Ser ou não ser um Berserker...
Dinamarca, final do século X. o jovem príncipe Amleth (Oscar Novak de O Batman) e sua mãe, a Rainha Gudrún (Nicole Kidman de Aquaman) recebem alegres o Rei Aurvandil, o Corvo de Guerra (Ethan Hawke de Cavaleiro da Lua) e seu irmão, Fjoölnir, o Sem Irmãos (Claes Bang de Drácula) após uma bem sucedida incursão que trouxe seus navios repletos de ouro, mercadorias e prisioneiros escravizados, que enchem de orgulho a todo o reino, reafirmando serem eles vikings de valor. Após a calorosa recepção, não faltando os gracejos maledicentes do Heimir, o bobo (Willen Dafoe de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa) pai e filho fazem uma iniciação onde o menino se torna um homem e aprende com seu pai que ele deve vingá-lo em caso de morte para poder ser digno de adentrar o Valhala*1, aspiração de todo viking.
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O jovem príncipe Amleth (Oscar Novak) recebe feliz o seu pai, que volta de uma expedição |
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O Rei Aurvandil, o Corvo de Guerra (Ethan Hawke) soberano de seu reino |
Saindo da iniciação, logo em seguida ele vê seu pai ser morto pelo irmão, que ordena a sua morte, fazendo-o fugir, enquanto vê o usurpador matar os servos mais fiéis a seu pai e tomar a rainha, sua mãe como esposa. Amleth rouba um barco e vai remando em fuga recitando obsessivamente o mantra de que irá vingar o pai, libertar a mãe, e matar o tio traidor.
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A mãe de Amleth, a Rainha Gudrún (Nicole Kidman) esperava a muito tempo a volta do rei |
Passados alguns anos, Amleth, já adulto (Alexander Skarsgård de Godzilla vs. Kong em atuação mais do que visceral) tornou-se um guerreiro letal, e está no reino de Rus*2, lutando com compatriotas como Berserkers*3, invadindo aldeias para matar, saquear e escravizar os não-vikings. Apesar de sua competência no ofício, é um indivíduo solitário só remoendo o desejo de vingança. Ao saber que seu tio teve o reino tomado pelo rei Harald *4, levando-o a se exilar estabelecendo-se num assentamento na Islândia, ele dá início a seu plano, disfarçando-se de escravo e se infiltrando no assentamento, ganhando a confiança de Fjoölnir e de seus filhos Thórir o Orgulhoso (Gustav Lindh de The Dark Heart) e Gunnar (Elliot Rose de Milk) o caçula, nascido de sua mãe. Logo, ele cria uma conexão com Olga, da Floresta de Bétulas (Anya Taylor-Joy de Os Novos Mutantes) jovem rus feita escrava por quem se apaixona e o ajuda em seu plano, iniciando uma escalada de violência no limiar entre o real e o místico, o material e o espiritual, que Áshildur Hofgythja, a sacerdotisa (Olwen Fouéré de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald) interpreta as mortes como uma vingança do além.
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Após a iniciação de Amleth, ele vê seu pai ser vítima de um ataque |
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O Rei é morto por seu irmão, Fjoölnir, o Sem Irmãos (Claes Bang) e Amleth foge, jurando vingança |
Dirigido por Robert Eggers (O Farol, A Bruxa) O Homem do Norte (2022) impacta com sua marca autoral, sendo em suas 2 horas e 17 minutos (falado em inglês e nórdico antigo) mais do que um épico de ação, mas também uma radiografia de como a brutalidade e violência geram mais brutalidade e violência, prendendo seus partidários num ciclo ininterrupto de... brutalidade e violência. Uma maldição.
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Anos depois, o já adulto Amleth (Alexander Skarsgård) convertido numa máquina de matar, luta como Berserker, invadindo e saqueando vilarejos no reino de Rus |
O roteiro de Sjón & Robert Eggers adapta a lenda dinamarquesa que serviu de fonte de inspiração a Hamlet*5 de William Shakespeare (com direito inclusive à famosa caveira *6), já tendo sido abordada em Jutland – Reinado de Ódio (1994) de Gabriel Axel com Christian Bale, Helen Mirren, Gabriel Byrne, Brian Cox, Kate Beckinsale e Andy Serkis entre outros. Aqui, Eggers aproveita o maior orçamento (especula-se que 60 milhões de dólares) a serviço de sua obsessiva reconstituição de época (seguindo a risca tudo que as recentes pesquisas arqueológicas sobre os vikins nos revelam) para mergulhar com seu apuro visual na vigorosa construção de um mundo brutal, sujo e tribal, com direito a reviravoltas inesperadas quanto as motivações de alguns de seus personagens, cujas percepções do mundo à sua volta transitam entre o objetivo e o surreal, pois a espiritualidade permeia todos os aspectos de suas vidas cotidianas.
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Após um assalto brutal, Amleth recebe uma notícia sobre seu tio, e poe seu plano de vingança em ação |
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Disfarçado como escravo Amleth chega ao assentamento, conhecendo Olga, da Floresta de Bétulas (Anya Taylor-Joy) |
A fotografia de Jarin Blaschke (O Farol) trabalha só com uma câmera só (o pesadelo das equipes de qualquer filme) sem cobertura, usando só planos masters, o que requereu um intenso planejamento e ensaios antes das filmagens, tendo planos sequência impactantes, como o da brutal cena do assalto ao vilarejo perto de Kiev, com vários níveis de ação ocorrendo em distâncias variadas do quadro, além de registrar a beleza gélida das locações na Islândia.
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Participando de um jogo brutal Amleth, ganha a confiança de Fjoölnir |
A edição de Louise Ford (A Bruxa) mantém um ritmo tenso na narrativa, que em algumas cenas dialoga com Conan, o Bárbaro (1982) de John Milius. Esta narrativa é sublinhada pela música de Robin Carolan e Sebastian Gainsborough que acompanha o tom trágico da história.
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Thórir o Orgulhoso (Gustav Lindh), o filho mais velho de Fjoölnir premia Amleth por seus préstimos, virando um escravo de maior status |
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Entre suas visões, Amleth é aconselhada por uma Vidente (a cantora Björk) |
O desenho de produção de Craig Larhrop (O Diabo de Cada Dia) constrói com esmero os espaços cênicos ambientados no ano 914, durante o início da colonização da Islândia, também conhecido como "landnámsöld" (literalmente "idade da tomada de terras"), antes do estabelecimento do Althing. As locações no assentamento da Islândia ficaram meses fechados durante a pandemia, sendo que ao retornarem as filmagens, a direção de arte de Robert Cowper (Rogue One: Uma História Star Wars); Paul Ghirardani (Game of Thrones); Christine McDonagh (O Cavaleiro Verde); John Merry (Krypton) e Hauke Richter (Game of Thrones) e a decoração de sets de Pancho Chamorro (Eternos) e Niamh Coulter (Holmes & Watson) aproveitaram o envelhecimento natural dos materiais na caracterização dos cenários.
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Olga se torna a companheira de Amleth, auxiliando-o em seu plano de vingança |
Os figurinos de Linda Muir (Mistérios do Detetive Murdoch) seguem à risca as orientações da pesquisa histórica quanto a criar um mundo pré-cristianizado*7, usando uma palheta de cores que aproximam os personagens dos cenários, além me materiais rústicos como os tecidos crus Heimir, o bobo, e couro, como os berserkers com peles de lobos e ursos*8, se permitindo momentos mais fantasiosos, como no traje da Vidente (a cantora Björk) ou da Valkyrja (Ineta Sliuzaite) de uma visão de Amleth.
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Amleth toca o terror no assentamento de Fjoölnir |
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Amleth manda Olga para um lugar seguro, enquanto volta para concluir sua vingança |
A maquiagem de Sacha Carter (Malévola 2: Dona do Mal) e Stefania Pellegrini (Casa Gucci) cria um mundo de ferimentos e cicatrizes que acompanham seus personagens como Finnir, Toco de Nariz (Eldar Skar de Liker Stilen) auxiliado pelos uso dos efeitos visuais de Blue Bolt, Lidar Lounge, Vitality Visual Effects supervisionados por Angela Barson (Catarina a Grande), Justin Cornish (O Batman), Kyle Goodsell (Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw), Colin McCusker (Krypton) e David Scott (Vingadores: Ultimato) que compõem esse universo trágico, e mágico.
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Amleth, ferido, tem a visão de uma Valkyrja (Ineta Sliuzaite) no seu momento mais duro |
Ao final do vigoroso espetáculo, e de todo o seu arco de sangue e vingança, O Homem do Norte deixa claro o quanto os ciclos de sangue são viciantes, levando a todos a um moto-perpétuo que se não for rompido, tragará as gerações posteriores e além, confirmando o ditado de que ao sair em busca de vingança, o protagonista deverá cavar duas covas: Uma para o seu oponente, e outra para si mesmo (e talvez para outros mais) ...
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Os efitos visuais criaram um mundo místico que corre ao largo da narrativa |
Notas:
*1: Pertencente à mitologia nórdica, o nome significa Sala dos Mortos. Também chamado de Valhöll, era o palácio dos Einherjar ou "mortos heroicos" no Asgard (morada dos deuses Aesir) para onde as Valquírias levavam os guerreiros mais nobres e destemidos que morriam no campo de batalha, escolhidos por Odin
*2: Rus é um endônimo introduzido durante a Alta Idade Média para as populações da Europa Oriental que viviam nas regiões que hoje fazem parte da Ucrânia, da Bielorrússia, da Rússia, de uma pequena parte do nordeste da Eslováquia e de uma faixa do leste da Polônia, formando na época o primeiro estado eslavo oriental da história. Sendo a origem do nome contemporâneo Rússia, é comumente modernizado desta forma. O termo rus', com o qual as populações eslavas e fínicas indicavam alguns tipos de varegues ou vikings deve talvez provir da raiz do antigo nórdico roðs ou roths usado no âmbito náutico e ainda existente nas línguas finlandesa e estônia para indicar os suecos, ruotsi e rootsi. Depois a palavra "rus'" passou a indicar não apenas a aristocracia escandinava da Europa Oriental, mas ainda todas as populações que residiam nessas áreas. O primeiro registro histórico do etnônimo está nos Annales Bertiniani, uma recolha de crónicas escrita por vários autores francos e referente aos anos entre 830 e 882. São chamados Rhos ou Russi.
3*: Berserkir (Plural para Berserkr) foram guerreiros nórdicos ferozes, que estão relacionados a um culto específico ao deus Odin. Eles despertavam em uma fúria incontrolável antes de qualquer batalha. Há uma divergência sobre o termo nórdico "beraserkr", que podia referir-se a "camisa de urso", em nórdico antigo, da mesma forma como os nórdico ("Usando lobo de outra maneira", pode-se referir ao fato de estarem usando como armadura, não como "cães de caça") usavam peles de lobo. Outra tradução possível é "sem camisa". A origem dos bersekir é desconhecida. Tácito, porém, faz menção de grupos de guerreiros germânicos com uma fúria frenética, também uma menção bastante conhecida no formato poético de Haraldskæði (8,12,13).
4: Haroldo, filho de Sigurdo. Recebeu o epíteto Hardråde. Foi o rei da Noruega como Haroldo III de 1046 até a data de sua morte em 1066. Além disso, sem sucesso, reivindicou o trono dinamarquês até 1064 e o trono inglês em 1066.
5*: O enredo é muito vagamente baseado na história de Amleth, que aparece na Gesta Danorum (História dos dinamarqueses), uma coleção de tradições orais escritas por volta de 1200 por Saxo Grammaticus. Amleth inspirou Hamlet de Shakespeare, embora seja duvidoso que Shakespeare tenha lido Grammaticus diretamente.O filme tem muito de sua inspiração de "Amleth" na lenda escandinava que mais tarde inspirou diretamente a tragédia de Shakespeare do príncipe dinamarquês "Hamlet".
*6: O Feiticeiro (Ingvar Sigurdsson de Liga da Justiça de Zack Snyder) segura uma cabeça humana preservada. Segundo o mito, Odin foi aluno de Mimir. Quando Mimir foi decapitado pelos deuses rivais de Odin, Odin pegou a cabeça decapitada de Mimir e a reanimaram com magia para que Mimir pudesse continuar a ensiná-lo. Ingvar Sigurdsson aprendeu a cantar na garganta para seu papel como Feiticeiro, que usa roupas femininas, pois na Idade do Ferro da Escandinávia, a magia era vista como uma atividade feminina, e termos para magos masculinos também eram usados como insultos contra homossexuais. Segundo a lenda, Odin, o principal deus nórdico, disfarçou-se de mulher para poder aprender magia com as deusas.
*7: Robert Eggers trabalhando com historiadores, fez uma pesquisa meticulosa sobre o período, para tornar os cenários, figurinos e adereços o mais autêntico possível, ao mesmo tempo em que remontava a um período anterior ao cristianismo influenciar a cultura viking. O professor Neil Price, arqueólogo da Universidade de Uppsala, na Suécia, que trabalhou no filme, afirmou mais tarde que "O Homem do Norte pode ser o filme viking mais preciso já feito". Eggers admitiu que havia poucas referências históricas para o ritual de iniciação de Amleth, tornando-o "provavelmente o ritual mais fictício do filme". Os consultores históricos foram o arqueólogo Neil Price (autor de "The Viking Way: Religion and War in Late Iron Age Scandinavia" e "Children of Ash and Elm: A History of the Vikings") e a estudiosa literária Johanna Katrin Fridriksdottir (autora de "Valkyrie: As Mulheres do Mundo Viking").
*8: Eggers queria que alguns dos berserkers ficassem completamente nus, mas não insistiu nisso porque temia que seria muito alienante do público e daria ao filme uma restrição de idade muito alta.
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"- Te vejo em Valhala!!!" |