
Gliter, collants, & comédia dramática
por Alexandre César
(Originalmente postado em 14/ 08/ 2018)
Série da Netflix inova ao discutir a questão feminina
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O original nos anos 80: Gliter! Cabelão! Malhas e collants dignos de versões "trash" de heroínas da Marvel...
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Nos anos 80 passava no SBT um programa bizarro, intitulado de Brasil como Luta-Livre de Mulheres. Entre esquetes de um humor caricato, com personagens super-estereotipados e um visual "qualquer-coisa”,
acompanhávamos as desventuras de mulheres bonitas e produzidérrimas -
dentro da estética da época, com fantasias super coloridas - numa storyline envolvendo a batalha entre “o bem e o mal” e números musicais (uma espécie de Saturday Night Live). E lutavam num ringue no melhor estilo telecatch. Um seriado na Netflix, lançado no ano passado chamado GLOW (Gorgeous Ladies of Wrestling), é inspirado justamente naquele programa.
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Os personagens da série: Um grupo para lá de heterogêneo...
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Liz Flahive e Carly Mensch, as criadoras da série, tiveram a ideia a partir do documentário GLOW: The Story of the Gorgeous Ladies of Wrestling (2012,
de Brett Whitcomb). Antes de assisti-lo, as duas nunca tinham ouvido
falar do programa. Ficaram intrigadas com sua premissa e começaram a
pensar em produzir uma espécie de remake
passado na mesma época, mas agora apresentado uma versão do programa
com personagens fictícios. Agora seria com atrizes interpretando
lutadoras ao invés de lutadoras de fato. Achavam que o seriado poderia
explorar as consequências do Movimento Feminista dos anos 1970 e 80 e
questionar: “- O que funcionou? As coisas melhoraram?”
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Ruth (Alison Brie) como "Zoya" na atual série e "Ninotchka, a agente da KGB", a sua inspiração no programa original
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Ursula Hayden, proprietária da empresa GLOW,
serviu como consultora da nova série. Hayden também era uma das
lutadoras no ringue do programa original dos anos 80: seu personagem era
Babe, a Filha do Fazendeiro.
Outro consultor da série, além de ajudar a treinar as atrizes, é Chavo
Guerrero Jr. Ele é representante de terceira geração dos Guerreiro,
famosa família de onde saiu vários grandes lutadores de wrestling.
Seu tio, Mando Guerreiro, foi consultor e treinador das atrizes no
programa original. Seu trabalho trouxe os maneirismos deste tipo de luta
e deu verossimilhança a série, apresentando de forma convincente aquele
universo naturalmente exagerado e costurando a carga emocional das
personagens e de suas histórias de modo a captar a atenção do
telespectador. A série chega quase a ser uma variação da temática
presente em Orange is The New Black,
na desconstrução do que comumente é associado com a feminilidade.
Aliás, Jenji Kohan, criadora do seriado ambientado na prisão de
Litchfield, é uma das produtoras executivas deste show sobre um grupo de
mulheres incomuns, e de personalidade idem, que topam participar, nos
anos 80, de um programa de luta livre feminino exibido em TV aberta.
Dotado de um caráter cômico e kitsch (beeem
anos 80). O show, além apresentar lutas entre belas garotas, foi usado
na época por algumas atrizes, modelos e dançarinas como “porta de entrada” para o mundo do entretenimento. Afinal, no show business
tem-se que começar por algum lugar... e este é um sonho com fundamento.
Basta lembrarmos do histórico de Dwayne Johnson (que você pode ler aqui).
1ª temporada
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Amigas e rivais: Ruth Wilder (Alison Brie), a "perdedora", e Debie Eagan (Betty Gilpin), a louraça "atriz bem-sucedida"
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No longínquo ano de 1985, começamos a acompanhar a história de Ruth Wilder (Alison Brie, de Community e Mad Men),
uma atriz que nunca consegue bons papeis e há vários meses só tem tido
audições mal-sucedidas. Não está conseguindo trabalho e, por tabela,
passa por problemas financeiros. Além disso, está tendo um caso com um
homem casado com sua melhor amiga Debbie Eagan (Betty Gilpin),
ex-estrela de uma novela interminável de episódios semanais (soap operas), tipicamente norte-americana, como a famosa Days of Our Lives. Ruth vê mais uma chance de sair do atoleiro em que se encontra quando é chamada para o teste de um “projeto experimental” de entretenimento que procura por “mulheres não convencionais”.
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Sam Sylvia (Marc Maron): genérico de Stan Lee com rabugice de John Carpenter
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Ela vai para o teste, temendo que seja para um filme pornô. Acaba descobrindo um bando de losers
tal qual ela e que o tal projeto é na verdade um programa de TV que
exibirá lutas entre mulheres, dirigidas por Sam Sylvia (Marc Maron, o
melhor dublê de Stan Lee já visto) - um diretor de filmes trash caído no ostracismo (uma espécie de John Carpenter que não deu certo...), cujo nível de frustração se compara ao de Ruth.
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Inicialmente as garotas demoram a encontrar os seus personagens, tentando várias possibilidades
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Então
um fato ocorre que define o futuro de Ruth de forma inesperada. Debbie
descobre que Ruth estava tendo um caso com seu marido e vai tomar
satisfações no set onde estão sendo realizados os testes, saindo no
braço com ela. Sam vê a briga e tem uma epifania. Decide que elas serão
as principais antagonistas do programa: Ruth se torna uma personagem
russa (“Zoya, a Destroya”) e Debbie, a louraça sarada, vira uma heroína americana (“Liberty Belle”),
refletindo a Guerra Fria que o mundo ainda vivia na época. Elas
concordam (Debbie também não estava em boa fase...) e, obviamente, um
clima tenso se estabelece entre elas nos bastidores. Paralelamente, Sam e
o criador do programa e produtor Sebastian “Bash” Howard (Chris Lowell) tentam de tudo para veicular o programa na TV num horário e, em condições, decentes.
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Os "Cabeças" do show: Sebastian “Bash” Howard (Chris Lowell), o produtor "mauricinho", e Sam Syvia, o diretor "indie"
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Em torno deles transitam coadjuvantes bizarras e adoráveis, destacando-se Carmen "Machu Picchu" Wade (Britney Young), filha de uma família de lutadores, que inicialmente se opõem à sua entrada no wrestling; Cherry "Junkchain" Bang (Sydelle Noel), a atriz e dublê que coloca as meninas em forma - tendo sempre ao seu lado o “maridão” Keith Bang (Bashir Salahuddin) para o que der e vier -; Sheila, "a Loba" (Gayle Rankin), que vive todo o tempo dentro do personagem. Alem delas, temos Arthie "Beirute, a Mulher-Bomba" Premkumar (Sunita Mani), Jenny "Biscoito da Sorte" Chey (Ellen Wong) e Tammé "A Rainha da Previdência" Dawson (Kia Stevens, a única lutadora da GLOW na
vida real - sim, a empresa ainda existe e continua a oferecer show com
lutas ao vivo). Elas tornam a série simpática, nos guiando neste
universo quase desconhecido para nós, fazendo com que nos identifiquemos
com seus personagens e mostrando que o wrestling
não é apenas um esporte com fantasias e lutas coreografadas, mas um
tipo de teatro popular, com suas próprias narrativas e dinâmicas,
apresentadas de uma forma didática, divertida e inteligente.
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Refletindo a guerra fria no mundo e nos bastidores: "Zoya, a Destroia", versus "Liberty Belle"
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Os
conflitos nesta temporada, além do clima hostil entre as duas
protagonistas, se centram nas dificuldades de Sam Sylvia em tentar-se
manter relevante enquanto realizador (é sintomática a cena em que ele
descreve o plot de seu próximo filme e descobre que um filme mainstream,
hoje um clássico popular, foi lançado com o mesma ideia central...) e
suas atitudes e reações após descobrir-se pai da adolescente Justine "Scab" Biagi
(Britt Baron), fruto de um encontro casual do passado. Ela é tão
rebelde quanto ele e de inclinações artísticas similares. Temos também
as pressões familiares sobre Carmen e sobre “Bash” Howard, que,
ao criar o programa, entra em conflito com a sua rica, conservadora e
republicana família, que não vê com bons olhos o seu projeto “não respeitável”.
Eles cortam o suporte financeiro que lhe davam, obrigando-o a
malabarismos para conseguir financiamento e patrocinadores para fazer
com que o programa consiga se manter.
Ao
final, aos trancos e barrancos, a trupe consegue emplacar o programa
numa emissora num horário modesto, angariando uma audiência mínima para
garantir que não seja cancelado, mas deixando várias possibilidades em
aberto para a próxima temporada, em que as meninas poderiam mostrar o
seu valor.
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O time completo, pronto para seguir adiante
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2ª temporada
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Com seus "personagens" definidos, as garotas vão à luta
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Aqui
se aprofunda melhor a personalidade das garotas, aumentando a sua
conexão com o público, dando-lhes personalidade própria - além das suas
próprias excentricidades. Também surgem tensões sexuais, encontros
bizarros e amizades inusitadas. Vemos que o programa que elas fazem
ganhou status de cult, com um público pequeno, mas fiel, contra tudo e contra todos. Ainda assim o risco dele ser cancelado prossegue.
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A certa altura, Debbie surta ao ver se efetivar o seu divórcio
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Debbie
faz pressão, brigando para ser levada mais a sério, e é alçada a
produtora executiva, se unindo a Sam e Bash no esforço de salvar o show.
Debbie tem sua vida emocional abalada, depois do pedido de divórcio do
marido, Mark (Rich Sommer) que passa a viver com a sua secretária (não
que ela quisesse voltar para ele, mas porque fica evidente que aquela
etapa passou e ela terá de seguir em frente, o que a assusta). Ruth está
empolgada com seu recém-descoberto talento para a direção, o que deixa
Sam Sylvia inseguro, que reage de forma agressiva (o velho choque
“ambição feminina versus insegurança masculina”).
Sylvia
é machista e abusa de sua autoridade enquanto é responsável por
comandar a performance das meninas diante das câmeras. Ainda assim
percebemos o lado humano de sua figura, que se revela tão perdido e
debilitado nas decisões que toma em sua vida quanto aquelas garotas, se
escondendo atrás de suas posições duras e atitudes misóginas para evitar
que suas falhas transpareçam. O contraponto está no seu desenvolvimento
enquanto figura paterna de Justine, que o leva ao final da temporada a
rever muitas das decisões que tomou ao longo da vida. É bonito ver a
evolução da relação dele com a filha e com Ruth - o trio assume um
perfil de “família informal”.
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Dash trilha um arco mais soturno por conta da aceitação de sua própria sexualidade
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Surge
uma personagem lésbica: Yolanda (Shakira Barrera), que se envolve com
uma das lutadoras. E se esclarece a sexualidade do produtor Bash, que em
seu arco lida com a morte de alguém próximo a ele, motivada por uma
doença adquirida em consequência da AIDS. Chega a ser assustador a
forma com que se retrata o temor da doença, que foi (e ainda é) uma
grande desculpa para grupos fundamentalistas, que a usam como
justificativa de seus discursos de ódio. Neste arco, a narrativa ganha
um tom mais pesado, quase destoando do resto da temporada, evidenciando a
necessidade de dar relevância a este momento amargo da História.
Feminismo e questionamentos
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Sam Sylvia se sente inseguro em sua autoridade e reage mal
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Na
série assistimos a temas inerentes ao cotidiano feminino, não importa o
quão desglamourizado alguns deles sejam hoje em dia. Desde as decisões
comerciais baseadas em clichês que procuram condenar o programa ao fim,
passando pela cena em Debbie - a atriz “famosa”
do elenco - está furiosa com Ruth, pois esta, mesmo tendo tudo a
perder, não se presta a fazer o famigerado “teste do sofá” (arco
inspirado no caso do mega-produtor caído em desgraça Harvey Weinstein).
Em um exemplo dos bons roteiros da série, temos aqui a mulher aceita o
lugar que lhe dão, que se submete a tradições misóginas da sociedade, e
a mulher que questiona o pensamento machista vigente e quer trilhar seu
próprio caminho. As duas só acertam as suas diferenças após um
desenlace dramático por parte de Debbie, e o seu consequente
arrependimento. Uma sequência de eventos exploram de forma eficaz temas
como a falta de oportunidades para a mulher, a frustração e a
inadequação social de muitas mulheres devido a padronização da imagem
feminina, a exploração midiática da inversão de papéis que o show
provoca, a maternidade e até mesmo o direito ao aborto. Temos um time
estranho de personagens variados por quais desenvolvemos um extremo
afeto e simpatia. Nos identificando com eles.
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Tammé "A Rainha da Previdência" Dawson (Kia Stevens) e Debbie "Liberty Belle": Os dois extremos dos estereótipos femininos
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A
série acerta ao dar uma nova cara a temas recorrentes ao analisar os
conceitos machistas e misóginos do passado que ainda se refletem na
atualidade. Embora boas personagens como Carmen “Machu Picchu” Wade e Cherry “Junkchain” Bang tenham menos evidência nesta temporada, é fantástico quando o roteiro foca em Tammé "A Rainha da Previdência"
Dawson, demonstrando o racismo atrelado a espetacularização das feições
e corpos femininos, dentro de um ambiente esportivo em que quem pratica
o esporte são mulheres, mas quem comanda são homens.
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Tammé (Kia Stevens) e seu filho Ernert (Eli Goree): racismo e misogenia
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Esta
questão se se reflete numa cena comovente e revoltante entre Tammé e
seu filho Ernest (Eli Goree), que entrou na faculdade com a bolsa Martin Luther King.
Junto com ele nos revoltamos com a forma humilhante que sua mãe é
retratada, refletindo uma tradição de estereótipos com que a mídia em
geral trata as mulheres negras.
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Yolanda (Shakira Barrera): a nova personagem da 2ª temporada
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Num
outro momento, Debbie encena uma luta com um personagem mexicano, vence
e diz: “Acho que vamos ter que esperar que as relações entre EUA e
México melhorem no futuro”, refletindo a descriminação dos latinos por
parte da atual administração Trump, que engaiolou filhos de imigrantes
ilegais e chegou a estimular veladamente supremacistas brancos e afins.
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Cabelos, maquiagem, fotografia, figurinos: Toda a identidade oitentista se encontra presente
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Apesar
de ocasionais escorregadelas, o seriado flui com seu humor afiado,
debatendo o machismo e a misoginia de ontem e de hoje, sem esquecer o
fator entretenimento. Os 10 episódios por temporada são fáceis e
gostosos de se acompanhar e dão liberdade para conhecer e acompanhar a
evolução natural dos personagens e do seu universo. Destaca-se nesta
linha, o episódio que se passa dentro de um episódio do programa, com
toda a breguice e recursos técnicos da época. Uma real volta no tempo.
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Persistência e muito suor...
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Destaca-se ao longo de suas duas temporadas o design
de produção de Todd Fjelsted, os figurinos de Beth Morgan, a direção de
arte, a maquiagem e a trilha sonora de Craig Wedren, que traz uma
ambientação absurdamente gostosa, apresetnado canções que vão de Scandal e Journey, passa por Roxette e The Go-Go’s, terminando em Billy Joel, Alice Cooper e Stan Bush. GLOW! tem toda a identificação oitentista: os cabelões curtinhos e as “jubas”, os collants à la Flashdance, figurinos hipermega coloridos, os clássicos do rock, os letreiros neons dos programas e aquela pegada “trash”
inerente à época. Fora o trunfo da sua abordagem bem-humorada ao
debater assuntos diversos e sérios como a objetificação do corpo
feminino, o aborto (legalizado nos EUA desde 1973), a apologia à
violência e as piadas extremamente racistas, xenofóbicas e ofensivas,
usadas de diversas maneiras no show business, entre outros.
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E Viva Las Vegas! Até a próxima temporada!!!
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O ótimo fim da segunda temporada deixou um gancho cheio de possibilidades. Considerando que o programa original foi um hit
até o início dos anos 1990, ainda vamos ver essas meninas brilhando. E
elas merecem, provando que lugar de mulher é onde ela quiser.
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As garotas do programa "GLOW" original de 1985 até 1990 |