se mantém de forma sólida no imaginário coletivo, como Gene Rodenberry e seus colaboradores o fizeram há mais de meio século e que fez de Star Trek, a nossa Jornada nas Estrelas.
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