Pegue um personagem da contracultura e adapte-o, torça-o, estique-o e transforme-o até torná-lo algo que possa ser usado pelo mainstream para divulgar os seus valores e pontos de vista. Coisa comum em se tratando de Hollywood,
sendo o caso mas notório o de um certo John Rambo, boina verde,
veterano de guerra, filho de pai alemão e mãe índia, que após passar o
diabo no Vietnã, regressou para os EUA e só conheceu a exclusão e a
hostilidade de seus compatriotas, e tentando achar os últimos amigos
sobreviventes de sua unidade militar.
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No primeiro filme John Rambo (Sylvester Stallone) só mata um, e ainda sim por acidente!
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Ao entrar na cidadezinha de Hope (ou
Esperança, em português, uma ironia nada discreta que é logo jogada na
cara do espectador), sendo forçado até o seu limite por um sherif babaca
de cidadezinha do interior (será que todos eles são assim?), quando põe
para fora toda a sua revolta e vira a cidade ao avesso, e na teimosia
dos dois personagens fica evidenciada a crítica a uma sociedade que
transforma homens em máquinas de matar, mas não sabe o que fazer com
eles findo o seu tempo de validade, relegando-os à marginalidade.
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O segundo filme iniciou a Rambomania e cristalizou a expressão "- Filme maneiro! O cara mata todo mundo!!!"
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Criado pelo escritor David Morrell em seu livro First Blood (1972), John Rambo (cujo nome era uma homenagem ao poeta Rambeau que Morrell admira), foi um hit nos
meios universitários, chamando a atenção dos estúdios, que logo
compraram os direitos de adaptação, levando quase uma década até fechar
um roteiro e achar o intérprete adequado (Jeff Bridges, Robert De Niro,
Michael Douglas, Paul Newman, Nick Nolte, Ryan O'Neal, John Travolta e
Al Pacino, foram cotados, e o próprio Stallone pensou em recusar por ser
“a última opção”). Entre os diretores, as opções foram George Miller (Mad Max), Mike Nichols (A Primeira Noite de Um Homem) e Sydney Pollack (Tootsie) entre outros, ficando com a missão o pouco conhecido Ted Kotcheff.
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"O Rambo Brasileiro": Clássico da infâmia nacional. Preciso falar mais???
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Stallone mudou de ideia, pois não queria ser um “ator de um papel só” (Rocky
Balboa) e acabou mexendo no roteiro de Michael Kozolli e William
Sackheim (foram ao total cerca de 20 versões) e não matando o personagem
no final, enxergando o seu potencial, além de pedir ao famoso
construtor de armas Jimmy Lile, que criasse a famosa faca que se tornou
icônica (a faca deveria servir para situações extremas de sobrevivência,
sendo feitas seis peças para a produção) e ao final conseguiu que a
metragem do filme fosse reduzida à metade, ganhando dinamismo e concisão
narrativa. O fato é que graças a Stallone, o filme foi um sucesso de
crítica e bilheteria, e uma continuação se tornou inevitável...
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Não sabemos se o "spetnaz" morreu da facada ou do nojo de ser coberto de lama...
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A febre da Rambomania (que teve inclusive um infame desenho animado) levou inclusive a haver aqui no brasil no Programa do Gugu no SBT o concurso do “Rambo Brasileiro” onde bombados com dicção pior do que a de Stallone tentavam emular as proezas do herói com recursos dignos de Chaves, num dos grandes clássicos do constrangimento televisivo... Mas voltemos ao original.
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Café pequeno: No Afeganistão, os "parças" Rambo e Trautman (Richard Crenna) contra apenas todo o exército soviético de ocupação
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Em Rambo III (1988)
de Peter MacDonald, o terceiro filme, com roteiro de Stallone e Sheldon
Lettichi, foi para o Afeganistão, resgatar o amigão Trautman que
auxiliava os guerrilheiros mujahedins e foi aprisionado pelos soviéticos. Rambo acaba por tabela juntando forças com o Taliban (sim, aquele Taliban que junto com um certo Osama Bin Laden derrubariam o World Trade Center em 2001...), enfrentando a invasão Soviética, aquecendo a Guerra Fria.
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Cartaz estilo "Sin City" no 4...
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O filme se pagou e até deu lucro, mas não tanto como o anterior, além
das péssimas críticas, e com o declínio das tensões leste-oeste (fora a
gafe com o surgimento do fator AL-QAEDA) levaram o personagem a hibernar por duas décadas, voltando à ativa em Rambo 4 (2008)
dirigido e roteirizado (com Art Monterastelli) pelo próprio Stallone,
onde o herói vai resgatar missionários presos em Myanmar (Birmânia), a
causa social da moda da elite Hollywoodiana (pelo menos, até ser
suplantada por Darfur no Sudão...) e lá se foi Rambo degolar, e trucidar
soldados do país, esfregando na cara da elite progressista democrata o
argumento de que ao fim do dia “tiro, porrada e bomba” resolvem mais problemas do que um show de Roger Waters ou do U2.
Ao final do filme o velho soldado cabeludo e de faixa no cabelo
retornava para o rancho da família que não via desde que ingressou no
exército,dando um tom de fechamento, ou não???
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"Levarei a paz à Birmânia, nem que para isso tenha de matar todos os birmaneses!!!"
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Dirigido por Adrian Grunberg (Plano de Fuga de 2012) Rambo: Até o Fim (2019) Nos traz Sylvester Stallone em ótima forma aos 73 anos no que seria o “canto de cisne” (soa cômico não?) do icônico personagem, pai de toda uma geração de heróis brucutus “ex-forças especiais” que
povoaram o audio visual dos últimos trinta anos (sendo o mais bem
sucedido o Cel. Bradock de Chuck Norris). Com roteiro (em parceria com
Matthew Cirulnick da série Absentia) e história (em parceria com Dan Gordon de Hurricane, o Furacão de 1999 e Wyatt Earp de
1994) de Sylvester Stallone, vemos aqui a tentativa e humanizar o
personagem, resgatando uma carga emocional ausente nos filmes
anteriores, sendo preciso, sólido, emocionante, divertido, com os seus
devidos (e muitos) excessos, num filme simples e competente.
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Momento Marlboro: Rambo trocou o visual "hippie" por algo mais "republicano", como John Wayne
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Após os eventos de Rambo 4,
John (Sylvester Stallone) volta para o rancho de seus falecidos pais,
em uma cidadezinha no Arizona, onde tem vivido desde então,na companhia
das duas últimas pessoas que considera parte da família: a empregada
Maria (Adriana Barraza de Babel de
2006) e sua neta, Gabrielle (Yvette Monreal), uma jovem às vésperas de
partir para a faculdade. Quando não atua como voluntário, como na ótima
sequência inicial de resgate de uma enchente, graças à montagem de
Carsten Kurpanek (The White Room de 2007) e Todd E. Miller (Os Mercenários 2 de
2012), Rambo, tenta esquecer seus traumas do passado, passando seus
dias cuidando e adestrando os cavalos da fazenda (sentimos a influência
dos cowboys crepusculares de John Wayne e Clint Eastwood), cuidando de sua sobrinha adotiva e tomando remédios.
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Maria (Adriana Barraza) é uma das últimas âncoras de Rambo no mundo, que vive se controlando
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Ele não consegue dormir dentro da casa e criou uma espécie de bunker embaixo da fazenda onde nos últimos dez anos (por isso continua em forma...) reconstruiu réplicas dos túneis Củ Chi usados pelos Viet Congs na guerra, sendo uma boa sacada do designer de produção Franco-Giacomo Carbone (Creed II de 2018 e Os Mercenários de 2010). É lá onde ele passa boa parte de seu tempo (O Mito da Caverna de Platão???), dormindo e trabalhando na forja fabricando facas com Aço de Toledo.
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Um homem cercado de suas lembranças, e de seus fantasmas...
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Aqui vemos pela passagem do tempo uma mudança do look do personagem: Sai
o cabelo grande com uma fita vermelha, e apesar de ainda fortão ele não
anda mais sem camisa (desde o filme anterior) e usando-a por dentro das
calças, talvez refletindo a agenda republicana de Trump. Saem os
orientais e russos e entram os cartéis mexicanos que traficam drogas e
mulheres que acabam cruzando o seu caminho, tirando Rambo de sua nova
rotina e obrigando-o a sair em mais uma missão. Gabrielle, como toda
adolescente de filme, quer descobrir porque o seu pai abandonou-a e a
sua mãe moribunda, e graças a Jezel (Fenessa Pineda), uma amiga (e “boa bisca”...)
que mora no México e descobre o paradeiro do genitor, se manda para o
outro lado do Rio Grande, decepcionando-se amargamente...
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Referências ao passado do soldado pululam aqui e ali na cenografia.
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Mas como desgraça pouca é bobagem, graças a muy amiga (que
está de olho na sua pulseira de ouro) Gabriella acaba indo a um
inferninho onde é aprisionada pelos irmãos Victor (Óscar Jaenada) e Hugo
Martínez (Sergio Peris-Mencheta), os líderes do cartel que trafica
mulheres, que de tão bidimensionais chegam ao ponto de serem
intercambiáveis, sendo que a aversão que provocam no espectador decorre
mais da empatia pelas vítimas de seus crimes que do apropriado
desenvolvimento dos vilões. Percebemos aqui a diferença em escala social
de como são representados os Estados Unidos e o México. Enquanto Rambo
resgata a jaqueta de ex-combatente do primeiro filme, tanto Jezel quanto
os irmãos Martinez tem a sua identidade de chicanos estereotipados bem
marcada pelos figurinos de Cristina Sopeña (The Kill Team e Malévola: Dona do Mal ambos de 2019) que enfatizam o perfil de piriguete dela e de novos - ricos de gosto duvidoso e sem cultura deles (não muito diferente dos nossos traficantes ou milicianos).
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Cidade do México: A uberfavela, similar à Rocinha e à congêneres nacionais
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Rambo, ao chegar à Cidade do México (aqui, uma grande favela cheia de
ruelas, escadarias e becos dignos do Rio de Janeiro) e, numa boa
sequência ser encurralado e tentar dialogar, leva uma surra bonita,
sendo largado na rua e é resgatado pela jornalista Carmen (a ótima Paz
Vega de Lúcia e o Sexo de 2001 e Spanglês de 2004) que surge apenas para nos lembrar que nem todos os mexicanos são marginais, e sai de cena sem acrescentar mais nada.
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Inocência ou tolice? Gabriella (Yvette Monreal) a filha postiça de Rambo e pivô da trama
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Após se recuperar, mais deformado pelas cicatrizes e hematomas, Rambo
resgata a adolescente tolinha, que aprendeu finalmente que “os bons Mexicanos são os 'americanizados' ou aqueles que sofreram na pele o que Rambo sofreu”, sendo portadores da mesma “sabedoria” sobre a “real face do mundo...” (UAU!!!),
e para concretizar a sua vingança o nosso herói joga fora a medicação e
volta finalmente a ser o rolo compressor que todos aprendemos a amar,
ou a odiar, ou a amar odiar, ou a odiar amar, ou a amar e odiar... sei
lá. Rambo é Rambo, e não existe Rambo Bom ou Rambo Mau!
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Cães chupando manga: Os irmãos Hugo (Sergio Peris-Mencheta) e Victor Martínez (Oscar Jaenada), líderes do cartel, dão uma senhora surra no "coroa", sem saber no que estão se metendo...
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O passar dos anos fizeram o nosso ex-combatente ficar mais cerebral, e
ele então atrai o exército do cartel para o seu ambiente e usando de
estratégias nunca vista antes na franquia (antes ele ia improvisando...)
vai montando armadilhas e literalmente degolando, metralhando, etc...
com táticas dignas de Jogos Mortais em ótimas cenas de violência gráfica enquanto vai despachando os meliantes para o além do aquém, nos brindando com “interpretações viscerais” literalmente...
nestes tempos loucos de uma polarização política beirando a insanidade,
quando cada vez mais fica difícil definir para o público leigo o que é
politicamente correto, Trump e os supremacistas republicanos (e
partidários tupiniquins de certas autoridades reacionárias fãs de snipers...) devem ir ao êxtase com esta catarse ultranacionalista...
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Desperdício: Carmen (Paz Vega) resgata e cuida do herói e, some logo em seguida...
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A Fotografia de Brendan Galvin (Sem Retorno de 2015 e Rota de Fuga de
2013) conta com uma paleta de cor meio sépia o que combina muito bem
com tudo o que está acontecendo e no final parece que retornamos ao fim
dos anos 80 para rever o último capítulo de uma franquia que apesar dos
tombos reside no coração de muitos, embalado pela eficiente música de
Brian Tyler (A Múmia de 2017, Vingadores: Era de Ultron de 2015), que mescla The Doors com uma ótima reinterpretação do tema já clássico de Jerry Goldsmith.
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Momento Rocky Balboa: rambo se permite momentos mais intimistas com seus pais falecidos e além...
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Este é um filme de despedida simples e competente, que acerta por ser
puramente nostálgico, além de conter cenas de ação que somam a este
ícone clássico da historia do cinema uma vulnerabilidade já creditada no
personagem, mas que mergulha nas habilidades de combate de forma
magistral, elevando Stallone como um dos responsáveis pelo que o cinema
de ação se transformou nos últimos quarenta anos. Porém, a execução é
falha da estrutura do roteiro à forma com a qual determinados momentos
soam artificiais – justamente o drama que tanto poderia aprofundar
algumas questões e servir de base para esta despedida. Em suma, uma
despedida com o amargo e ferroso gosto de sangue para uma franquia de um
dos personagens mais notáveis da carreira de Sylvester Stallone, mas
que não contou com excelentes filmes.
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Mas logo em seguida Rambo começa a preparar armadilhas...
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Ao fim do filme (90 minutos) os fãs mais ardorosos se emocionarão com os
créditos que resgatam várias cenas dos filmes anteriores em sequência
refazendo a sua saga (mas quase nenhuma cena do terceiro filme, porque
será???) culminando numa cavalgada final do herói, resgatando suas
raízes índias, correndo rumo ao horizonte...
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Ao final, nada como o bom e velho arco e flecha!!!
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Mas de qualquer forma senti falta da faca criada por Jimmy Lile!
Obs:
Está programado para 2020 um remake indiano dirigido por Siddharth
Anand com Tiger Shroff como o herói. O que virá disso acho que nem o
Coronel Sam Trautman saberia dizer...
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"- Chegou a hora maldito de você dar ao filme uma interpretação visceral,, em todos os sentidos!!! Entendeu M0thrfuck3r???"
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Notas:
*1: Personagem da DC Comics criado por Jack Kirby cujo nome OMAC é um acrônimo de One Man Army Corps (traduzindo do inglês: “Exército de Um Homem Só”)