sábado, 30 de janeiro de 2021

Seria ótimo, se não fosse ruim... - Crítica - Filmes: Os Órfãos (2020)

 

Deu a louca...

por Alexandre César 

(Originalmente postado em 29/ 01/ 2020)



Boa produção naufraga em roteiro fraco

 

Página da primeira edição, em capítulos na Collier´s Weekly em 1898.


Originalmente publicado entre 27 de janeiro a 16 de abril de 1898 na revista inglesa Collier´s Weekly a novela A Outra Volta do Parafuso de Henry James (1843-1916) tornou-se um clássico da Literatura Gótica, no subgênero Histórias de Fantasmas, ao narrar de forma detalhada e ambígua a trama de uma governanta que cuidando de Miles e Flora, duas crianças na Mansão Bly, uma antiga residência, num lugar remoto de Essex, na Inglaterra, e ela começa a perceber que aquela habitação é assombrada pelo espírito de Ms. Jessel, sua predecessora e o de Peter Quint, um empregado, indivíduo rude e de índole perversa, com quem aparentemente ela tinha um relacionamento abusivo.


"Os Inocentes" (1961) de Jack Clayton: Ms.Giddens (Deborah Kerr) com Milles (Martin Stephens) e Flora (Pamela  Franklin)

A obra tornou-se, pela forma como é narrada, marco de estudos acadêmicos por permitir diferentes interpretações (um bom número delas auto-excludentes) quanto a real natureza do mal que cerca a mansão e seus habitantes, insinuando ora uma origem sobrenatural, ora o fruto da confusão mental de sua protagonista.


Ms. Jessel (Stephanie Beacham) e Quint (Marlon Brando) e seu relacionamento sadomasoquista no prequel "Os que Chegam com a Noite" (1971) de Michael Winner

Adaptada para o teatro (por Harold Pinter na Broadway em 1950 e por Rebecca Lenkiewicz em 2013), ópera (por Benjamin Britten em 1954), balé (por Luigi Zaninelli em 1980 e por Will Tucket do Royal Ballet em 1999) TV (uma adaptação por John Frankenheimer em 1959 entre inúmeras nos Eua e europa) e é claro o cinema, sendo as mais conhecidas, entre as várias versões, Os Inocentes (1961) de Jack Clayton com Deborah Kerr como a governanta Ms. Giddens E Michael Redgrave como o tio das crianças e Os que Chegam com a Noite (1971) de Michael Winner (o Desejo de Matar original) com Marlon Brando como Quint e Stephanie Beacham como Ms. Jessel, mostrando o que seria sido um prequel da trama da obra de James, onde vemos o relacionamento doentio dos dois e sua influência sobre as crianças.


A versão de 2020: Produção conturbada...

Miles (Fin Wofhard) e Flora (Broklynn Price) Fairchild e a professora Kate Mandell (Mackenzie Davis): O trio da vez...


Os Órfãos (2020) é aquele típico exemplo de filme assombrado”, tendo começado a sua produção em 2014 no Maine sob o título de Os Assombrados, sob a direção de Juan Carlos Fresnadillo (Extermínio 2) parando logo em seguida, cinco semanas depois por ordem do produtor Steven Spielberg (Jogador N°1) entrando por um hiato até serem retomadas as filmagens, agora na Irlanda em 2018 dirigido agora por Floria Sigismondi (The Runaways: Garotas do Rock) ficando na geladeira por um bom tempo e só agora sendo lançado mas nunca atingindo o seu pleno potencial por alguma “misteriosarazão de bastidores que normalmente sabota diretores promissores do cinema independente quando tentam a sorte no cinema mainstream hollywoodiano, resultando em obras genéricas que trabalham no seguro, e quando a película naufraga o cineasta leva a culpa...


A governanta Ms. Grose (Barbara Marten) parece saída de um filme da Hammer


A trama é ambientada nos anos 1990, pouco após a morte do músico Kurt Cobain, fato usado para situar a trama no tempo, e conhecemos a bela professora Kate Mandell (Mackenzie Davis de Exterminador do Futuro: Destino Sombrio) que indicada pelo colégio em que trabalha, vai dar aulas na casa da fofa Flora Fairchild (Broklynn Price) e do cínico e agressivo Miles Fairchild (Finn Wolfhard de Stranger Things), órfãos que vivem sózinhos na Mansão Bly junto com a governanta Ms. Grose (Barbara Marten de Sanctuary) e mantendo comunicação com o mundo exterior apenas através das ligações telefônicas com a sua amiga Rose (Kim Adis de Krypton) ela começa a ter vislumbres de presenças que vai descobrindo se tratar da sua antecessora, a fantasmagórica Jessel (Denna Thomsen de Euphoria) e do sinistro Quint (Niall Greig Fulton de Legítimo Rei) e gradativamente ela vai sendo afetada por aquele ambiente “carregado e questionando suas percepções.

Miles toca guitarra e bateria, além de ser fã de Kurt Cobain, outro "menino perdido"

a fofa Flora é um achado, com o seu carisma e desenvoltura


O roteiro dos irmãos Chad e Carey W. Hayes (Invocação do Mal) faz bem em situar a trama numa época moderna, mas não a atual, pois o acesso a celulares e à internet destruiriam o sentimento de isolamento tão necessário a uma trama de casa mal-assombrada para sentirmos o despertencimento da protagonista, que carrega o temor pessoal da condição de sua mãe Darla Mandell (Joely Richardson de Operação Red Sparrow) que vive internada numa clínica psiquiátrica pintando quadros e desenhando compulsivamente com carvão, temas inquietantes para Kate, temerosa de que a condição da sua mãe possa ser hereditária, mas desenvolve pouco os personagens, que só não afundam na bidimensionalidade por obra e graça da diretora e do elenco esforçado, que defendem seus papéis da melhor forma possível.


Gradativamente a auto centrada Kate vai sentindo-se desnorteada sobre a realidade à sua volta


A fotografia e o design de produção reproduzem todos os elementos de uma narrativa gótica

A direção de Sigismondi é até boa, embora não genial, dando uma narrativa que, apesar dos tropeços, gradualmente vai mergulhando a segura Kate em incertezas gerados pelo ambiente em que vultos podem ser apenas ilusões de ótica, ou coisas misteriosas e perigosas de fato, cuja fotografia granulada e às vezes escura de David Ungaro (Prece ao Nascer do Dia) mergulham nessa zona do crespúsculo” onde todos os gatos são pretos ou não, auxiliada pela edição de Dwayne Dunham (Twin Peaks) e Glen Garland (As Senhoras de Salem) que até dosam essa sensação de “- Quem têm problemas? O ambiente em que estou, ou eu mesmo?” com cortes que alternam cenas tensas e contemplativas com os inevitáveis sustos, sublinhados pela música de Nathan Barr (Carnival Row) que cria uma boa atmosfera que acompanha os vastos jardins, e seu labirinto, além de elementos típicos que toda mansão mal-assombrada precisa, e que o desenho de produção de Paki Smith (Mary Shelley), a direção de arte de Nigel Pollock (Z: A Cidade Perdida) e a decoração de sets de Justine Wright (Sweetness in the Belly) enchem as paredes e cômodos de espelhos, manequins, bonecas de porcelana, móveis cobertos com lençóis, lagos com carpas, árvores retorcidas nos bosques, etc... todo o conhecido vocabulário formal de uma trama gótica, coisa que contrasta com os figurinos de Leonie Prendergast (A Peregrinação) que coloca Kate vestindo um casaco vermelho, com vestido e trajes laranjas e roxos destacando-a dos habitantes da mansão, ou dando a Milles um suéter castanho de lã de gosto convencional, pertencente a Quint, refletindo a influência obsessora deste sobre o menino.


Cena deletada de provavelmente uma das várias cenas de pesadelo ou delírio que permeiam o filme

Ao final de seus 94 min. Os Órfãos se perde num roteiro pouco desenvolvido e que ousa pouco e o pouco que ousa, o faz de maneira equivocada, levando a crer que como toda produção que se arrasta demais, devem ter havida muitas alterações de roteiro, troca de profissionais, cortes e pressão do estúdio para se fazer um filme o mais comercial possível, eliminando toda e qualquer possibilidade de fazer algo realmente marcante...


"- Filha, se eu estou escrevendo essa carta para você ler, é porque eu sou louca...
mas, se você está lendo essa carta que eu lhe escrevi, é porque VOCÊ É LOUCA!!!"

 

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