sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Comunidade porreta!!! - Crítica - Filmes: Bacurau (2019)

 

E o Nordeste resiste...

por Alexandre César 

(Originalmente postado em 30/ 08/ 2019)


Realizadores de "Aquarius" criam distopia crível e atual

 


Vencedor do Grande Júri no Festival de Cannes 2019

Grande sensação no Grand Théâtre Lumière, na 72ª edição do Festival de Cannes em maio deste ano de 2019, quando o Brasil assiste ao seu desmanche em setores básicos e essenciais em nome e glória do Deux Mhercaddo (o termo é invenção minha...) o nosso cinema ainda se mostra capaz de narrar fábulas arrojadas como a desta produção que novamente colocou o país no mapa da vanguarda das artes, sendo merecidamente premiada no festival francês e trazendo Pernambuco para o mapa das grandes produções de faroeste do Século XXI. Dirigido por Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor de 2011, Aquarius de 2016) & Juliano Dornelles (o curta-metragem Mens sana in corpore sano de 2011,) Bacurau (2019) é cinema em sua mais pura essência narrativa e traz em seu ritmo ora ágil, ora mais contemplativo uma ótima reflexão sobre colonialismo, identidade cultural, globalismo e várias outras questões, recorrendo a gêneros "importados" como o próprio “Far-West” resgatando e reinterpretando o cangaço em função de seus potenciais dramáticos, abraçando sem pudores o ”ser estranho”, a natureza exótica, o calor e as dificuldades do Sertão mesclado com a adrenalina dos filmes de ação, entregando uma história à princípio confusa, mas que em seu desenrolar frenético, nos instiga a tentar descobrir o que acontecerá na próxima cena, não se negando a ser divertido e polêmico e a fazer a catarse do público na tela: A boa definição de uma obra-prima, seja de qual cinema for...
 


Teresa (Bárbara Colen) regressa a seu berço natal em momento de comoção


A produção de Emilie Lesclaux, logo em sua cena inicial se encarrega de literalmente de “colocar o país no mapa” : Seus créditos abrem como em Star Wars, com as estrelas ao fundo da tela preta, e uma panorâmica passa como satélite sobre o Globo e paira sobre o território nacional. (Spoiler: A Terra é um planeta esférico!!!). Logo em sequência um zoom-in de cima localiza a trama no sertão nordestino, onde a cidadezinha chamada Bacurau (nome de um pássaro da região) “a oeste de Pernambucano, daqui a alguns anos”, o que lhe dá um toque de sci-fi (olha só...). Acompanhamos Teresa (Bárbara Colen) mulher forte e determinada (espécie de guia ao espectador) retornando a cidade pequena, longe dos centros urbanos iluminados do Centro-Oeste e do Sudeste, mas unida, a comunidade local vive seus dias em paz e em tranquilidade, apesar das dificuldades não resolvidas pela prefeitura cujo abastecimento de água é problemático feito pelo caminhão-pipa cujo motorista (Rubens Santos) lhe dá carona. As dificuldades de abastecimento hídrico são causadas por um grupo não identificado que se apossou das nascentes e rios próximos (Me lembrei da declaração do CEO da Nestlé de que a ”água potável não é um bem comum a todos, devendo ser explorada pelas empresas...” para justificar a compra do Aquífero Guarani).



A fotografia de Pedro Sotero capta a beleza agreste, seca e colorida do agreste sertão


Chegando,deparamos com o funeral de uma personalidade muito querida da cidade (Lia de Itamaracá, célebre cirandeira pernambucana); cujo cortejo do corpo, popularesco, musical, nos diz que a memória não é estanque e definitiva, mas sim algo visceral, que dói, e se transforma, como vemos no protesto da Dra. Domingas (Sônia Braga se entregando com tudo ao personagem) com seus cabelos brancos, desprovida de apelo para a sedução amorosa, bêbada, inconveniente mas surpreendente em sua lucidez, a atriz mostra que embora seus dias de Gabriela tenham há muito ficado para trás, isto não lhe faz a mínima falta.

Dra. Domingas (Sônia Braga) inicialmente bêbada e surtada, se revela um personagem bem articulado...


Porém, misteriosamente Bacurau se apaga dos mapas digitais e tudo começa a mudar quando um “disco voador” passa a sobrevoar a região e, logo em seguida, eventos estranhos vão acontecendo. Desde a morte de moradores até o sumiço do sinal de celular e da eletricidade, de forma estranha e tensa, com um grupo de indivíduos muito bem armados e equipados com tecnologia de ponta, que só falam inglês (e ao falar com os ”nativos”, usam o Google translator) chefiados por Michael (Udo Kier, sinistro e genial) que obedecem a um cronograma de isolar e ir exterminando a comunidade no melhor estilo “Black Operations” até apagarem qualquer traço de sua existência... Como é que ééé??? perguntará você...
 
 
Michael (Udo Kier): Maestria como vilão cartunesco numa trama que pede um vilão cartunesco...

 
 
Bacurau é um filme que brinca livremente e de forma segura com as regras do cinema de massa, usando de anti-heróis cartunescos e vilões maniqueístas, indo de Sergio Leone a John Carpenter, passando por Sam Peckinpah a Briam De Palma ou a violência de Quentim Tarantino sem traumas, e o pudor de usar recursos visuais estilizados, mesclando de forma harmoniosa elementos de Ficção científica, cinema de ação, comédia regional e muito faroeste italiano, cuja fotografia de passa o incômodo do quente clima sertanejo, que influencia na caracterização da cidade sertaneja cujo protagonismo está diluído, logicamente, em todos os seus vários e ricos personagens.
 
 
A comunidade sai para enterrar um pedaço substancial de sua história, que permanecerá em seus corações...

 
 
Da multiplicidade de tipos interessantes, misteriosos, ambíguos e divertidos, que são vitais para a crítica social, refletindo o povo brasileiro, que sofre diariamente com as m3#@s do governo e ainda assim acha uma razão para sorrir e seguir com a vida, Nota-se o bom espaço dado a um elenco de matizes variados, Indo de Clébia Sousa (O som ao redor),Uirá dos Reis (Doce Amianto), Edilson Silva (Brasil S/A), Buda Lira (Aquarius), Ingrid Trigueiro (Rebento), Valmir do Côco (Azougue Nazaré), entre outros,fora o elenco americano, dentre eles, Charles Hodges (Enjaulado de 1997), amigo pessoal de Kleber. Personagens contrastantes que exaltam organicamente a cultura da região nordestina.
 
 
Lunga (Silvero Pereira) o bandido que é herói local, tal qual Robin Hood ou Zorro...

 
O filme traz à luz a discussão sobre a hegemonia da cultura norte-americana e a sua arrogância com reação ao resto do mundo, desafiando a audiência a pensar além das fórmulas dos gêneros de massa (essa ação questionadora aparece sempre em diálogos como na cena das comparações raciais (“- Vocês não se parecem conosco. Vocês parecem mexicanos brancos!” ), a cena do nazista, ("- não recorra a clichês!"), e a dos velhos nus ("- por que eles precisam estar pelados?"), Bacurau está no fundo estimulando o público a entender o filme por conta própria, além da superfície, numa linha discursiva de uma universalidade incrível, que historicamente popularizou o cinema no mundo inteiro na medida em que  “o bem vence o mal” de maneira brutal e direta.
 
 
Primeiro a água, depois a localização nos mapas digitais e depois a luz e... a escuridão...

 
 Ao final saímos satisfeitos do cinema certos de termos visto uma produção única, que do seu jeito faria Glauber Rocha exultar. Por seu apelo épico, pleno de ideias e, popular que de forma divertida e inteligente passa a mensagem dos criadores: A de que desdenhar da própria história, da cultura, é desdenhar da própria sobrevivência, apagando um povo do mapa...
 
 
Apesar de tudo, recordamos que o sertanejo acima de tudo é um forte, e a tudo resiste, por mais que o mainstream insista em torná-lo invisível...

 

 

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