sábado, 5 de agosto de 2023

Diretor Macho-Alfa - In Memorian: John Huston

 


Destemido narrador

por Alexandre César 
(Originalmente postado em 05/ 08/ 2018)

Com ele sempre tínhamos grandes histórias e personagens

 

Se existe um diretor que poderia ser um personagem de Ernest Heminguay, este seria John Huston!


 

Um homem de vários interesses (além do cinema): pintura, escultura, boxe, jogo, caça à raposa, entre outros. Um diretor que pensava na contramão de Hollywood. John Huston ( ⭐ Nevada, Missouri, 5 de agosto de 1906 - ✝ Middletown, Rhode Island, 28 de agosto de 1987) colocava os personagens de seus filmes em situações absurdas, normalmente fadadas ao fracasso, mas que nos levam à reflexão sobre a condição humana.

Iniciou sua carreira em Hollywood na década de 1930 como roteirista. Sua participação como escritor em filmes como Jezebel (1938, de William Wyler) e Seu Último Refúgio (1940, de Raoul Walsh) o habilitou a se tornar diretor. 

 

Humphrey Bogart, Walter Huston e Tim Holt em "O Tesouro de Sierra Madre" (1948). Aventureiros em busca de ouro no México


John Huston é considerado um dos artistas de cinema mais bem sucedidos do século 20. O lendário diretor de Relíquia Macabra e Tesouro de Sierra Madre, dirigiu 41 filmes ao longo de uma carreira que durou 46 anos. Como resultado, recebeu 15 indicações ao Oscar, ganhando duas vezes.

Nascido John Marcellus Huston, ele era filho de Rhea Gore, uma jornalista itinerante, e do ator Walter Huston. Ele e o pai trabalharam juntos em obras clássicas no cinema. O casal se divorciou quando ele tinha seis anos. De saúde débil, aos doze anos ele foi enviado para um sanatório devido ao coração dilatado e problemas renais. Depois dos estudos primários se dedicou ao boxe e a uma série de exercícios físicos para melhorar a sua saúde. 

 

Walter e John Huston: Pai e filho premiados na mesma noite


Estudou pintura e trabalhou algum tempo como jornalista e redator. Durante a Segunda Guerra Mundial, John Huston trabalhou com o exército americano e dirigiu quatro documentários sobre o conflito: Report from the Aleutians, , Battle of San Pietro, Tunisian victory e Let there be light. O último, narrado por Walter Huston, mostra as sequelas psicológicas que uma guerra deixa nos jovens soldados. Por seu conteúdo antibelicista, o filme foi censurado pelos militares e só pôde ser exibido nos Estados Unidos na década de 1980. 

 

"Relíquia Macabra" (1941): Estréia na direção, com Mary Astor e Humphrey Bogart no papel que lhe redefiniu a carreira (antes, ele só fazia gangsters que morriam no final..)

 

Ter trabalhado como pintor em Paris fez com que ele tivesse uma boa mão e um ótimo olhar para imagens, desenhando sempre as cenas e enquadrando os personagens em meticulosos storyboards. Muitos diretores preferiam finalizar seus filmes na pós-produção, mas Huston gostava de trabalhar todos os detalhes enquanto filmava.

 

"O Segredo das Jóias" (1950). Uma novata Marilyn Monroe e Sterling Hayden em trama noir

 

Em 1935 começou a trabalhar na Warner Brothers onde colaborou no roteiro de vários filmes. Estreou como diretor em 1941, com Relíquia Macabra, cujo roteiro escreveu baseando-se no romance O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett. O seu primeiro filme na direção já apresenta a visão cínica de John Huston sobre o mundo. Na trama, o detetive Sam Spade (Humphrey Bogart, no papel que foi o diferencial em sua carreira) é contratado, seduzido e enganado por uma mulher, para localizar uma estátua de ouro incrustada de jóias, objeto de cobiça de vários bandidos. A adaptação do livro de Hammett para o cinema, uma produção barata para a época, foi sucesso de público e Huston tornou-se um dos mestres de um estilo de cinema que estava no início, chamado film noir (estilo assim batizado pelos críticos franceses na década de 1950, por causa da fotografia contrastada - herança do expressionismo alemão, da ambientação sombria e decadente e de seu tom amoral). 

 

    Katherine Hepburn e Humphrey Bogart em "Uma Aventura na África" (1951), cujas filmagens também foram uma aventura


Ele realizou outros films noir de destaque, a exemplo de Paixões em fúria (1948), onde Bogart interpreta um soldado desiludido que precisa entregar a condecoração dada a um jovem morto na Segunda Guerra Mundial ao pai e à viúva dele, e O Segredo das Jóias (1950), com uma jovem Marilyn Monroe no elenco, que mostra um grupo de ladrões que planeja roubar uma joalheria. 

 

Como Noé em "A Bíblia - No Início" (1966). Boa atuação


 

Mas, sem dúvida, foram seus filmes de aventura que formaram um conjunto dos mais significativos do cinema. Entre estes, citamos O Tesouro de Sierra Madre (1948), uma parábola sobre a ganância humana, e O Homem que Queria Ser Rei (1975) com o foco sobre o orgulho. Também temos os clássicos Moby Dick (1955) - filme com roteiro de Ray Bradbury e atuações de Gregory Peck e Orson Welles que fala sobre a obsessão autodestrutiva e Uma Aventura na África (1951), cujas filmagens também foram uma aventura, conforme mostra o longa metragem Coração de Caçador (1990), de Clint Eastwood (no qual o diretor interpreta o próprio John Huston, mais preocupado em caçar do que realizar o filme). 

 

"Paixões em Fúria" (1948) Lauren Bacall e Bogart: Casal nas telas e na vida real


 

Como ator, John Huston ficou conhecido por ter interpretado Noé numa das partes que compuseram o filme A Bíblia - No Início (1966), que também dirigiu. Ele contava não ter sido fácil fazer com que os animais entrassem aos pares na arca, seguindo fiel à concepção clássica da passagem bíblica.

 

"O Céu Por Testemunha" (1957). A freira (Deborah Kerr) e o soldado (Robert Mitchum)


Nos filmes que escreveu e dirigiu, John Huston sempre colocou seus personagens em uma situação-limite que os impelem a se engajar em empreitadas perdidas ou focou-se em personagens deslocados de seu contexto. Assim é com os garimpeiros de O Tesouro de Sierra Madre, que lutam para encontrar ouro no deserto do México e vêem o resultado de seu trabalho ser levado pelo vento (pelo filme, seu pai, Walter Huston, levou o Oscar de melhor ator coadjuvante). Coisa semelhante ocorreu em Uma aventura na África: dois personagens diametralmente opostos - uma missionária pudica de meia idade (interpretada por Katherine Hepburn) e um marinheiro rústico e amoral (Oscar de melhor ator para Humphrey Bogart) - versus o exército alemão na selva africana durante a Primeira Guerra Mundial. Em vários filmes temos este padrão: a freira (Deborah Kerr) e o soldado (Robert Mitchum) de O Céu Por Testemunha (1957); o pintor impressionista francês Toulouse Lautrec (José Ferrer) no filme ) no filme Moulin Rouge (1952); os caçadores de cavalos selvagens (Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift) de Os Desajustados (1961); o casal de matadores profissionais (Jack Nicholson e Kathleen Turner) de A Honra do Poderoso Prizzi (1985). No caso dos filmes focados nos personagens à margem da sociedade, podemos citar o boxeador decadente (Jeff Bridges) de Cidade das Ilusões (1972) e os assaltantes (Sterling Hayden, Sam Jaffe e Jean Hagen) de O Segredo das Jóias (1950).  

 

Gregory Peck como o obssessivo Capitão Ahab em "Moby Dick" (1956): atuação visceral

 

O filme que melhor apresenta a visão cética de John Huston é O Homem que Queria ser Rei, baseado em um conto de Rudyard Kipling (o criador de Mogli) que está presente no filme, interpretado por Christopher Plummer. Na Índia, dois malandros (vividos por Sean Connery e Michael Caine) resolvem ir as aldeias remotas do Afeganistão para, com sua esperteza, tornarem-se monarcas, governando os ingênuos e supersticiosos nativos. Eles, porém, são desmascarados com consequências trágicas. A cabeça decepada de um deles é, paradoxalmente, o símbolo de seu maior sucesso e de seu fracasso.

 

"Fuga Para a Vitória" (1981): Stallone e Pelé no mesmo time


A postura crítica de John Huston era incompatível com o clima de perseguição gerado pela histeria anticomunista que se espalhou pelos Estados Unidos na década de 1950. Ele se exilou na Irlanda e se inspirou na região para muitos de seus filmes. Lá ele dedicou-se às suas paixões: criar cavalos, lutas de boxe, caçadas, bebida, charutos e as mulheres. Tais excessos causaram sua morte por enfisema, em 28 de agosto de 1987, após terminar as filmagens de Os Vivos e os Mortos - baseado num conto Os Dublinenses, de James Joyce - com sua filha Angelica Huston em um dos papéis principais. Era um homem de apetites intensos...

José Ferrer como Toulouse Latrec e Zsa Zsa Garbor em "Moulin Rouge" (1952). ambientação inspirada na pintura e palheta de cores do artista.


Ao longo de sua carreira, Huston realizou obras extraordinárias e inesquecíveis, das quais já citamos várias aqui, e produções medíocres ou meramente comerciais - como exemplos, temos o musical Annie (1982), baseada na peça de sucesso da Broadway, e a inusitada aventura de guerra Fuga para a Vitória (1981), que mistura futebol e Segunda Guerra Mundial e conta com Sylvester Stallone, Max Von Sydow e Pelé no elenco. Por Annie ele chegou a ser indicado na categoria de “Pior Diretor” no prêmio “Framboesa de Ouro”. 

 

Montgomery Clift como o pai da psicanálise em "Freud - Além da Alma" (1962), um clássico esquecido

 

Recebeu cinco indicações ao Oscar, na categoria "Melhor Diretor", por: O Tesouro de Sierra Madre, em 1948 (que ganhou); O Segredo das Jóias, em 1950, Uma Aventura na África, em 1951; Moulin Rouge, em 1952; e A Honra do Poderoso Prizzi, em 1985. Teve uma indicação na categoria de “Melhor Filme” por Moulin Rouge e uma como “Melhor Ator Coadjuvante” em 1963 por sua atuação em O Cardeal, filme de Otto Preminger

 

Ao lado da filhota Angelica Huston


Recebeu quatro indicações ao Recebeu quatro indicações ao Oscar, na categoria "Melhor Roteiro”: Relíquia Macabra, em 1941; O Tesouro de Sierra Madre, em 1948 (que ganhou); O Segredo das Jóias, em 1950; e Uma Aventura na África, em 1951. Depois que este prêmio foi dividido, recebeu duas indicações de "Melhor Roteiro Original":  Dr. Ehrlich's Magic Bullet, em 1940 e,  Sargeant York, em 1941. E foram duas na categoria de "Melhor Roteiro Adaptado": O Céu Por Testemunha, em 1957, e O Homem que Queria Ser Rei, em 1975.

 

Como o cardeal Gleenon em "O Cardeal"(1963). Indicação ao Oscar e vencedor no Globo de Ouro


No Festival de Veneza, Huston ganhou um Leão de Ouro em homenagem à sua carreira em 1985 e um Leão de Prata de “Melhor Diretor” por Moulin Rouge em 1952.

 

Atuação marcante como um inescrupuloso empresário em "Chinatown" (1974) de Roman Polanski

 

Recebeu três indicações ao Globo de Ouro, na categoria de "Melhor Diretor": O Tesouro de Sierra Madre, em 1948; A Noite do Iguana, em 1964; e A Honra do Poderoso Prizzi, em 1985. Venceu em 1948 e 1985. Neste prêmio também foi indicado duas vezes como “Melhor Ator Coadjuvante”: O Cardeal, em 1963 (que venceu); e Chinatown (de Roman Polanski), em 1974. Venceu em 1963.

 

"O Outro Lado do Vento": último filme de Orson Welles, que contou com a participação de Huston e Peter Bogdanovich. O filme foi resgatado e finalizado pela Netflix


John Huston foi um cineasta que, além de ter dirigido filmes que merecem ser revistos (embora nem todos tenham sido lançados no Brasil), mostrou que o cinema não é mero entretenimento. Ele também pode ser uma manifestação artística que conjuga preocupações sociais e expõe os dilemas existenciais do ser humano tão bem ou melhor do que muitas obras literárias ou tratados filosóficos.

 

"O Homem Que Queria Ser Rei" (1975). Michael Caine e Sean Connery no filme que sintetiza a visão de John Huston, onde o espírito humano é maior do que a vida


 

 

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