O mito do "homem e sua arma" como definidor do protagonista na cultura de massas
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Colecionismo: As armas como ítem de de decoração, dão um ar de austeridade elegante, desde que não sejam postas em ação... |
Armas - sejam elas espadas, punhais, facas, revólveres, pistolas, rifles e afins - são belos itens de decoração, dando às paredes da sala em que se encontram um ar de elegância, tradição e sobriedade. O problema é que elas são feitas para matar.
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"Aquele que retirar esta espada desta pedra é por direito rei de toda a Inglaterra." |
A maioria dos heróis míticos costuma portar armas que, como extensão de seus braços, fazem valer seus valores à força. Em geral esse poder é verdadeiramente demonstrado quando elas estão na posse de seus reais portadores, que as usam com a devida destreza ou, no caso da arma ser mágica, na posse de quem tenha o dom que permita seu uso como se deve. Vide, por exemplo, o Martelo de Thor, que somente os verdadeiramente dignos podem manusear, ou a espada cravada na rocha, que só o escolhido para ser o Rei da Inglaterra poderia retirar.
Mitologia: As narrativas do "western" migraram da literatura para o cinema, TV, quadrinhos e videogames, dando continuidade às narrativas míticas
As armas de fogo curtas - pistolas e revólveres - têm uma mística própria, pois seu uso independe da força física de seus usuários. Um indivíduo franzino pode com um revólver derrubar um oponente muito maior e mais forte do que ele, de forma letal e definitiva, algo menos provável de ocorrer no combate corpo a corpo. Foi este tipo de ferramenta, conferindo a um homem comum um poder destrutivo tão intenso, que deu enorme vantagem às potências coloniais em sua trilha de pilhagem sobre a parte do mundo que desconhecia as armas de fogo.
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Conquistadores espanhóis derrubaram o Império Asteca com armas de fogo |
Durante a fase da consolidação dos Estados Unidos como nação, tornou-se popular (agregando valores mais antigos de outros mitos) um personagem único: o Pistoleiro, indivíduo normalmente solitário, errante por natureza, que está em busca de redenção pessoal por um passado imprudente ou em uma jornada de vingança contra as forças da injustiça e opressão. Eventualmente ele pode apenas querer estar sozinho, procurando não se envolver com problemas que possam existir em sua volta.
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John Wayne encarnou no cinema o mito do cowboy como ninguém |
Após o Pistoleiro restaurar a Justiça no local costuma haver três finais possíveis:
A) Caso ele morra em decorrência do conflito, sua jornada termina tendo purgado seus pecados com este sacrifício supremo, podendo servir de inspiração a algum jovem que assumiria o seu legado;
B) Ele vai embora sem olhar para trás, pois o seu trabalho ali acabou e ele deve continuar a sua jornada pessoal. Ocasionalmente alguém poderá segui-lo: um jovem órfão, com quem desenvolveu uma relação paternal, ou uma companheira que decide dividir sua vida com ele e, um dia (quem sabe?), encontrar um lugar para se estabelecer;
C) Ele se estabelece no lugar como o protetor daquela comunidade, acreditando que a sua busca terminou. Acaba se tornando um pilar dos valores comunitários (lei & ordem). Na maioria das vezes esta opção ocorre por ter encontrado uma companheira entre os cidadãos do lugar.
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Mantra motivacional: Roland Deschain (Idris Elba), no filme "A Torre Negra" (2017) |
Porém é preciso ter em mente que, apesar do poder que a arma de fogo confere ao indivíduo, isso não é o bastante. O fato de poder ser manuseada por qualquer um lhe dá uma falsa, porém persistente, aura divina, como se aquele que portasse uma delas se tornasse automaticamente invencível. Para ser um herói mítico de fato, o indivíduo deverá ter algo que o diferencie de um mero atirador de balas, de um capanga qualquer. Alguém que seja um mestre no manejo de seu instrumento de batalha e que - ainda que beba, xingue e não seja refinado - obedeça a um código pessoal rígido, que lhe garanta a sobrevivência e lhe permita focar em seu alvo de forma eficiente. Neste contexto um Pistoleiro é um guerreiro semelhante a um Samurai ou um Cavaleiro da Idade Média. O personagem Roland Deschain (Idris Elba), no filme A Torre Negra (de 2017, dirigido por Nikolaj Arcel) e dos livros de Stephen King, é uma boa referência. Ele tem, por exemplo, um mantra que lhe permite focar melhor a sua atenção e sua mira na hora de abater os seus oponentes.
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Jesse James (Brad Pitt) em "O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford" (de 2007, dirigido por Andrew Dominik) |
Falando em filmes, o cinema (e em especial Hollywood), como um dos maiores veículos de cultura de massas do século XX, abraçou esta mitologia como uma fonte de dramas épicos onde, na maioria das vezes, vemos o poder do indivíduo ser o diferencial de mudança na coletividade. Como representante do crescimento e consolidação dos Estados Unidos enquanto potência mundial, o Western por um bom tempo foi o cinema americano por excelência, consagrando diretores como Howard Hanks, George Stevens e John Ford. Transcendendo as fronteiras americanas, eles colocaram o colono, o índio e personagens históricos como Billy "The Kid", Jesse James e Wyatt Earp no mesmo patamar narrativo dos mitos greco-romanos e medievais. Como prova disso, temos o Western-Spaguetti do cinema italiano, a maior releitura desse gênero cinematográfico que, com sua personalidade própria, gerou clássicos igualmente imortais.
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Paul Kersey (Charles
Bronson) de "Desejo de Matar"(1974) que gerou uma franquia... |
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... e Buce Willis na refilmagem de 2018 dirigida por Eli Roth |
Com o questionamento do poder norte-americano nos anos 60, o gênero foi declinando até a sua quase inexistência nos tempos atuais. Apesar disto, a mística do pistoleiro se manteve, migrando para outro gênero de filmes: o Policial, principalmente a partir dos anos 70, quando o temor da violência urbana gerou a transmutação do Pistoleiro no Justiceiro: indivíduo que decide fazer justiça por conta própria. Isso pode ocorrer após uma grande perda pessoal, como ocorreu com Paul Kersey (Charles Bronson), o protagonista de Desejo de Matar (de 1974, dirigido por Michael Winner), ou por não temer o perigo e não se importar com a hierarquia do poder estabelecido – ainda que pertença a ele -, como é o caso do policial "Dirty" Harry Callahan (Clint Eastwood), de Perseguidor Implacável (de 1971, dirigido por Don Siegel). Ambos os filmes geraram franquias cinematográficas de sucesso.
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"Dirty" Harry (Clint Eastwood) |
O Justiceiro age como juiz, juri e executor, desafiando tanto o crime quanto as autoridades. Afinal, o vigilantismo é ilegal (o próprio termo "pistoleiro" hoje em dia é uma definição de criminoso). Muitos personagens deste tipo surgiram e desapareceram desde então, refletindo sua perenidade no imaginário pop. Eles também apresentam releituras em contextos diferenciados, como nos filmes da série Mad Max, personagem criado pelo diretor australiano George Miller, onde o mito do "homem e sua arma" se funde ao mito do "homem e seu carro" (que não deixa de ser uma arma também...) num cenário pós-apocalíptico futurista.
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Mel Gibson em "Mad Max" (1979), o "homem com sua arma (carro)"... |
O Pistoleiro não é um personagem recorrente apenas no cinema. Ele é encontrado com frequência em outros gêneros artísticos, como as Histórias em Quadrinhos. Nos quadrinhos americanos, atualmente os mais conhecidos personagens que encarnam o mito do "homem com a sua arma" são: o Pistoleiro, do Esquadrão Suicida (DC Comics); Johnny Bart (Marvel Comics), o Rawhide Kid (chamado de Billy Blue no Brasil); Jonah Hex (DC Comics), O Santo dos Assassinos, da iconoclástica série Preacher, de Garth Ennis e Steve Dilon (DC Comics); e, é claro, o Justiceiro (Marvel Comics), inspirado justamente nas séries de filmes Desejo de Matar e Dirty Harry, que ganhou o seu próprio seriado pelo serviço de streaming Netflix com duas temporadas. Dos mangás e animes do Japão, podemos citar o cativante caçador de recompensas Spike Spiegel, da série Cowboy Bebop (Sunrise), e Vash, o mais procurado homem da Terra nas histórias de Trigun (Tokuma Shoten).
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Jonah Hex (EUA), Tex Willer (Itália) e Spike Spiegel (Japão): o Bom, o Mau e o Feio - não necessariamente nesta ordem |
Temos ainda grandes representantes nos quadrinhos europeus. Na banda desenhada franco-belga existe Lucky Luke, de Morris e Gosciny, que é o pistoleiro que "atira mais rápido do que a própria sombra"(?). Outro exemplo é Blueberry, um autêntico cavaleiro andante criado por Jean "Moebius" Giraud e Jean-Michel Charlier. Nos fumetti italianos existe o muito popular no Brasil Tex Willer, o Ranger criado por Gian Luigi Bonelli e Aurelio Galleppini, o mais longevo personagem de western dos quadrinhos, sendo publicado ininterruptamente desde 1948.
Os videogames não poderiam ficar de fora do gênero. Tanto que uma de suas vertentes mais populares – o tiro em primeira pessoa (first person shooter) – é claramente baseada na possibilidade do jogador se sentir ele mesmo como um Pistoleiro dos mitos. Entre os jogos mais marcantes, podemos citar Outlaws (1997, da Lucas Arts), onde um ex-delegado volta a usar suas pistolas após sua esposa ser morta e sua filha raptada por dois fora-da-lei a mando de um magnata das ferrovias. O milionário quer usá-lo para convencer os moradores de sua cidade a vender suas terras para ele, que assim poderá lucrar ainda mais com a linha de trem que por lá passará em breve. Não havia como esse enredo se encaixar melhor na mítica do Pistoleiro. Outros jogos de destaque são Red Dead Redemption (2010, da Rockstar Games) e Gun (2005, da Activision), ambos também situados no Velho Oeste. Um bom exemplo de game que trabalha com esta mitologia sem ser do gênero Western é Destiny (2014, da Actvision), um jogo de ficção-científica pós-apocalíptico que se passa 700 anos no futuro, depois que um cataclismo quase acaba com a Humanidade, restando apenas uma cidade povoada na Terra. Para defendê-la de diversas espécies alienígenas hostis, existe apenas um grupo de guardiões com suas armas especiais. Sua continuação, Destiny 2, está saindo agora e parece ser ainda mais envolvente, subindo um degrau a mais no estilo.
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Clint Eastwood foi uma das estrelas do "western spaghetti" |
Mas é no cinema que temos aquela que deve ser a mais humana e, ao mesmo tempo, demolidora visão do mito do "homem e sua arma": o filme Os Imperdoáveis (1992), de Clint Eastwood. O diretor interpreta o protagonista William Munny, um pistoleiro regenerado que sai da aposentadoria por dificuldades financeiras e vai à caça de um prêmio instituído por um grupo de prostitutas pela vida de um cowboy que desfigurou uma delas. O mutilador foi liberado pelo xerife da cidade (Gene Hackman, sensacional) após ele pagar uma mera indenização ao dono do saloon em que as prostitutas atuavam. Aqui vemos a completa demolição do mito, pois não existem duelos épicos como os de Wyatt Earp, seus irmãos e seu amigo Doc Hollyday contra os Claytons em O.K. Corral, nem há personagens maiores do que a vida em sua nobreza ou vilania. Temos aqui apenas velhice, medo, insegurança e álcool como forças motrizes de ações violentas e a mitificação enquanto farsa, pois todos querem apenas viver mais um dia. Como diz Munny a seu jovem e assustado aprendiz: "É uma coisa terrível isso de matar um homem. Você atira e, num segundo você tira tudo dele".
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William Munny (Clint Eastwood) em "Os Imperdoáveis" |
Uma realidade onde sacar mais rápido não garante acertar o alvo, podendo ser apenas um tiro no pé. Uma reflexão que entra em rota de colisão com a frase célebre do clássico de John Ford O Homem que Matou o Facínora (1962): "Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda antecede aos fatos, publique-se a lenda!".