A mais cara sessão de terapia
Ari Aster faz mais um tratado de psiquiatria do que um filme
Tempo atual (eu acho...). Beau Wasserman (Joaquin Phoenix, de Coringa . Ótimo, como sempre) é um indivíduo para lá de ansioso. Cheio de fobias e assustado pela vizinhança do prédio caindo aos pedaços onde mora. Aliás, a sua vizinhança barra-pesada é praticamente uma praça de guerra, tal é o aspecto degradado de seu entorno, com lixo, mendigos e pessoas mortas nas ruas, refletindo a realidade da recessão econômica e do subemprego dos centros urbanos norte-americanos, estagnados que este momento em que o neoliberalismo legou uma realidade de proletarização da classe média e precarizada para a maioria de seus cidadãos.
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O neurótico Beau Wasserman (Joaquin Phoenix) mora numa vizinhança barra pesada |
Beau se encontra regularmente com seu terapeuta (Stephen McKinley Henderson, de Duna), tentando lidar (sem muito êxito) com a relação tóxica que tem com sua mãe que só pelas mensagens do telefone ao seu filho, já percebermos ser um poço de possessividade. O terapeuta lhe receita um novo remédio, que ele deverá tomar apenas uma cápsula com água ao dia e não mais do que isso.
Só que, por conta de um vizinho louco que não o deixa dormir direito, ele perde o vôo para visitar a mãe em seu aniversário (Patti Lupone, de A Escola do Bem e do Mal) e ela começa a cobrá-lo por isso, usando sua voz chorosa de tom vitimista. Isso o faz tomar duas cápsulas do remédio prescrito no mesmo dia e, quando se dá conta disso, constata que não tem água no prédio.
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"Pelado, pelado, nú com a mão no bolso": Beau, por força das circunstâncias, em certo momento acaba nas ruas como veio ao mundo |
Daí
em diante nosso herói embarcará numa odisseia única, com momentos
bizarros, oníricos e muito, muito insólitos, caminhando entre o real, o que parece ser o real e, o que não sabemos definitivamente ser real ou delírio...
Produzido pela A24, e escrito e dirigido por Ari Aster (Midsommar: O Mal Não Espera a Noite), Beau Tem Medo (2023) expande o conceito de seu curta metragem original - Beau (2011) - e nos faz mergulhar (a ponto de quase afogamento...) na mente perturbada de seu protagonista. Phoenix o interpreta brilhantemente, numa atuação para lá de visceral, mesclando influências que vão de Psicose (1960, de Alfred Hitchcock) e Réquiem para um Sonho (2000, de Darren Aronofsky) até O Show de Truman (1998, de Peter Weir). Ou ainda, as tramas surrealistas do roteirista Charlie Kaufman (Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, Adaptação).
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Após ser atropelado, Beau desperta num quarto beem diferente do que ele espera |
Aqui temos um protagonista completamente afogado por suas angústias, medos e traumas, que com certeza poderia ser um colega de Arthur Fleck, a consagrada encarnação de Phoenix do palhaço do crime em Coringa (2019, de Todd Phillips), tanto por viver num prédio velho e detonado de vizinhança para lá de esquisita e digna de Gotham City, como por ser um possível frequentador do Asilo Arkham - só que Beau estaria na ala de pacientes não-perigosos...
Aproveitando o fato de ser a mais cara produção (cerca de US$ 40 milhões) da A24, nas quase três horas de duração do filme Aster nos soterra em um mundo de alegorias, simbolismos e dubiedade, impedindo-nos de distinguir o que é real, de delírio psíquico, trauma ou alucinação decorrente do uso indevido de medicamentos. Atestando a perícia de Aster, vemos na realidade de Beau - um indivíduo petrificado por sua apatia - seus medos, ansiedades, paranóia e manias persecutórias, colecionando em sua jornada situações plenas de elementos de terror psicológico, drama e tragicomédia.
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Beau é acolhido (capturado?) pelo casal Roger
(Nathan Lane) e Grace (Amy Ryan) |
Da galeria de personagens que cruzam com Beau em sua joranda, temos o casal Grace (Amy Ryan, de Quanto Vale?) e Roger (Nathan Lane, de Penny Dreadful: Cidade dos Anjos) e sua filha Toni (Kylie Rogers, de Yellowstone), uma família pitoresca, que consomem pílulas como se fossem salgadinhos. Temos também uma trupe de atores que monta uma peça numa floresta, (onde Beau vivencia uma vida que poderia ter sido a sua) e um veterano de guerra homicida. Ele reencontra Elaine Bray (Parker Posey, de Perdidos no Espaço), o grande amor de sua adolescência, e finalmente chegar ao encontro de sua mãe narcisista e manipuladora, numa reviravolta que vira a trama ao avesso (ou não???)
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A hostil Toni (Kylie Rogers), filha de Grace e Roger |
A edição de Lucian Johnston (A Tragédia de Macbeth) é eficiente na energética primeira metade do filme, caindo de ritmo na segunda metade, cheia de momentos mais contemplativos. O filme ganharia muito em cadência com uns 20 minutos a menos.
A bela fotografia de Pawel Pogorzelski (Hereditário) é criativa, indo do uso do steadicam nas cenas de perseguição ao uso de iluminação assumidamente artificial na peça teatral na floresta. O filme ganha estética de videoclipe ao associar-se a música de The Haxan Cloak (Midsommar: O Mal Não Espera a Noite), que alterna momentos de puro terror e comédia dramática com outros mais mágicos e idílicos - ou até distópicos -, com a inserção de hits como “Goodbye Stranger”, do Supertramp; “Everything I Own” , do Bread; ou “Always Be My Baby”, por Mariah Carey.
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Num sonho, o Jovem Beau (Armen Nahapetian) e sua possessiva mãe (Zoe Lister-Jones) fazem uma viagem |
O bom desenho de produção de Fiona Crombie (Cruella) cria ambientes factíveis, como a vizinhança e o prédio de Beau, ou lúdicos, como o teatro na floresta. Ela é auxiliada em sua empreitada pela equipe de direção de arte chefiada por David Gaucher (X-Men: Fênix Negra), Yen-Chao Lin (The Spirit Keepers of Makuta´ay), Veronique Meunier (X-Men: Apocalipse) e Mario Hébert. A decoração de sets de Paul Hotte (A República de Sarah), Alain Clouatre (The Crossword Mysteries), Ginette Robitaille (Little America) e Myriam Belanger (Lâncher prise) e equipe, detalham com vários itens os espaços. Como exemplos temos as fotos e artigos de jornal que decoram a casa da mãe de Beau, mostrando seus feitos, ou o apartamento modesto de protagonista, com móveis usados e utensílios comuns, sem qualquer glamour.
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Num belo e lúdico momento, Beau se vê transportado para uma peça teatral vivendo o que poderia ter sido a sua vida |
Os figurinos de Alice Babidge (A Escavação) acompanha as diversas fases dos personagens e seus estados mentais. Bons exemplos são o pijama de Beau, que lhe dá um aspecto infantilizado, ou o figurino da peça na floresta, que, por sua artificialidade, reflete o início de questionamento do protagonista sobre a sua própria condição. A maquiagem de Daniel Carrasco (1899) e Kayla Dobilas (Hereditário), além dos efeitos animatrônicos de Chris Cooper (Mind Leech), caracterizam bem o personagem como alguém infantilizado e assustado. Os efeitos visuais de Hybride e Folks VFX, supervisionados por Olivier Beaulieu (Han Solo: Uma História Star Wars) e Pierre Blain (O Mandaloriano), destacam os monstros que aterrorizam seu consciente e inconsciente.
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Uma chance de felicidade: Beau reencontra Elaine Bray (Parker Posey), o grande amor de sua adolescência |
Na avaliação final, Beau Tem Medo, em que pese seus excessos, é instigante e provocador, como toda obra que se pretende artística deve ser. Arte tem de ser “perigosa” se quer ser arte de fato e não marketing para vender bonecos (mas será que lançarão um Funko do Beau com seu pijaminha???). No final, a maior pergunta que deve ser feita não é sobre do que “Beau tem medo”, mas sim, do que Eu, Você e toda a humanidade tem medo. Talvez a resposta seja das várias opções que a vida oferece, tão infinitas quanto as estrelas do céu ou os grãos de areia do leito dos oceanos...
O filme deverá render muitos debates acalorados sobre se é uma obra de arte ou uma egotrip pretensiosa do diretor, se fez mais uma síntese de questões psiquiátricas que o afligem, como família, culpa judaica, etc, do que um filme propriamente dito.
O terapeuta de Ari Aster deve ter adorado...
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