A graça de um "Au-au" ou, de mais de um
por Alexandre César
Chega o melhor remake de uma animação da Disney
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E surge, sem alarde, a melhor adaptação de uma animação da Disney para o live-action... |
Em 1955 Walt Disney nos presenteou com a fábula romântica de Lady, uma cocker spaniel de família que encontra em Vagabundo, um cão de rua de raça não muito definida, a sua outra metade da laranja e na melhor tradição de Lassie e Rin-Tin-Tin deu o protagonismo tão merecido que o melhor amigo do homem merece, apesar da tão pouca lealdade que este costuma receber em retribuição. Na época o desenho dirigido por Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske de forma sutil refletiu choque de classes sociais, jogou lenha na fogueira da rivalidade cães e gatos, nos infames Si e Ão pois na época existia o "perigo amarelo" (ou "vermelho") e em oposição ao simpático Mickey, tornou um rato o flagelo da humanidade (que deve ter tirado o sono de muitas gestantes e mães de primeira viagem na época)e ainda no final nos brindou com o surgimento do simpático Banzé, que brilharia nas histórias em quadrinhos.
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Vagabundo (voz de Justin Theroux) é interpretado por Monte, que tal qual o personagem e vários dos cães do filme, era um cão de rua que foi resgatado...
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Lady (voz de Tessa Thompson) é interpretado por
Rose, uma simpática Cocker Spaniel, com todo o jeito de "cachorra de
madame"... |
Passados 64 anos o estúdio do rato se tornou um império colossal megalômano, estendendo tentáculos corporativos em várias direções procurando a hegemonia no setor do entretenimento, parecendo não ser mais capaz de apostar em histórias simples e cativantes em sua simplicidade, que por isso mesmo se tornaram imortais... ou não?
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A cidade, nunca nomeada, que mescla características das cidades da Nova Inglaterra e de Nova Orleans na primeira década do séc. XX é um trunfo da direção de arte... | |
Sendo lançado diretamente no Disney+ , o sistema de streaming da Disney, por causa da pandemia do coronavírus, e dirgido por Charlie Bean (Lego Ninjago: O Filme) A Dama e o Vagabundo (2019) segue a estratégia do estúdio de fazer versões live action de seus clássicos, mas ao contrário de A Bela e a Fera, O Rei Leão, e Alladim , aqui optou-se por um tom menos grandioso e grandiloquente e, por seu tom despretensioso acabou acertando em cheio no alvo por assumir ser uma história infantil, mas suficientemente cativante para ganhar os adultos que se sentarem ao lado dos pequenos para matarem a saudade dos simpáticos cachorros, cativando automaticamente maior boa parte da audiência, criando rapidamente uma conexão com o espectador.
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Como no desenho original, Darling (Kiersey Clemons) Jim (Thomas Mann) o casal dono de Lady tem pouca profundidade, sendo o foco nos cães... |
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Ancorado no carisma da dupla canina Rose (Lady) e Monte (Vagabundo, sendo ele mesmo um dos vários cachorros resgatados usados na produção) o filme retoma o espírito da animação original estruturando mais a história (cerca de 30 minutos a mais na duração total do filme), oferecendo boas melhorias em relação à obra original, como uma pequena mostra sobre o passado do Vagabundo, justificando na narrativa a sua maneira de ver a vida...

O roteiro de Andrew Bujalski (Resultados) e Kari Granlund (Troubleshooters) tem o mérito de ser assumidamente uma história infantil, funcionando com graça no apelo único na fofura de sua trama e personagens. Lady (voz de Tessa Thompson de Westworld) cadela de raça vida segura confortável, e tranquila conhece Vagabundo (voz de Justin Theroux de Coringa) cão de rua cuja vida de dificuldades, o obriga à todo dia precisar se valer de sua malandragem para conseguir comida (espelhando aqui as diferenças entre classes sociais), mas a vida de Lady entra em crise com a chegada de um bebê na sua família, o casal Darling (Kiersey Clemons de O Mistério da Ilha) e Jim (Thomas Mann de Kong: A Ilha da Caveira) fugindo de casa quando está sob os cuidados da antipática Tia Sarah (Yvette Nicole Brown de Cara Gente Branca), se perdendo nas ruas. Lá, encontra o Vagabundo, e juntos, a dupla se aproxima, e ela (ao lado do crush vira-lata,) descobre a magia da vida livre, mantendo a história original, que transmite bem a magia da história do casal, num singelo romance que ainda funciona.
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Tia Sarah (Yvette Nicole Brown) a antipática "amante de gatos"... |
A direção de Bean tem inclusões certeiras de pequenos elementos que deixam a trama mais fluída e que mantém um bom ritmo, auxiliado pela edição de Melissa Bretherton (A Espiã Que Sabia de Menos) que deixa a narrativa enxuta sem floreios desnecessários mas aproveita bem os momentos singelos como na icônica cena do espaguete com almôndegas (que, obviamente, está presente) quando Tony (F. Murray Abraham, Oscar por Amadeus), o único humano realmente cativante, junto com Joe (Arturo Castro de Silicon Valley) cantam a clássica “Bella Notte”, numa sequência exalando romance, magia e nostalgia,valorizada pela trilha musical de Joseph Trapanese (O Rei do Show) que toca o coração do público, que vai querer cantar junto.
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Lady foge da Tia Sarah e se perde nas ruas numa perigosa aventura... |
Além dos protagonistas, destacam-se os quatro ótimos coadjuvantes: Trusty (voz de Sam Elliott de O Herói), Jock (voz de Ashley Jensen de Trust Me), Bull (voz de Benedict Wong de Vingadores: Guerra Infinita) e Peg (voz de Janelle Monaé de Estrelas Além do Tempo). Monaé ainda, ajudou a compor a ótima adição de “What a Shame”, a nova música dos gatos siameses (que agora não tem uma caracterização estereotipada de chineses), sendo a cantora ainda responsável por reviver “He’s a Tramp”, que se provou perfeita para sua voz, numa das melhores cenas do longa, evocando um tom de blues.
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Vagabundo socorre Lady, com a ajuda de um "amigo" (na animação era um castor, e não uma estátua)... |
Os valores de produção embora tenham um orçamento menor do que as adaptações feitas para o cinema, são mais do que competentes, com o desenho de produção de John Myhre (Oscar por Memórias de uma Gueixa) e a direção de arte de Elliott Glick (Rampage: Destruição Total) criando uma realidade imaginária de uma cidade pacata (nunca nomeada) que remete à Nova Orleans, e os figurinos de Colleen Atwood (Oscar por Alice no País das Maravilhas) e Timothy A. Wonsik (Tomb Raider: A Origem) compõem e caracterizam seus personagens com um pé na realidade de época e outro na recriação de tipos, contribuindo para que certas mudanças funcionem, pois o elenco mais diverso e inclusivo toma certas liberdades poéticas (uma mulher negra casada com um homem branco no início do século XX) que soariam falsas num contexto mais realista, levando em conta o racismo da época, mas neste filme de atmosfera imaginária e utópica não compromete a apreciação do filme, visualmente belo e delicado.
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O homem da carrocinha (Adrian Martinez)é o "vilão" da vez...
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Agora se os astros de quatro patas são cativantes, já os humanos, funcionam melhor quando menos mostrados (como o era na animação), pois a dupla Darling e Jim são unidimensionais, não precisando de mais tempo de tela, e o homem da carrocinha (Adrian Martinez de Sexy por Acidente) é o “vilão” com uma vendeta pessoal contra o Vagabundo, o antagonista tradicional sem profundidade maior do que o seu ódio por cachorros, cosa que não incomoda pois o filme sabe se manter com um frescor juvenil. Temos ainda personagens rasos mas divertidos como o médico parteiro (Ken Jeong da cinesérie Se Beber, Não Case!) e da dona de Jock (Kate Kneeland de Fome de Poder) que pinta quadros com a sua pet como estrela, parodiando clássicos da arte como a Mona Lisa e a Moça com brinco de Pérola.
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Tony (F.Murray Abraham) e Joe (Arturo Castro) os humanos com maior profundidade... |
Apesar de muito bem treinados, houveram sequências em que os cães precisaram ser totalmente animados, pois seria muito perigoso para os bichos, entrando aí os efeitos visuais das empresas BOT VFX, Day For Nite, Framestore, Weta Digital, Moving Picture Company (MPC) que em sintonia com a fotografia de Enrique Chdiak (Bumblebee) além de dar vida e falas aos cães, ajudaram a compor a paisagem, como na bela tomada inicial, fazendo a transição entre a animação e o live-action, colocando o espectador numa romântica e etérea cidade mezzo Nova Inglaterra, mezzo Nova Orleans do início do século XX, dando o tom fantasioso e irreal apropriado para esta fábula de amor entre cães falantes.
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A icônica cena que todos esperavam...
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Ao final vemos que A Dama e o Vagabundo assume ser despretensioso, tendo surgido sem grandes alardes (o que no contexto da Disney surpreende) e que por se assumir como obra infantil, de raiz, carrega uma vitalidade refrescante e satisfatória. Tal qual o remake de O Rei Leão, não precisava existir, mas é superior à releitura da saga de Simba por aparar umas poucas arestas e manter-se singelo, gracioso e fofo... muito fofo.
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Família feliz: Jim, Darling, o bêbê e Lady ( e Vagabundo, que não está na foto) forjam laços duradouros... |