“Essa é a mulher com quem vou me casar”
por Alexandre César
Paul Thomas Anderson aposta na poesia e no lirismo e acerta em cheio

O
diálogo do título desta crítica é dito por Gary Valentine (o estreante Cooper
Hoffman em ótima performance) ao conhecer Alana Kane (Alana Haim de Haim
The Steps) durante a sessão de fotos do anuário de formatura de sua
turma de colégio. Ele, com quinze anos; ela com vinte e cinco. Algo que remete
ao nosso conhecido hit “Eduardo e Mônica” do Legião Urbana,
só que ambientado em Encino, na Los Angeles do início dos anos 1970, com
o melhor que a música do período pode proporcionar. Ele é sonhador, trabalhando
em peças musicais e anúncios, mas decidido e de espírito empreendedor, disposto
a encarar todas as situações que surgirem, caindo, levantando-se e começando
tudo de novo, pois o que lhe importa é continuar, ganhar dinheiro, e garantir o
seu lugar ao sol*1. Ela, a indecisa filha mais nova de três, de
uma família judia de classe média-baixa, que compreende a vida da uma forma
mais amarga e ácida.
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Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (o estreante Cooper
Hoffman) se conhecem numa sessão de fotos do anuário escolar da escola em que ele estuda
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Desse encontro de personalidades distintas surge um dos
grandes filmes desse ano (2021) que findou, explorando o primeiro amor desse
casal completamente disfuncional, que não é nenhum ícone-padrão de beleza, mas
cuja química é construída ao longo da narrativa de uma maneira que encanta a
plateia, nos deixando ao final com uma sensação de leveza, e com um sorriso
bobo nos lábios. Quem nunca teve um amor à primeira vista na juventude?
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O rapaz se encanta com a garota mais velha, e ao longo do filme não cansará de cortejá-la
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Gary propoe a Alana que trabalhe com ele, pois planos não lhe faltam
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Escrito
e dirigido por Paul Thomas Anderson (Boogie Nights — Prazer Sem Limites)
Licorice Pizza (2021) atesta a sua expertise em levar o
espectador ao universo que está propondo, partindo do momento em que Gary
enxerga Alana, e desta deixa, surgem uma sucessão de acontecimentos que
tornariam quaisquer experiências cinematográficas difíceis de engolir, não
fosse a vida tão cheia desses encadeamentos de absurdos... A despeito da
diferença de idade dos protagonistas soar inicialmente estranha para um
romance, a direção desenvolve um singelo, autêntico e volátil amor platônico.
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Em bora trabalhe no escritório de sua mãe (Mary Elizabeth Ellis), Gary ambiciona ter o seu próprio negócio
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A química
entre o casal protagonista é ótima, sendo Hoffman (mostrando ter herdado o talento do pai, o falecido Phillip Seymour Hoffman de O Mestre) o jovem decidido, que muda os
trilhos da vida de Alana desde que botou seus olhos nela e cujo olhar é sempre
repleto de afeto e desejo, e Haim sendo uma força da natureza, de personalidade
explosiva e tão perdida quanto doce, que transita de um espaço a outro com
magnetismo*2. Aliás, além dos excelentes protagonistas, e de um
elenco ótimo de apoio, o filme conta com participações especiais, destacando-se as que envolvem figuras bizarras do meio artístico, como
o ator Jack Holden (Sean Penn de Milk: A Voz da Igualdade
divertido) que parece um mix de William Holden com Steve McQueen, ou o
desequilibrado produtor Jon Peters (Bradley Cooper de O Beco do Pesadelo,
hilário), e principalmente, numa entrevista de Alana com Mary Grady (Harriet
Sansom Harris de Hollywood) uma agente maníaca – personagens
cujos close-ups enfatizam o humor facial e as besteiras que dizem (e que são muitas).
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Numa feira adolescente (uma pré-Comic-Con) Gary monta um stand para vender colchões dágua, uma novidade que virou febre no período
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As convenções da época eram bem informais e sendo bastante improvisadas em comparação com as atuais |
Outro fato
que fará com que o espectador se prenda à história é a edição de Andy Jurgensen
(Anima), que potencializa o fluxo narrativo do roteiro de
Anderson, que está mais interessado em simplesmente escrever
sobre esses indivíduos, como eles são, o que eles fazem, suas ações e reações,
e como se relacionam com as pessoas e o ambiente ao seu redor, do que oferecer
uma trama, digamos, objetiva, fazendo com que a passagem do tempo seja sentida pelas
ações de Gary e Alana. Ele, sempre insistindo em conquistá-la; ela, sempre se
esquivando dele, por considerar o jovem imaturo demais, novo demais, chato
demais, empreendedor demais (me lembrei um pouquinho da relação de Pepe Le
Pew*3 com a gata), tendo uma leve desaceleração no segundo ato,
quando ambos tentam seguir seus caminhos, tentando alcançar o “American dream way of life”
(essa utopia que leva muitos para o moedor de carne).
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Um dos clientes de Gary é o produtor da "pá-virada" Jon Peters (Bradley Cooper) |
E
neste “pingue-pongue”, as desculpas seguem ao longo das 2 horas e 13 minutos do filme. Porém,
enquanto ambos se aproximam e se afastam, salvando-se um ao outro de algumas
“roubadas” *4 colocadas pela vida, persistindo um tom sempre
dinâmico que dá gosto de acompanhar a narrativa.
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Caras mais velhos: Lance (Skyler Gisondo) chega brevemente a namorar Alana, para ciúme de Gary, mas o relacionamento não vai muito adiante...
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... e Alana chega a flertar com o astro Jack Holden (Sean Penn) um narcisista incorrigível
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Como
de hábito em seus filmes, a fotografia do próprio Anderson e de Michael Bauman
(The Kirkie) parece contar a história ao lado do espectador,
transitando entre diferentes formas de romance , ora tendo a beleza estética e
pureza das conversações reminiscentes dos romances da Hollywood
clássica; a inocência de um primeiro amor por parte de Gary; a curiosidade de
Alana por esse menino estranho e elogioso; o início de uma amizade tirada dos
constrangimentos e descobertas de coming-of-ages; e o espelhamento
da sequência final quando ambos correm (e correm...) um em busca do outro que,
se fosse mais longa acabaria lembrando a sequência das escadarias da Filadélfia
de Rocky, um Lutador (1976) de Jonh G. Avildsen.
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Gary (no auge da moda) finalmente monta um negócio próprio, mas sente a falta de Alana na noite da inauguração
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Visualmente
rico em sua viagem no tempo, o filme tem o nome perfeito*5, em
vista de seu significado ser tão aberto ao mesmo tempo carinhoso, com o casal
improvável, acenando à punção de vida da juventude, o que é traduzido pelo
excelente desenho de produção de Florencia Martin (Cherry) que
recriam a Los Angeles setentista, plena de referências cinematográficas,
que a direção de arte de Samantha Englender (Future Man) e Morgan
Lindsey Price (The L Word: Generation Q) complementa com o contexto político e
econômico (como a questão da crise do petróleo*6) do
período. As equipes de decoração de sets
chefiadas por Shaun Young (Eternos) Ryan Watson (GLOW)
e Jeremy Cisneros (Algumas Garotas) resgatam os elementos kitsch
que tanto retratavam a beleza brega da época, coisa que os efeitos visuais de Crafty
Apes, supervisionados por Laura J. Hill (Doutor Sono)
complementam na ampliação dos ambientes e no ajuste da palheta e cores e saturação
da fotografia, resgatando esse mundo do ápice e, início
do declínio do Império Americano.
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"Pinball Arcade" de Fat Bernie, o segundo empreendimento de Gary neste mesmo espaço de negócios, após ter sido uma loja de colchões de água |
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A equipe de direção de arte penou para conseguir Pinballs em boas condições de uso para a filmagem
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Na mesma linha, os figurinos de Mark Bridges (Coringa)
resgatam as cores, texturas e materiais dos anos 70 em seus exotismos, exageros
e a cafonália para os nosso olhar atual (daqui a trinta, cinquenta anos, como
será que estarão vendo a nossa época e moda???) embalada pela trilha musical de
Jonny Greenwood (Trama Fantasma) que cria inteligentemente a
atmosfera de acordo com o tom de cada “episódio”, da trama - seja dramático ou cômico – que
a supervisão musical de Linda Cohen (Bar Doce Lar) acrescenta músicas, que merecem ser apreciadas com
calma, transmitindo a vibração dos anos 70 de forma essencial para embarcar nos
sentimentos propostos com canções como “July
Tree” cantada por Nina Simone; ”I Whished On The Moon” por Rahsaan
Roland Kirk; “I Left My Heart In San
Francisco”, “Sometimes I´m Happy”, “Gypsy in My Soul”, “You´ll
Never Know” por Johnny Guarnieri; “Stumlin´In” por Suzi Quatro &
Chris Norman; “At the Crossroads” por George Hamilton; “Ac-Cent-Tchu-Ate
The Positive” por Bing Crosby; “13 Questions” por Seatrain; “Blue
Sands” por Chico Hamilton; “But You´re Mine” por Sonny & Cher; “My
Ding-A-Ling” por Chuck Berry; “Peace Frog” por The Doors; “If
You Could Read My Mind” por Gordon Lightfoot; “Let Me Roll It” por
Paul McCartney & Wings; “Life on Mars?” por David Bowie; “Slip
Away” por Clarence Carter; ”7-Rooms Of Gloom” por Four Tops; “Greensleeves”
por Mason Williams; “Barabajagal” por Donovan Leitch; “Walk Away”
por The James Gang; “The Horse” por Cliff Nobles, ”Lisa,
Listen to Me” por Blood, Sweat & Tears; “Tomorrow May Not Be
Your Day” por Taj Mahal, dentre muuitas outras, aderindo ao Soul
para manter o espírito groove da época.
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Ao final, o casal sai correndo em busca um do outro e se encontram diante de um cinema onde está passando "Com 007 Viva e Deixe Morrer" (1973) de Guy Hamilton
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Ao
final, Licorice Pizza, se firma como um fantástico trabalho
de Paul Thomas Anderson que mostra uma perspectiva diferente daquelas que lhe
são mais características, apostando mais num enfoque gentil e doce, sendo um
filme sobre uma era, e sobre dois jovens vivendo nela e se conhecendo, e acima
de tudo, sobre o sentimento e o laço que se forma entre eles. Eles vivem
roubadas e aventuras juntos e se apaixonam. E à medida que também os
conhecemos, rimos e nos divertimos das suas situações que atravessam uma
jornada de memória e nostalgia, não tão diferente do que fazemos quando
sentamos com amigos para relembrar histórias malucas (talvez
as contando com exageros ou olhando o passado com lentes mágicas).
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Família unida: Alana Haim e seus familiares na tela e na vida:As irmãs Danielle, Este e a mãe Donna e o pai Moti Haim |
No fim, eles se sentem tão conectados que precisam correr um atrás do outro de
novo e de novo e de novo (e como eles correm...). Gary e Alana estão
agora marcados na Sétima Arte como protagonistas de uma das suas
melhores histórias de amor, única em seu paladar como uma pizza de alcaçuz.
Afinal, por aqui nos rodízios de pizzas já estamos mais do que acostumados a
pizzas doces e salgadas, dos sabores mais variados...
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Ao fim, eles correram, correram, e se deram conta e que queriam ficar juntos!!!
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Notas:
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O jovem e o adulto Gary Goetzman. No centro, o personagem
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*1: O personagem Gary é baseado nas memórias de Paul Thomas Anderson e nas de Gary
Goetzman – parceiro de produção de Tom Hanks, cuja carreira no showbiz
começou ainda na adolescência, e retrata indiretamente em seu perfil, a
indústria cinematográfica emergente da Nova Hollywood, sendo corajoso,
inovador e com uma inteligência além de seus anos, tendo uma visão do sucesso
capitalista, cuja maturidade precoce torna o romance com Alana mais natural.
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Alana e o astro Jack Holden (Sean Penn)
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*2: Alana trilha uma interessante e complexa jornada de autodescoberta, revelando
como os homens a veem (praticamente todas as figuras masculinas da obra a
desejam e a descartam), incluindo uma sequência em que ela se sente sensual ao
usar biquínis para vender colchões de água e logo entende como foi
objetificada. A jovem também passa o filme todo testando novas profissões e
estilos de vestimenta, tentando descobrir sua vocação e personalidade em meio a
um universo masculino que sempre ignora seus desejos.

*3: Pepe Le Pew é
um personagem animado que é um gambá francês cuja paixonite e total ausência de
semancol o leva a sempre perseguir uma gata preta (que sempre acaba com uma
faixa branca pintada nas suas costas) e que ele acredita ser uma fêmea da sua
espécie. A Warner Bros recentemente resolveu cancelar o
personagem por conta de declarações de grupos que alegam ser o personagem uma
glamourização da cultura do estupro, apesar do personagem sempre se dar mal em
cerca de 90 % dos desenhos.
*4: É particularmente
assustador quando Gary e amigos estão montando um stand na teen age
fair, uma feira adolescente (uma “Pré Comic-Con”) e surgem dois
guardas que o prendem de forma brutal por corresponder à descrição de um
suspeito de assassinato, sendo logo depois solto pelo engano sem um único
pedido de desculpas. Coisa de polícia...
*5: “Licorice Pizza”
traduzindo do inglês seria “Pizza de Alcaçuz”. O regaliz (Glycyrrhiza
glabra L.) ou alcaçuz é uma espécie de planta com flor pertencente à
família Fabaceae. Possui raízes adocicadas, ricas em glicirrizina (Ácido glicosídico cristalino, C42H62O16, que é o constituinte doce
de sua raiz) e das quais se extrai um xarope usado em confeitaria, em
medicamentos para tosse e na produção de alguns tipos de cerveja. Fonte: Wikipédia
https://pt.wikipedia.org/wiki/Regaliz
*6: Em outubro de 1973, os países árabes exportadores proclamaram um
embargo às nações aliadas de Israel na Guerra do Yom Kipur, conflito militar
entre estados árabes liderados por Egito e Síria contra Israel. Em cinco meses
de embargo, o preço do barril de petróleo subiu de três dólares para 12
dólares (cerca de 400%) no mundo
inteiro.
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Capa do CD da trilha sonora do filme, imitando um pinball
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