Em matéria de heroísmo, ninguém superava Charlton Heston
“Em momentos de dificuldade para a raça humana, ele sempre foi o último baluarte do bom senso e da virtude. Defendeu o povo escolhido contra a tirania pagã do Egito e de Roma. Lutou contra os fanáticos maometanos em defesa da cristandade. Quando tudo parecia perdido para a raça humana, defendeu-nos contra macacos homicidas e mutantes pestilentos, além de alertar-nos contra consumir uma ração canibal. Enfrentou as forças da natureza e ainda conseguiu nos retratar como a divina criação do Todo-Poderoso. Enquanto viveu, o homem comum podia dormir em paz, pois sabia que existia Charlton Heston.”
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O jovem Heston, inicialmente John Charles Carter |
Tal chamada poderia ser a de algum herói de quadrinhos da DC, Marvel ou Image Comics, mas no meu entendimento define bem a persona do ator que se tornou ícone da figura de herói, um das maiores da velha Hollywood. Do épico bíblico ou histórico, à ficção científica apocalíptica, passando pelo cinema catástrofe, ninguém como Charlton Heston encarnou tão bem o conceito de herói moderno e imperfeito (aquele que, por força das circunstâncias ou voluntariamente, está num lugar para resolver um conflito - e o faz, seja quais forem as consequências).
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Na época em que conseguiu a bolsa de estudos que lhe abriu as portas ao teatro |
Lembro bem a primeira vez que entrei em contato com o “Mito Heston”. Foi por volta de 1971 - não lembro o mês -, quando foi inaugurado o cinema Madureira 1 - obviamente no bairro do subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro. Fomos eu, minhas duas irmãs e meus pais assistir Os Dez Mandamentos (1956, de Cecil B.DeMille) e lá, numa sequência em especial, via o herói Moisés sendo interpelado por seu rival invejoso Ramsés (Yul Brynner, em toda sua pompa e veneno). Moisés confessa ao Faraó Seth (Sir Cedric Hardwicke) ter dado trigo aos escravos hebreus para fazerem pão (Ramsés coloca um pesinho num prato da balança), ter invadido os depósitos dos sacerdotes (e Ramsés coloca outro pesinho) e dado um dia de descanso a eles (e mais um pesinho). O Faraó pergunta: “Porquê?”. Moisés chega perto , de Ramsés encarando-o, mostra na mão um tijolo e diz: “Porque escravos bem alimentados e descansados dão mais tijolos!”. E coloca a seguir o tijolo no outro prato da balança mandando os pesinhos de Ramsés para o espaço, levando a plateia à gargalhada. Nesta hora eu disse: “Este é o cara!” Uma resposta curta, grossa e concisa, com um argumento forte e incontestável. Fruto da grande qualidade da velha Hollywood de ter diálogos afiados e cheios de nuances - fosse para ganhar a audiência, fosse para driblar a censura da época. Naquela época se cristalizou em mim o conceito do herói. E seu nome era Charlton Heston.
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O "Sargento Heston". Daria um bom nome de personagem de quadrinhos... |
Nascido com o nome John Charles Carter em 4 de outubro de 1923 (ele é do signo de Libra) no estado de Illinois, ele adotou 0 sobrenome de seu padrasto, Chester Heston, quando sua família se mudou para um subúrbio de Chicago. Seus pais haviam se divorciado quando ele tinha apenas dez anos.
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"O Maior Espetáculo da Terra". Heston, o gerente do circo, e James Stewart, o palhaço |
“Mordido” pela mosca do teatro desde cedo, ele ganhou uma bolsa de estudos em dramaturgia para cursar a universidade. Interrompeu o curso superior em 1944, quando se alistou na Força Aérea do Exército, servindo como operador de rádio de bombardeiros B-25 nas Ilhas Aleutas durante a 2ª Guerra Mundial.
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"O Segredo dos Incas": Indiana Heston |
Chegou à patente de sargento e, pouco depois, se casou com Lydia Clarke, colega de faculdade e sua companheira por toda a vida - fato que, numa Hollywood mundana e luxuriosa, pesaria em sua escolha para papéis de grande integridade e caráter (isto sim é um HERÓI!!!)
Finda a guerra, o casal foi para Nova York onde ele começou a sua carreira de ator de teatro em papéis históricos, como Macbeth e Marco Antonio (ambos em peças de Shakespeare), entre outros. Nesta época já usava o prenome Charlton. Após muitas pontas no cinema, fez o seu primeiro papel principal no film noir Dark City (1950, de William Dieterle), onde começou a ser notado.
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Pesos pesados: Anthony Quinn dirige Heston, que divide a tela com Brynner em "O Corsário". |
Em 1952 participou do filme de Cecil B. DeMille O Maior Espetáculo da Terra, superprodução ambientada no mundo do circo, onde interpretava o dono do picadeiro. Sua estrela ascendeu ao olimpo dos superstars, pois sua figura alta (1,89 m), musculosa sem excessos e de porte ereto, se mostrou ideal para figuras de caráter heroico. Seguiu-se no mesmo ano Trágica Emboscada, western de George E. Marshall, e A Fúria do Desejo, melodrama de King Vidor.
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"A Marca da Maldade": Inicialmente Welles apenas atuaria, mas para agradar a Heston, que admirava o diretor, os produtores o contrataram para dirigir o filme. |
Em 1953 foi a vez de O Destino me Persegue, de Henry Levin, drama histórico onde interpreta Andrew Jackson, o sétimo presidente dos EUA, e os westerns As Aventuras de Buffallo Bill (de Jerry Hopper) e O Último Guerreiro (de Charles Marquis Warren), além de Ambição que Mata, melodrama hospitalar de Irving Rapper.
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"Ben-Hur": Como escravo nas galés por três anos, Judá comeu o pão que Messala amassou |
Em 1954 fez A Selva Nua, de Byron Haskin, com produção de George Pal, onde faz um fazendeiro no Amazonas que enfrenta uma praga de formigas assassinas, e O Segredo dos Incas (de Jerry Hoper), no qual viveu Harry Steele, um aventureiro cujo visual serviu de base para mais de 90% da composição de Indiana Jones (só faltou o chicote). Em 1955 protagonizou, com Fred Mac Murray, Aventura Sangrenta, um proto-western de Rudolph Maté sobre os históricos exploradores da América Lewis e Clark. No mesmo ano esteve em A Guerra Íntima do Major Benson, comédia romântica de Jerry Hopper, e Lucy Galante, de Robert Parrish. Mas só no ano seguinte surgiria o seu primeiro personagem “peso-pesado” incontestável...
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"Ben-Hur": Heston,Stephen Boyd e o diretor William Wyler no maior cenário já construído na época, em Cinecitá |
Como o messiânico Moisés em Os Dez Mandamentos, de Cecil B.DeMille, Heston tinha como antagonista nada mais, nada menos do que Yul Brynner, no papel do Faraó Ramsés. A sua fonte de inspiração visual foi a estátua de Michelangelo. Curiosamente, numa entrevista, lhe perguntaram se, caso morresse e encontrasse o verdadeiro Moisés, o que diria e ele. Com humildade, respondeu: “Me perdoe!” . Depois deste filme sua carreira deslancha em produções e superproduções variadas.
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"Ben-Hur": Diálogos sutis e cenas de potencial duplo sentido, aliadas à intenção dada pela interpretação de Stephen Boyd |
Seguiram-se então dois westerns: Trindade Violenta (1957, de Rudolph Maté), e Da Terra Nascem os Homens (1958, de John Waters e William Wyler), onde contracenou com Gregory Peck, cuja amizade duraria toda a vida, e teve seu primeiro contato com Wyler, cuja parceria, lhe daria um Oscar. Depois atuou em O Corsário (1958, de Anthony Quinn), onde contracena de novo com Yul Brynner e, pela segunda vez, interpreta o presidente Andrew Jackson.
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"Ben-Hur": O feliz ganhador do Oscar. |
Ainda no mesmo ano, participou do clássico de Orson Welles A Marca da Maldade, um policial noir com usos arrojados de câmera e de edição. Heston brigou em vão com o estúdio para que fosse concluído de acordo com a visão do diretor, que ele admirava. Mesmo propondo a redução do seu cachê, o estúdio dispensou Welles e fez o corte final como achava que o filme devia ser.
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El Cid: como resistir a beleza de Sophia Loren? |
Ben-Hur (1959), dirigido por William Wyler, foi a segunda adaptação para cinema da obra de Lew Wallace (e a sua melhor!) e teve um orçamento colossal para sua época, com um histórico de produção dos mais complexos. Como clímax do filme temos a sequência da corrida de bigas com a participação de Judá Ben-Hur (Heston) e seu nêmesis Messala (Stephen Boyd). Só esta cena (rodada nos estúdios Cinecittá,, na Itália) usou 8 mil figurantes e 80 cavalos. Os valores de produção eram visíveis em sua fotografia e direção de arte, embalada pela trilha musical de Miklos Rozsa. Heston, na ocasião de sua indicação por este filme ao Oscar de Melhor Ator, disse: “Se desta vez eu não conseguir, é melhor desistir!”. Conseguiu, e o filme, que rendeu em dinheiro da época 80 milhões de dólares, foi durante muitos anos o único que ganhou tantas estatuetas na história do Oscar (11 no total), só sendo igualado (nunca superado) em 1997 por (11 no total), só sendo igualado (nunca superado) em 1997 por Titanic, de James Cameron, e em 2003 por O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, de Peter Jackson.
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"55 dias em Pequim": Drama colonial |
Duas curiosidades sobre o filme: Em primeiro lugar, quem perdeu o papel para Heston foi o seu amigo Kirk Douglas, judeu de verdade na vida real. Por ter perdido este trabalho, Douglas jurou que iria produzir o seu próprio épico histórico. E assim tivemos Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, o primeiro épico humanista, com roteiro do cassado pelo Macarthismo Dalton Trumbo. O filme se tornou outro campeão absoluto do gênero, apesar de seu viés político com tintas suaves de socialismo. O autor do livro, de forte inclinação socialista, era o comunista Howard Fast. Em várias sequências, Kubrick baseou a edição do filme nas teorias do cineasta soviético Serguei Einsenstein.
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"Agonia e Êxtase": Michelângelo (Heston) e Júlio II (Rex Harryson) unidos na paz e na guerra para marcar um lugar na eternidade... |
A outra curiosidade foi a contribuição do escritor Gore Vidal no roteiro. Na década de 80 ele confessou que via a rixa entre Judá e Messala como produto de uma paixão de cunho homossexual não correspondida. Como o conservador Heston não aceitaria esta motivação, foram construídos diálogos passíveis de duplo sentido. esse tom era acentuado pela interpretação de Messala feita por Stephen Boyd, que sabia deste subtexto. Heston negou que soubesse dessa intenção até o fim de seus dias mas, olhando as sequências entre os dois no início do filme, fica claro o quanto o pobre Charlton foi enganado.
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"O Senhor da Guerra": Antes de Game of Thrones, houve Heston... |
Após Ben-Hur, seguiram-se outros campeões de público e crítica, firmando a sua persona de “herói espartano de direita” - se bem que eu não sei se existe “herói espartano esquerda” ou se todo “herói espartano”, tem algum posicionamento verdadeiramente definido. Herói é Herói. Ele faz as coisas que ele tem de fazer e depois a sociedade vai rotulá-lo ou simplesmente dizer que “ele era um homem de seu tempo”. Ou talvez que “ele agiu de acordo com o que aquele contexto exigia”. Assim é mais fácil e ninguém se compromete...
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"E o Bravo ficou Só": Com Tom Gries. Heston começou a refletir sobre a velhice e a decadência |
Em Em El Cid (1961, de Anthony Mann), superprodução de Samuel Bronston, ele faz o lendário Rodrigo Diaz de Bivar, herói medieval unificador da Espanha diante do assédio dos mouros no final do século XI. Seu par romântico era apenas a lindíssima Sophia Loren. Com produção esmeradíssima, filmado nas paisagens da Espanha e em castelos históricos com milhares de figurantes e a esmerada trilha de Miklos Rozsa (ele de novo!), o filme foi um estupendo campeão de público e crítica. Como esquecer frases como a que ele diz diante de um grupo de guerreiros mouros após um deles afirmar que ele estava sozinho contra 13 adversários?
“O que fazem é contra a Lei de Deus! Fossem vocês 13 vezes 13, eu não estaria sozinho!”
(E aí ele parte para o combate contra os 13 e os derrota).
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Como
Marco Antônio em "Julius Caesar" (1970) declamando o famoso discurso
que virou a população romana contra Brutus e os conspiradores que
mataram César |
1962 foi um ano tranquilo, pois fez apenas a comédia O Pombo que Conquistou Roma, de Melville Shavelson, de sucesso moderado. Em 1963 foi a vez de Os Tiranos também Amam, drama histórico e racial de Guy Green, e o épico colonial 55 Dias em Pequim, de Nicholas Ray, com Ava Garner e David Niven, entre outros.
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"A Sombra das Pirâmides": Melhor como ator do que como diretor... |
Em 1965 fez quatro filmes de sucesso variado. Interpretou o profeta João Batista em A Maior História de Todos os Tempos, de George Stevens, um pretensioso épico bíblico que não “bombou” junto ao público. Outro desses filmes foi Juramento de Vingança, um western de Sam Peckimpah. Heston chegou a devolver o seu cachê do filme aos produtores para que Peckimpah pudesse refilmar cenas cujas mudanças considerava essenciais. Ele brilhou em Agonia e Êxtase, de Carol Reed, onde interpreta o artista renascentista Michelângelo em sua batalha de egos com o Papa Júlio II (Rex Harrison) durante a execução do afresco da Capela Sistina ( A Criação do Mundo, considerada a maior obra de arte do 2° milênio). Heston se preparou para o papel matriculando-se num curso de pintura, pois, segundo ele, “tinha que saber segurar e usar um pincel como um pincel e não como uma vassoura”. Um bom argumento...
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Como Richelieu nos filmes dos "Três Mosqueteiros": Um bom vilão, elegante e cerebral. Digno de um Lord Negro de Sith... |
Ainda em 1965 fez Ainda em 1965 fez O Senhor da Guerra, de Franklin J. Schaffner, diretor com quem ele voltaria a trabalhar no primeiro longa da franquia Planeta dos Macacos. O filme é uma aventura medieval dramática, com visual bem realista para os padrões da época.
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"Midway": Elenco estelar e barulheira de sensurround em um conflito de pai (Heston) e filho (Edward Albert) |
No ano seguinte (1966) atuou em No ano seguinte (1966) atuou em Khartoum, de Basil Dearden - um épico histórico-colonial em que contracenava com Laurence Olivier - e esteve no filme de guerra Os Heróis Não se Entregam, de Ralph Nelson, onde faz um maestro obrigado a reger um concerto para os soldados alemães durante a 2ª Guerra Mundial.
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"O Planeta dos Macacos": O mais impactante beijo interracial já visto até então. Tenta fazer melhor James T. Kirk! |
Em E o Bravo ficou Só (1968, de Tom Gries), temos um western intimista e melancólico em que Heston interpreta um cowboy de meia-idade, encarando o começo de seu envelhecimento. Aparentemente o ator e o diretor se entrosaram muito bem, pois voltaram a trabalhar juntos nos dois anos seguintes. Gries o dirigiu novamente em Number One (1969), onde atua como um quaterback do futebol americano em fim de carreira, e no drama O Senhor das Ilhas (1970), passado no Havaí do século XIX.
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"A Última Esperança da Terra": Poucos morreram tão bem por nós como ele |
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"No Mundo de 2020": O policial Thorne (Heston) e o escriturário Sol (Edward G.Robinson). Um lembra de como era o mundo, o outro, só o aceita e vive nele - até descobrir a terrível verdade... |
Haveria ainda Os Três Mosqueteiros (1973) e sua continuação A Vingança de Milady (1974) de Richard Lester, onde fazia o vilanesco Cardeal de Richelieu no meio de um elenco estelar. Na época acusou-se o produtor Alexander Salkind de má-fé, pois combinara com os atores que faria um filme de cerca de quatro horas, mas que sua ideia seria sempre editar tudo em dois filmes. Teria agido assim para não ter de pagar cachês maiores aos envolvidos.
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"Terremoto": O homem comum certo no lugar certo |
1976 foi a vez de Midway, de Jack Smight, uma aventura de guerra com vasto elenco filmada em sensurround (sistema de som que prometia envolver o público, mas só fazia uma barulheira ensurdecedora...), e Os Últimos Machões, de Andrew V. McLagen - um western com James Coburn. A seguir, tivemos O Príncipe e o Mendigo (1977, de Richard Fleischer), baseado na obra de Mark Twain, onde faz o obeso rei Henrique VIII - um desafio para o atlético Heston.
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Heston em "Aeroporto 1975": ícone também do cinema-catástrofe |
Apogeu e Decadência
Durante a virada dos anos 60 para os 70 - com a contracultura e o movimento Hippie em alta - começa a ter destaque um outro perfil de herói, mais jovem e menos espartano e infalível. O já cinquentão Heston foi se reinventando em outros gêneros fora dos grandes épicos históricos e bíblicos que lhe garantiram sobrevida e alguns de seus últimos sucessos de público e de crítica.
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"S.O.S. Submarino Nuclear": O gênero já dava sinais de esgotamento. |
A ficção científica lhe rendeu papéis memoráveis, como o do Coronel George Taylor em O Planeta dos Macacos (1968, de Franklin J. Schaffner) - filme que só saiu do papel por causa de seu empenho pessoal. Heston pagou do próprio bolso o desenvolvimento da técnica de maquiagem especial criada por John Chambers, mostrando que o projeto era viável. O personagem retorna em sua continuação De Volta ao Planeta dos Macacos (1970, de Ted Post) - veja mais sobre estes filmes aqui. Ainda no gênero,ele viveu o cientista Robert Neville em A Última Esperança da Terra (1971, de Boris Sagal), baseado na novela Eu sou a Lenda, de Richard Matheson (refilmada por Francis Lawrence em 2007, com Will Smith).
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Aventuras na Ilha do Tesouro: Long Jon Silver mediano |
Marcante também foi o inspetor Robert Thorne, protagonista de No Mundo de 2020 (1972, de Richard Fleischer), quando descobre que a “ração” que alimenta a população é carne humana reciclada (atual, não?).
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"Tombstone-A Justiça está Chegando": boa participação |
Com estes três protagonistas de filmes Sci-Fi, se cristalizou para mim o perfil do que eu chamo de Herói Hestoniano: um indivíduo não muito crédulo, até cínico quanto ao mundo a sua volta, mas capaz de fazer sacrifícios imensos pelo bem maior no momento em que a sua índole não aceita mais a passividade e exige um enfrentamento dos acontecimentos.
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"True Lies": Como "Nick Fury" antes de David Hasselhoff e Samuel L.Jackson |
Tal perfil de personagens do Heston se manteve de forma mais sutil nos filmes-catástrofe em que ele atuou, como Voo 502 em Perigo (1972, de John Guillermin), Terremoto (1974, de Mark Robson) - com sensurround (olha ele aí de novo...) -, Aeroporto 1975 (1975, de Jack Smight), Pânico na Multidão (1976, de Larry Peerce) e S.O.S. Submarino Nuclear (1978, de David Greene). Trabalhos eficientes, mas que não lhe exigiram muito em termos de construção de personagens. Ainda assim por trabalhar em diversos filmes do gênero, Heston é visto por muitos como ator de filmes-catástrofes.
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"Hamlet": O patriarca de uma trupe de atores itinerantes. Participação digna. |
Um dado curioso é que ele, o maior ator do gênero cinema-catástrofe/ ficção-científica, nunca trabalhou com Irwin Allen, o cineasta/produtor mais representativo do gênero naquela época. Fica a interrogação: o que poderiam ter feito se tivessem trabalhado juntos? Lembro que um crítico havia escrito que “se Charlton Heston tivesse sido o Presidente americano de Independence Day (1996, de Roland Emmerich), os E.T.s nem teriam chegado na Terra!!!
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As histórias narradas por ele... que aqui eram dubladas! |
Eu soube que ele chegou a ser cotado para viver o papel de Jor-El nas primeiras escalações de elenco para Superman: O Filme (1978, de Richard Donner). Não desmerecendo o trabalho de Marlon Brando, que foi mítico, creio que um Jor-El de Heston, devido à sua estampa, seria talvez mais conceitualmente próximo aos quadrinhos de onde surgiu o personagem: heróico e espartano.
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As faces do Axioma Heston: Antes, na marcha pelos direitos civis, com Burt Lancaster e Harry Belafonte... |
A partir da década de 80 os papéis principais minguaram, começando o seu declínio. Temos Os Homens da Montanha (1980, de Richard Lang) e Reencarnação (1980, de Mike Newell) - terror baseado em obra de Bram Stocker (o criador do vampiro Drácula) - e A Montanha do Ouro (1982), com uma jovem Kim Basinger, dirigido por ele mesmo, em parceria com seu filho Fraser C. Heston.
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... e depois, como presidente da National Rifle Association. Ele segura o rifle como se fosse o cajado de Moisés |
O filho ainda o dirigiria em mais dois filmes: Aventuras na Ilha do Tesouro (1990), onde fez um pirata Long John Silver mediano ao lado de um jovem Christian Bale, e no telefilme Sherlock Holmes: O Mistério do Forte Vermelho (1991), considerada a pior encarnação do detetive de Arthur Conan Doyle - o que prova que ninguém é perfeito, ainda mais com uma carreira tão vasta.
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Seu último filme, como um dos maiores criminosos de guerra da história. |
Sobraram-lhe então participações especiais em filmes, das quais destaco, entre tantas, o “ator de verdade” de Quanto mais Idiota melhor 2 (1993, de Stephen Surjik) , disponível no You Tube (https://www.youtube.com/watch?v=6eWsFFQP0gA), o fazendeiro de Tombstone – A Justiça está Chegando (1993, de George Pan Cosmatos), western que recria de forma épica e mítica as histórias de Wyatt Earp, Doc Hollyday e o tiroteio do OK. Corral. Sua participação é pequena mas perfeita.
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Como um cientista no episódio "Abalon" de "Sequest 2032" |
Já em Já em True Lies (1994), o diretor James Cameron o escalou para o papel de Spencer Trilby (paródia do espião Nick Fury, dos quadrinhos da Marvel, personagem que, quando foi criado nos anos 60, era caucasiano), porque precisava de um chefe com moral para dar esporro em Arnold Schwarzenegger e ninguém duvidar de que ele seria capaz disso.
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Com Met Leblanc num episódio de "Friends" |
Outras boas participações no cinema foram como o editor de A Beira da Loucura (1995, de John Carpenter) e o velho ator em Hamlet (1996, de Kenneth Branagh). E também temos suas participações em séries de TV - coisa que fazia desde a década de 50, garantindo-lhe desde cedo enorme popularidade. Destas, destaco as de Seaquest DSV (1993) e Friends (1995), além de trabalhos como narrador, em que se tornou uma das vozes mais requisitadas, como em Hércules (1997,de Ron Clements e John Musker) a animação da Disney, o filme-catástrofe Armaggedon (1998, de Michael Bay) e a voz do chefe do serviço secreto canino em Como Cães e Gatos (2001, de Laurence Guterman).
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"O Planeta dos Macacos" (2000), de Tim Burton. Heston vira a casaca e expressa a sua opinião sobre os seres humanos: "MALDITOS! MALDITOS!!!" |
Para mim, ele sempre foi o pai do conceito de herói contemporâneo, pois conjugava a imperfeição humana com a aspiração de valores maiores e eternos. Estoico e capaz de fazer o que tinha de fazer, estando ou não de acordo com a sociedade e o status quo, sem ter medo de ir de encontro ao confronto, seja em qual arena.
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Como o "ator de verdade" em "Quanto Mais Idiota Melhor 2" |
Lembro que no início dos anos 90, lançaram por aqui uma série em fitas de vídeo chamadas “Histórias da Bíblia, narradas por Charlton Heston”, mas, curiosamente, eram dubladas em português, deixando o título, no mínimo, curioso. Se fosse lançada hoje em DVD ou Blue-Ray, teríamos a opção de áudio original, e aí sim valeria o “narradas por Charlton Heston”...
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Derrapada: "Sherlock Holmes: O Mistério do Forte Vermelho" (1991) foi considerado o pior de todos od Holmes já feitos |
Penso que, se George Lucas não tivesse demorado tanto e retomasse não tivesse demorado tanto e retomasse Star Wars ainda na virada da década de 80 para 90, o velho Charlton com certeza teria sido o Mace Windu ou o Conde Doku/ Dokan. Ele teria tudo para ter sido um Jedi pleno, ou um Sith...
Em "Saturday Night Live": Monólogo acorrentado por gorilas |
Polêmicas Ideológicas
Seu posicionamento político migrou de democrata liberal para republicano conservador, tendo se tornado presidente da National Rifle Association (NRA), o que provocou muita polêmica como quando disse: “Só tirarão as minhas armas de minhas mãos frias e mortas!!!” . Frase que poderia estar em um de seus filmes.
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Como Deus em "Quase um Anjo" (1990) |
Sua posição como representante do NRA foi confrontada, quando ele já estava doente, por Michael Moore em seu documentário Tiros em Columbine (2002). Tal fato deixou muitos astros revoltados, mesmo os que discordavam das posições políticas de Heston. Isto teria feito com que Clint Eastwood, num pronunciamento quando ainda prefeito da cidade de Carmel (em "tom de piada") se referir à Michael Moore, de forma incisiva (ainda que bem humorada): “Se você invadir a minha casa, eu te mato!”. Não sei se as palavras foram exatamente essas, mas Eastwood não me parece ser alguém que se deva ignorar...
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Em "A Irmandade" (2001) com Jean-Claude Vandamme |
Heston ainda conseguiu fazer em 2003 o seu último filme, parcialmente rodado no Brasil: Joseph Menguele, My Father - Rua Alguém 555, dirigido por Egidio Eronico, em que faz o médico nazista foragido.
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O embate de Heston com Michael Moore em "Tiros em Columbine" foi polêmico |
O casal Heston fez uma de suas últimas aparições em público por ocasião da comemoração dos 90 anos da Paramount, mesmo lutando contra o câncer que atingiu a ambos ao mesmo tempo. Uma vez superado a doença, ele veio a público anunciar estar com Alzheimer, e que estava se retirando da vida pública. Disse: “Não pretendo mais falar com jornalistas porque daqui a pouco tempo não vou saber quem vocês são e nem quem eu sou.” E assim foi lutar a sua última batalha, com o estoicismo que sempre lhe foi característico.
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Modelo da cabeça de Heston, feita (quando ainda vivo) a partir de uma moldagem para efeitos de maquiagem. Disponível no Ebay |
Talvez isso definisse o Herói Hestoniano: não um autêntico direitista, mas um anarquista de direita, tal como os personagens do escritor de Ficção Científica Robert. A. Heinlein (autor de Tropas Estelares), como o seu Col. Novak de Revolta em 2100 ou o “maior do que a vida” Lazarus Long, o personagem mais recorrente do autor, presente em livros como Os Filhos de Matusalém e Amor Sem Limites. Se ele os tivesse vivido nas telas, fosse no cinema fosse na TV, provavelmente teria se saído muito bem.
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Piada divertida mas infame: Em "Uma Família da Pesada" Peter Griffin chegou a arrancar a arma das "mãos frias e mortas" de Heston |
Morreu em 5 de abril de 2008 aos 84 anos, tendo sido homenageado em seu funeral por estrelas da velha e atual Hollywood como Olivia de Havilland, Arnold Schwarzenegger, Pat Boone, Tom Seleck, Oliver Stone, Christian Bale, entre outros. Muitos deles discordantes de suas posições políticas, mas, antes de tudo, juntos para homenagear um amigo de trabalho e de vida. Prova de que podemos conviver com a divergência, pois o oposto não precisa ser necessariamente o antagonista, o "inimigo".
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"2012" (2009): Na falta de um Heston autêntico, use um genérico (aqui, Stephen McHattie) como o Camndante Michaels.. |
No ano seguinte em seu megablockbuster-catástrofe 2012 (2009) Roland Emmerich sutilmente o homenageou no personagem Comandante Michaels, interpretado por Stephen McHattie. Se você reparar no layout do personagem, ele seria o tipo de papel que Heston faria (ainda mais num filme desse gênero). Da mesma forma o Hollis Mason de Watchmen (2009, de Zach Snyder), também interpretado por McHattie, possui um quê de “Hestoniano”.
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Túmulo onde repousam Charlton e sua esposa Lydya Clarke Heston desde dezembro de 2020 na Igreja Episcopal St. Matthews em Pacific Palisades, California |
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Heston e Lydia em 1963. Ele faleceu aos 84 anos, ela aos 95. foram casados por 64 anos |
Eu, pessoalmente ainda torço para que nesta nova e atual cinesérie de O Planeta Macacos - que terminou o arco do personagem César, mas ainda provavelmente dará novos filmes - possamos vir a ter um George Taylor digital feito com CGI e técnica de captura de movimentos, tal qual o Grand Moff Tarkim visto no filme Rogue One: Uma História Star Wars (2016, de Gareth Edwards). Assim como ocorreu na versão de Tim Burton de 2000 da franquia símia - onde Heston fez uma participação não creditada como Zaius, o pai moribundo de Gen. Thade (Tim Rooth) - esta recriação do personagem seria uma senhora homenagem, unindo o passado e o futuro, e, ao mesmo tempo, geraria uma polêmica, coisa da qual que ele nunca fugiu.
Mais Hestoniano que isso, impossível...
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"-Até a próxima amigos! Vejo vocês no Corujão ou no Telecine Classic Movie!" |
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