segunda-feira, 18 de março de 2019

Dupla improvável - Crítica - Filmes: Visages Villages (2017)

 


Imagens, lembranças, sentimentos e reflexões

por Alexandre César

(Originalmente postado em 21 / 11/ 2017)


 Agnes Varda, JR e o retrato fugaz da vida e da memória

 


Imagine dois personagens cujos visuais distintos serviriam para criar uma dupla do tipo Pink & Cérebro, Ren & Stimpy ou Harold & Maude, mas sem qualquer dose de morbidez e sim com um apego extraordinário à vida. Imagine que os dois compartilham uma paixão em comum, apesar de serem de diferentes manifestações artísticas.

JR & Agnes Varda: dupla improvável

Ela, a cineasta belga Agnes Varda, figura importante, mas pouco lembrada, do cinema francês moderno. Baixinha, robusta e de cabelo bicolor. De longa filmografia, sempre em movimento e com grande fôlego para uma senhora de 89 anos. Ele, o fotógrafo e muralista que assina com o pseudônimo de JR, está acostumado a fazer obras de colagem com imagens enormes, estampando ou envelopando prédios e estruturas industriais. Alto e magro, com 34 anos, sempre de óculos escuros e chapéu.

 

O objetivo do trabalho era transformar elementos cotidianos em obras de arte, incorporados à sua rotina diária valorizando pessoas e objetos comuns

A abertura do filme, feita em animação, já deixa claro o quanto essa dupla insólita tem de destoante e, ao mesmo tempo, em comum. Ambos compartilhando a paixão pela imagem e questionando como essas imagens são difundidas e como se relacionam com o mundo das pessoas reais por elas retratadas


Empoderamento: Mulheres de estivadores são homenageadas, pois ajudaram numa negociação importante da categoria

 

JR propôs a Agnes que atravessasse com ele o interior da França e fossem criando “galerias fotográficas” ao ar livre pelo caminho, tendo como matéria-prima as pessoas que participariam de encontros programados ou aleatórios. Ele iria com ela munido da sua “van fotográfica” (uma van adesivada como se fosse uma câmera gigante), que possui um estúdio fotográfico e uma impressora que lhe permite imprimir em papel de outdoor imagens imensas das pessoas que fotografa para colar nas paredes. E, claro, filmassem toda a jornada. Desta proposta surgiu o documentário Visages Villages (2017), que ambos dirigiram. A obra ganhou o prêmio Golden Eye de Melhor Documentário no Festival de Cannes deste ano.


Agnes diante de um trabalho de JR com uma imagem sua da juventude

A dupla faz a festa, junto com os participantes do projeto, alçados da condição de anônimos para a de protagonistas das obras retratadas. Como quando uma garçonete, depois de posar para um desses murais, tem sua imagem viralizada nas redes sociais e passa a ser a mais famosa habitante da cidade. A estrutura do documentário lembra um road movie em que a viagem é um elemento de transformação e de auto-conhecimento na qual ambos vão se descobrindo, concordando e divergindo sobre questões da vida e do mundo.

 

É tocante a cena em que Agnes relaxa na praia após uma cirurgia

Em alguns momentos, o filme assume um tom singelo e tocante, como quando eles encontram numa cidadezinha um bairro deserto onde moravam mineiros de carvão, trabalhadores de uma indústria que não existia mais ali. Ao realizar uma obra com a última moradora do local, homenageiam esta mulher representante de uma era e um mundo, agora alienígena para a atual geração Instagram.

 

Com este objetivo, pessoas simples se tornam estrelas de suas comunidades

Em outro momento, ao abordar duas fazendas de criação de cabras leiteiras, percebemos uma reflexão sobre a monetarização que o capitalismo embute nos mais diversos aspectos da vida, transformando-a em função de seus interesses. Em uma das fazendas, a mais industrializada, as cabras tem os seus chifres queimados quando são filhotes para inibir seu crescimento. Fazem isso para evitar que se machuquem e aumentem sua produtividade. A outra, mais artesanal, não usa máquinas para a ordenha e não removem os chifres das cabras, pois, segundo a dona, “se as cabras têm chifres, é porque tem a sua razão de ser e não deveríamos querer mudar a sua natureza”.

 

JR: artista trouxe seu projeto de fotos com pessoas comuns para o Rio de Janeiro durante as Olimpíadas


Há também momentos lúdicos e reflexivos, como quando vemos mulheres de estivadores retratadas em contêineres armazenados no porto onde seus maridos trabalham, servindo como marco da luta feminina por igualdade e da necessidade da união das categorias profissionais como cruciais para garantir direitos básicos e fundamentais. Os tipos retratados ao longo do documentário são bem variados, indo de um morador de rua que faz trabalhos com sucata, até um fazendeiro que cuida sozinho de seus 800 hectares graças à tecnologia de seus equipamentos. 

 

A "Mistery Machine " da dupla, ou o "JR mobile"

Durante a trajetória também conhecemos mais de nossos protagonistas. Como o apreço de JR por pessoas idosas, que vemos durante a visita que fazem a avó dele de 100 anos, e as inseguranças de Agnes, que fica magoada com seu amigo, o cineasta Jean-Luc Godard, após um desencontro e uma charada que ele deixa para ela. São momentos singelos e reais de pessoas simples e comuns, embora criadores artísticos e formadores de opinião.

A simples prática de  dar visibilidade ao cotidiano, valoriza aquilo que em outras circunstâncias permaneceria invisível e não percebido

 

Ao final (?) dessa jornada de uma dupla improvável onde o lúdico, o documental e o confessional se mesclam, vemos uma amizade forjada na cumplicidade e no amor à vida e o seu fluir, que basicamente se manifesta nos pequenos fatos do cotidiano, que nos dão a dimensão do que é ser vivo e humano.


Os diretores em ação diante da "van fotográfica"


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